Arco e Baquetas escrita por Stella


Capítulo 6


Notas iniciais do capítulo

Esse é o penúltimo capítulo e o penúltimo dia do desafio!
A música de hoje é "Three Little Birds", do Bob Marley.
Boa leitura!

27/02/2015



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Felipe mal podia acreditar naquilo. Malu tinha conseguido tirá-lo do conservatório por uma tarde, e só por causa daquela fuga de algumas horas, ele tinha parado de entrar em pânico toda vez que começava a tocar Mozart.

Mas aquele era o dia do teste, e a tensão que o perseguia estava começando a voltar.

Na sala de ensaios, Malu deixou as baquetas de lado quando percebeu que o olhar dele estava mudando.

– Qual o problema? – ela perguntou.

– Eu preciso passar nesse teste, Malu. Eu preciso. No momento, nada é mais importante que isso. – disse Felipe, colocando o violino no colo.

A garota o encarou longamente. Não conseguia entender aquele desespero dele em ser o melhor em tudo.

– Você só tem dezesseis anos, não devia se cobrar tanto. Eu acho que você tem muita chance de ser o novo spalla da orquestra, mas… Se não passar no teste, outras oportunidades vão aparecer. O mundo não vai acabar se você falhar. Fica calmo. – aconselhou Malu.

Fica calmo… – repetiu ele, ironicamente – Os hippies que vendem artesanato na calçada são bem calmos. O que eles estão ganhando com isso?

Malu viu que ele estava voltando a se estressar, mas não pôde evitar uma risada.

– Como é que os hippies vieram parar nessa conversa?

Felipe desviou o olhar do dela e ficou olhando a parede, totalmente imóvel.

– Não se preocupe com nada, ok? Cada pequena coisa vai ficar bem. – a garota disse em voz baixa.

Ele voltou a olhar para ela. Havia uma centelha de desespero nos olhos dele.

– Eu não quero ser um fracassado. Não tenho permissão pra ser um perdedor. – disse, com certa hesitação. Sentia-se tão desconfortável que mudou de posição na cadeira algumas vezes.

Malu tinha uma vaga ideia do que aquilo podia significar.

– Como assim? – perguntou.

Felipe respirou fundo antes de explicar.

– Minha mãe nunca leu contos de fadas pra mim. Achava os contos infantis ridículos. Em vez disso, ela contava histórias sobre a minha família. Falava de todas as proezas e conquistas dos Huang ao longo das gerações. E todos os dias, sem falta, ela fazia um único pedido: “Felipe, não seja a geração da decadência. Não nos envergonhe.”

Aquela obsessão em honrar a família e os antepassados era um tanto estranha, para Malu. Devia ser coisa de chinês.

– Nossa. – disse ela – Achei que essa coisa de trazer desonra pra família só existisse no filme da Mulan.

Como a garota esperava, Felipe não entendeu a referência.

– Meus pais esperam muito de mim. Eles investem cada segundo da vida deles em mim e esperam alguma coisa em troca. Perder não é uma opção. A única vez que eu tirei uma nota menor que nove numa prova do colégio, minha mãe me obrigou a refazer as questões que eu errei durante cinco horas seguidas, como castigo. E meu pai disse que eu estava a um passo de matá-lo de desgosto. Eu preciso passar no teste de violino. Eu preciso provar que não sou o elo fraco da corrente. Tenho que mostrar pra eles que eu não sou e nunca vou ser um fracassado.

Felipe dizia aquelas palavras numa convicção quase doentia, e Malu entendeu porque ele sempre parecia tão tenso. Ele devia ser pressionado além do que ela podia imaginar.

– Malu, naquele dia em que a gente saiu correndo do conservatório e você me levou até o boliche… Eu nunca me senti tão livre. Quando eu toquei violino no final da tarde, foi como se eu estivesse fazendo música pela primeira vez. E eu queria, eu juro que queria, poder olhar pra vida do mesmo jeito que você. Mas eu não posso.

A garota quis dizer alguma coisa, mas por algum motivo, as palavras ficaram entaladas na garganta.

Felipe olhou para o relógio.

– Bem, está quase na hora do teste. Você vem? – perguntou ele, enquanto guardava o violino e o arco dentro do estojo.

Malu assentiu e os dois começaram a caminhar em direção ao auditório.

Pela primeira vez, ela estava mais calada que ele.

– O meu professor disse que, pra passar na prova, eu preciso fazer rios fluírem de mim. Quando ele falou isso, achei que fosse um delírio dele. Fiquei irritado, pensando que ele devia estar corrigindo a minha técnica em vez de dizer coisas sem sentido. Mas aí, eu passei perto da sala de percussão e você estava lá sozinha, tocando xilofone. Então eu vi rios fluindo de você. Eu queria saber fazer isso, também. - disse Felipe calmamente.

– Mas você sabe. – respondeu a garota, sorrindo – Fazer música é uma forma de celebrar a vida. Foi isso o que você fez naquele dia, ao pôr do sol. E eu sei que você pode fazer isso de novo. A música é como a vida, você só precisa abrir um espaço dentro de você pra deixar ela fluir.

Felipe e Malu se encararam durante longos segundos, até ela quebrar o silêncio:

– Pega um caderninho e anota o que eu acabei de dizer, porque eu vou vender essa frase pra algum escritor de livro de auto-ajuda.

Os dois começaram a rir incontrolavelmente.

Quando a risada de Malu se transformou em uma tosse estranha, com um chiado horrendo, Felipe a encarou com um olhar assustado.

– Tá tudo bem com você? – ele perguntou.

– É. Eu estou bem. Foi só… Deixa pra lá.

Eles tinham acabado de chegar ao auditório. O maestro e os professores da banca já estavam acomodados em cadeiras enfileiradas na lateral do palco, os outros violinistas convocados para o teste estavam sentados na primeira fileira do auditório, esperando o início das audições.

– Você consegue. Eu acredito em você. – Malu disse para Felipe, que pareceu se intimidar um pouco ao ver a concorrência.

Ele a abraçou com força.

– Obrigado. – foi tudo o que ele falou, antes de se juntar aos demais violinistas.

Malu procurou um lugar para assistir ao teste. Escolheu um assento perto da saída e torceu para que Felipe fosse um dos primeiros a se apresentar. Estava ansiosa para vê-lo tocar. Não perderia aquele momento por nada, mas assim que ele terminasse, ela iria correndo buscar a mochila que tinha esquecido na sala de ensaios. Não gostava de se separar da mochila. Era estranho ficar sem o celular, a bombinha de asma, as baquetas. Sortearam a ordem das apresentações e Felipe seria o terceiro. Nada mal.

Da primeira fila do auditório, Felipe ficava se virando para olhar para Malu o tempo todo. Ela parecia estranha e estava tossindo demais. Ele já tinha decidido ir até lá e perguntar se ela estava passando mal, se precisava de ajuda, quando chamaram o nome dele.

Felipe subiu no palco. Estava começando a posicionar o violino, quando viu Malu se levantar de onde estava e sair do auditório, andando com dificuldade.

O coração dele acelerou. Ela não estava bem, definitivamente. Pra sair daquele jeito justamente quando tinha chegado a vez dele, alguma coisa séria devia estar acontecendo. O violinista precisou se esforçar para conter o impulso de largar tudo e sair correndo atrás dela.

– E então? É pra hoje? - perguntou um dos professores, fazendo anotações em uma caderneta.

Felipe ficou olhando para a cara dos professores com uma expressão assustada. Tinha se esforçado loucamente pra conseguir aquela chance. Estava preparado. Conseguir a vaga de primeiro violinista era tudo o que ele queria, e se a perdesse, os pais dele o matariam. Quase conseguia ouvir o tom firme de seu pai dizendo que ser o melhor era uma prioridade. Que nada justificava perder uma grande oportunidade. E que nada era mais importante que vencer. Era isso o que tinha aprendido a vida toda.

Mas, naquele momento, todas aquelas frases que o guiaram desde a infância não pareciam fazer sentido algum. Porque, fora daquele lugar, havia uma percussionista ruiva precisando dele. E ela era a mesma garota que tinha dito, com voz suave, que ele não precisava se preocupar, porque cada pequena coisa ficaria bem.

Felipe largou o violino, desceu do palco e saiu correndo do auditório, em direção ao que realmente importava.




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Notas finais do capítulo

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