Camélia escrita por SatineHarmony


Capítulo 4
Aceitação/Rejeição




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Shion estava sentado em frente ao computador do laboratório, concentrado em escrever algo. O som das teclas sendo apertadas foi interrompido no mesmo instante em que Nezumi atravessou a soleira:

— Você está incomodado com algo. — o homem de cabelos brancos notou, lançando-lhe um rápido olhar analítico. — O que houve?

Shion viu Nezumi fortalecer a barreira à sua volta, e colocar uma máscara de indiferença sobre sua fisionomia, antes perturbada. Em vez de responder a pergunta, Nezumi preferiu desvencilhar-se dela:

— O que você está fazendo? — seguiu pelo cômodo, apoiando-se de forma despreocupada na mesa localizada no centro. Shion franziu os lábios diante da clara tentativa de mudar de assunto, mas deixou-se levar. Algo que aprendera durante o tempo em que morara com Nezumi foi que nunca era uma boa ideia forçá-lo a fazer algo que não queria. Quase sempre, terminava com ele afastando-se e tornando-se mil vezes mais apático.

— Estou desenvolvendo uma proposta de projeto. — respondeu, e então lembrou que nunca explicara a fundo a atual forma de governo da cidade-estado. Se duvidar, ele está curioso sobre isso desde quando chegou, e só não perguntou por orgulho; supôs Shion. — É assim que No. 6 funciona agora: há doze comitês, cada um responsável por uma área específica. Há alguns anos, nós fizemos uma votação para saber se a população desejava a eleição de um prefeito, porém a maioria foi contra. — voltou sua cadeira-giratória na direção de Nezumi, procurando algo em seu rosto que denunciasse uma mudança de expressão.

Nezumi deu uma curta risada cheia de desprezo:

— Quem diria que um dia No. 6 não teria um líder?

— Não é verdade. — Shion hesitou, antes de deixar as palavras correrem soltas: — Nós, dos comitês, guiamos o seu desenvolvimento. O povo lidera a cidade, e nós consideramos a opinião dele em todas as nossas ações.

— Shion, você não pode achar que... — Nezumi interrompeu-se no meio de sua fala; seus olhos estavam fixos no documento que Shion estava escrevendo no computador antes de ele entrar na sala. — Que diabos de proposta é essa? — franziu o cenho de desaprovação, aproximando-se do computador para ler mais. — Shion, você pretende dar dinheiro para as crianças do Distrito Oeste irem à escola?

— Sim. — confusão estava estampada no seu rosto, pela pergunta feita num tom cético por Nezumi. — Mesmo após lançarmos vários incentivos para que elas se insiram na comunidade de No. 6, apenas uma pequena porcentagem do pessoal do Distrito Oeste usufrui dos serviços oferecidos. Inicialmente, nós pensávamos que o problema fosse o transporte; essa é uma das principais razões pela qual construímos o metrô de superfície que liga a cidade à periferia.

— Shion, como você consegue ser tão cego? — as gesticulações de Nezumi tornaram-se amplas e raivosas. Shion era quase capaz de ver a raiva do outro sendo dispersa em tais movimentos. — Nós estamos falando do Distrito Oeste. Aquelas pessoas estão acostumadas a almoçar ao lado de cadáveres. Elas são capazes de passar dias sem comida, porém são incapazes de fazer algo como confiar no próximo. Essa cidade ilustra tudo o que eles mais querem na vida — comida, conforto, lazer, educação, saúde —; portanto eles matariam alguém, se isso lhes desse a chance de vir pra cá.

Shion abaixou a cabeça com o sermão. Ele detestava quando Nezumi falava naquele tom — aquele tom que gritava você me decepcionou. Entretanto, o que mais doía era saber que tudo o que o homem dizia era verdade. Apesar do arrependimento de Shion ser claro, Nezumi continuou atacando-o com a verdade:

— A maioria do Distrito Oeste não vem aqui porque eles sabem que serão agredidos e ameaçados pelo pessoal mimado da No. 6. Eles reclamam que o serviço público não é mais capaz de satisfazê-los, devido ao aumento da população. Em vez de dar dinheiro para mais pessoas entrarem na escola, que tal antes investir para que ela tenha infraestrutura para o número de alunos?

Nezumi estendeu uma mão na direção do rosto de Shion. Por um instante, ele pensou que fosse levar um tapa, porém Shion terminou tendo sua maçã do rosto acariciada em um gesto delicado, como se ele fosse uma boneca de porcelana — e talvez ele fosse, mesmo. Nezumi segurou seu queixo, aproximando-se dele de forma intimidante:

— Sabe-se lá quantas pessoas do Distrito Oeste foram maltratadas porque o governo é incapaz de saciar as necessidades de todos. Eu vi uma mulher ser assediada por dois homens, e coisa muito pior poderia ter acontecido se eu não tivesse intervindo, Shion. Ela poderia ter sido estuprada.

E então Nezumi não estava mais no laboratório. Ele foi embora tão rápido que Shion nem sequer vira a sua saída — e, se não fosse pelo toque quente que sentia em seu rosto, ele podia até mesmo jurar que a conversa fora mera obra da sua imaginação.

* * *

Era o último dia de trabalho da semana — em outras palavras: reunião de comitês. Os líderes encontravam-se na Sala Principal para compartilharem os melhoramentos que realizaram em suas respectivas áreas. Shion era encarregado da Educação, devido à experiência que possuía com o sistema da antiga No. 6 — tal fato fez todos confiarem em Shion de que ele não cometeria os mesmo erros que o governo anterior.

Na prática, nem tudo era rosas. Nezumi conseguira destruir um projeto que ele planejava há meses, e o discurso do homem de cabelos azuis o abalara profundamente. Shion costumava gostar dos encontros, uma vez que esta era a única oportunidade de encontrar seus colegas do Comitê de Restauração durante a semana, no entanto estava extremamente desanimado no momento.

Shion passou a reunião inteira inquieto em sua cadeira, sentindo hesitação e nervosismo disputarem pela posse do seu ser. Ele segurava sua pasta com força, tentando amenizar seu estado de espírito — e falhando completamente nisso, óbvio.

Sua vez de pronunciar-se chegou, e suas pernas tremiam quando ele se levantou do seu lugar.

— Eu gostaria de propor a criação de uma lei. — anunciou de forma sucinta.

— Isso está fora da sua jurisdição, Shion. — contestou Yukio, responsável por Transportes. Os outros assentiram, de acordo com ele.

Shion inspirou fundo, tentando acalmar-se:

— Eu sei, eu sei, mas um grande problema me foi apresentado, e eu sinto que ele necessita de resolução imediata.

— E você julga a sua lei capaz de resolver isso? — Fumiko, da Saúde, ergueu uma sobrancelha.

— Sim, senhora. — Shion foi educado, apesar do olhar cético que recebia. Notando que ninguém mais se manifestaria, decidiu iniciar sua apresentação: — As pessoas do Distrito Oeste estão sofrendo preconceito nas mãos dos habitantes de No. 6. — todos na sala pareceram sobressaltados com a informação, porém Shion continuou: — Como todos nós sabemos, apenas uma pequena porcentagem do Distrito Oeste frequenta efetivamente No. 6, e eu acredito que a razão seja essa: eles não se sentem bem-vindos aqui. Eu proponho que esse preconceito seja declarado ilegal, tendo como punição a cadeia. E, por favor, antes que pensem que esta é uma medida muito extrema, devemos considerar que foi a falta de fiscalização que transformou a No. 6 no que ela era antes.

Yukio dessa vez levantou a mão antes de falar:

— Se seguirmos a sua linha de raciocínio, encontramos outro problema: como nos certificaríamos de que a lei está sendo respeitada? Digo, não podemos colocar um policial em cada esquina. Isso daria um ar de desconfiança aos nossos cidadãos.

Shion ponderou por um instante, antes de responder:

— Eu sugiro a criação de uma divisão na polícia apenas para isso. Ou conseguir voluntários interessados nessa questão. Daríamos uma licença a eles, e estabeleceríamos as regras — questões óbvias como ser proibido o porte de armas durante as abordagens, explicar que eles não seriam de fato policiais, e sim pessoas tentando manter a igualdade entre todos.

A sala ficou em silêncio. Ninguém ousou emitir um som sequer enquanto consideravam a proposta de Shion. O homem de cabelos brancos mordia o lábio inferior, nervoso.

— Gostaria de acrescentar algo antes de começarmos a votação?

— Sim, por favor. — os olhos de Shion brilharam diante da possibilidade de convencê-los mais um pouco. — Eu gostaria que vocês levassem em consideração o aumento de habitantes que terá, caso a lei seja aprovada. Isso será ótimo para o comércio, e para a cidade em si. Mas nós deveremos estar preparados para isso, portanto seria aconselhável mais investimentos em todas as áreas. — pronto, tudo o que havia para se dizer foi dito.

A lei de Shion foi aprovada apenas pelo interesse dos outros membros de conseguir mais fundos.

* * *

Inukashi ainda estava de cama. Não tendo mais companhia para vagar pela casa, Nezumi viu-se cada vez mais e mais no quarto da enferma. Um acordo mudo era mantido entre eles — Nezumi não falaria sobre o incidente da janela, e Inukashi não comentaria sobre a mudança de comportamento do homem.

Agora, Inukashi observava a paisagem pela janela, com olhos distraídos:

— Eu não consigo acreditar que um simples vírus esteja fazendo isso comigo. Quero dizer, esse bicho deve ser insignificante, mas conseguiu destruir a minha vida. — ela parecia estar pensando em voz alta. — O que eu mais detesto é ver Mama, e os Shion todos protegidos quando vêm me ver. As máscaras, as luvas... Eu sinto como se eu não fosse mais eu; é como se eu própria fosse a doença. Um vírus ambulante. — deu um suspiro quando a sua voz falhou.

Nezumi não usava nenhuma das proteções, achando-as inúteis — seria estúpido pegar a doença de Inukashi enquanto ficava atrás de mil e uma barreiras. Ele estava em pé, ao lado da janela, também apreciando a vista. Na verdade não havia muito para se ver — apenas o céu azul, que agora podia ser visto expandindo-se pelo horizonte, onde antes a muralha de No. 6 atrapalhava a visão.

— Shion me disse que isso é em razão do desconhecimento do meio de contágio. — Nezumi comentou, sem prestar de fato na conversa. Inukashi gostava disso: de ter alguém para ouvi-la. Ela não exigia respostas atenciosas da parte de Nezumi, algo pelo qual ele era grato. — Você poderia ajudá-lo falando como você suspeita que pegou a doença.

Inukashi revirou os olhos para a sugestão:

— Claro, porque eu me lembro do exato momento em que o vírus entrou no meu corpo. — bufou. Nezumi ignorou o escárnio presente na voz da outra, explicando-se:

— É só você se lembrar do que aconteceu de estranho alguns meses antes de você ficar doente.

Inukashi ficou calada, e só então Nezumi tirou os olhos da janela. Aquele não era um silêncio comum, daqueles que ela fazia quando não possuía uma resposta esperta para uma réplica sarcástica do garoto. Aquele era um silêncio carregado de dúvidas, pensamentos e mágoa. Nezumi foi quase capaz de escutar um estalo dentro da cabeça de Inukashi, quando ela chegou à conclusão de seu raciocínio.

— Ele... — se a audição de Nezumi não fosse mais apurada do que o normal, ele não teria escutado o sussurro que escapou dos lábios de Inukashi. Ele permaneceu em silêncio, preferindo não invadir o espaço alheio.

Inukashi baixou a cabeça, e o suspiro dessa vez soou tão pesado que Nezumi se sentiu desconfortável. Ela engoliu em seco antes de encontrar forças para dizer:

— Eu conheci uma pessoa, e nós... — Inukashi foi incapaz de terminar a frase, porém o rubor que tomou conta de seu rosto falava mais que mil palavras. Nezumi assentiu, encorajando-a a continuar: — Eu nunca mais o vi. Ele deve estar morto agora. — a mudança de gênero não passou despercebida pelo homem de cabelos azuis. — O que eu faço?

Nezumi deu de ombros:

— Conte para Shion. Faça o que quiser.

— Nezumi, você é péssimo dando conselhos. — Inukashi deu uma gargalhada, e o garoto sentiu que aquele era um dos momentos de rir para não chorar. Uma batida na porta os alertou da entrada de Shion no quarto:

— Nezumi, eu posso falar com você? — a sua postura era tensa. As mangas de sua camisa estavam arregaçadas, indicando que ele voltara do trabalho há pouco tempo. Ao ver o homem continuar em pé ao lado da janela, especificou: — Conversar a sós.

Nezumi estalou a língua, mas fez o que lhe foi dito — Inukashi observou, muda, os dois garotos saírem do quarto. Shion o guiou escadas abaixo até o quarto onde Nezumi dormia, e, sem dizer uma só palavra, colocou sua pasta de documentos do trabalho sobre a cama. Nezumi compreendeu a mensagem: leia.

Um silêncio absoluto dominou o quarto. Nezumi era capaz de sentir o olhar de expectativa de Shion sobre si enquanto lia o projeto de lei. Ao concluir sua leitura, colocou o documento de volta ao seu respectivo lugar. Notando que Shion estava aguardando uma opinião sua, ele franziu a testa:

— Nada mal. — este era o mais próximo de um elogio que Nezumi falaria. — Notei uns erros técnicos, porém creio que, com a pessoa certa no comando, eles não causarão problemas.

— Só isso? — Shion ergueu as sobrancelhas e, em resposta, Nezumi deu de ombros:

— Sim. Por quê? Você pensou que eu iria parabenizá-lo? — seu tom de voz era irônico. — Você está apenas cumprindo a sua função, Shion, não espere agradecimentos.

— Eu não estou falando disso. — Shion bufou impaciente, e Nezumi congelou por um instante, diante de tal ação atípica do homem de cabelos brancos. — Eu sei que é difícil, para você, acreditar nisso, mas eu amadureci nos últimos anos, e posso garantir-lhe que minha expectativa por parabéns é zero. Eu faço o que faço porque é meu dever. — soou determinado, e sua fisionomia exibia pura tensão. Nezumi bateu palmas de forma sarcástica:

— Que belo discurso, você passou quanto tempo ensaiando? — revirou os olhos. — Você continua sendo aquele garotinho esperançoso, não negue quem você é, Shion. — em algum lugar de sua mente, as palavras do pai de Shion ecoaram: qualquer pessoa muda, ao comandar um Estado. Pois, se ela não mudar, ela será destruída.

Shion suspirou, e tanto cansaço fora transmitido pelo ato que até mesmo Nezumi foi capaz de captá-lo.

— Você continua não compreendendo o meu ponto, Nezumi. — virou seu rosto para que não pudesse ser visto pelo outro. — Você leu o projeto? Pessoas podem se voluntariar para a fiscalização da lei. — informou num tom calmo.

— E o que você quer dizer com isso? — foi retórico. — Eu não serei um voluntário, Shion. Você me conhece; sabe muito bem que não trabalho de graça. — suas palavras eram manchadas por arrogância.

Shion então se voltou para Nezumi. Decepção estava presente em cada traço de sua feição, tão intensa que o homem de cabelos azuis sentiu uma leve pontada de culpa em seu coração.

— Mas você se importa com o povo do Distrito Oeste. Comparado a isso, dinheiro é nada. — murmurou de tal forma que foi mal audível. Nezumi deu uma gargalhada estrondosa, banhada em escárnio. Shion encolheu os ombros em reação ao som.

— Shion, eu não reclamei sobre isso com você num surto de empatia, ou algo do gênero. Eu estava simplesmente apontando um erro desse sistema que você e os outros estão construindo. Todos os cidadãos não devem ser tratados de forma equivalente? Eu apenas mostrei que vocês falharam na sua obrigação. — ácido pingava de sua fala.

As mãos de Shion foram ao seu cabelo, bagunçando os fios brancos de frustração. O seu olhar, direcionado a Nezumi, expressava uma única coisa: exasperação.

— Eu pensei que, depois de todos esses anos, você teria mudado, mas você continua o mesmo, não é, Nezumi? — balançou a cabeça em um movimento negativo. — Não há problema algum em se importar, Nezumi. — rebateu. — E você pode me julgar por esperar agradecimentos por cumprir meus deveres, mas você é mil vezes pior! Você foge de qualquer compromisso; por que você faz isso? Do que você tem medo?

— Do que diabos você está falando, Shion? — mentiu ele; Nezumi estava começando a compreender o rumo da conversa.

Shion mordeu o lábio inferior, repentinamente hesitante ao notar que chegara no xis da questão. Inspirou fundo antes de falar:

— Onze anos. Onze anos, Nezumi. Foi esse o tempo que eu passei esperando por você. Foi esse o tempo que eu passei, sem saber se você estava vivo ou morto. Você tem noção do quanto isso doeu? E um dia, sem mais nem menos, você volta?! — trincou os dentes, tentando conter sua voz.

— Então é isso? Você quer que eu saia daqui? Vá embora? A casa é sua, você decide. — Nezumi manteve-se neutro, algo extraordinário. Antigamente, quando eles tocavam em assuntos pessoais, seu primeiro instinto era ficar na defensiva.

— É lógico que eu nunca faria uma coisa dessas! — Shion exclamou, sentindo-se quase insultado com a resposta do outro. — Eu quero que você fique aqui; eu gosto de você aqui. Mas, sinto muito, Nezumi, eu não sou capaz de esperar por mais tempo. Parece que, afinal, onze anos é o meu limite. — pensou em voz alta a última parte, dando uma curta risada sem humor algum.

Nezumi deu-lhe as costas, começando a andar pelo pequeno espaço disponível do quarto de hóspedes — ele necessita extravasar sua irritação em algo:

— Agora eu entendi. — disse, com um sorriso seco nos lábios. — Nós estamos tendo essa conversa toda porque você está confuso. Como sempre, você quer as informações entregues em uma bandeja de prata. — estalou a língua, e então se virou para Shion. — Está esperando o quê? Comece a fazer suas perguntas, Vossa Majestade.

Shion abaixou a cabeça, insatisfeito com o desenrolar da cena. Por fim, decidiu deixar os dados rolarem:

— Por que você voltou? — seu questionamento foi vocalizado por um sussurro.

— Eu prometi a Inukashi que cantaria uma música quando a morte dele chegasse. Eu sou muitas coisas, mas eu honro as promessas que faço. — Nezumi interrompeu seus passos, sentando-se na beira da sua cama. Algo dito por ele fez Shion franzir a testa de dúvida:

— Você me prometeu que voltaria um dia.

Nezumi abriu um sorriso — este era caloroso e convidativo, diferente dos anteriores:

— E eu voltei.

— Você voltou por Inukashi. — Shion fechou a cara, sentindo seu rosto ficar vermelho. O outro riu disso:

— Ciúmes, Shion? Sério? — franziu o cenho, incrédulo. Percebendo o constrangimento alheio, deixou passar: — Ele foi apenas um incentivo. — Nezumi engoliu em seco antes de tomar coragem para proferir as próximas palavras: — Perdão por "fugir dos meus compromissos" — repetiu o termo que Shion usara anteriormente. — Nunca duvide da minha estima por você, Shion.

O homem de cabelos brancos sentiu suas pernas fraquejarem, e apoiou-se na parede para não cair. Admitir estima, no vocabulário de Nezumi, quase equivalia a um "eu te amo". Deus, isso era muito mais do que Shion esperava — por que esse maldito homem sempre encontrava uma forma de confundi-lo, e, ao mesmo tempo, de amá-lo ainda mais?

Nezumi fez um gesto para que Shion se juntasse ao seu lado na cama. A mão de Shion apertou o ombro alheio com força antes de apoiar sua cabeça contra o peito de Nezumi, sem pudor algum. Seus cabelos pálidos foram acariciados, e Shion notou que, portanto, não ultrapassara nenhum dos limites do outro homem.

A voz de Nezumi soou aveludada na quietude do quarto:

— Hábitos antigos são difíceis de largar. Devo admitir que onze anos longe da civilização também não me ajudou muito. — fez uma careta. — Eu sempre acreditei que sentimentos e laços são desvantagens, então, por favor, Shion, você terá de ter um pouco de paciência comigo.

— Isso é mais do que suficiente. — sua fala saiu abafada contra o peito de Nezumi. — Mas... — pausa. — Posso fazer mais uma pergunta? — pediu, ansioso. Sentiu o corpo de Nezumi assentir, e considerou isso um incentivo para continuar: — Eu sei que você foi embora porque era uma necessidade sua, porém eu preciso saber: não havia nada que eu pudesse fazer para impedir sua partida?

Nezumi suspirou sobre sua cabeça, e sua fisionomia tornou-se pensativa por um instante. Nesse meio-tempo, distraiu-se entrelaçando seus dedos nos fios brancos do cabelo de Shion. Depois de ponderar bastante, respondeu:

— Eu precisava ir embora. Na hora, era a única coisa que fazia sentido. Eu precisava me afastar, e encontrar o meu eu verdadeiro. — fez uma careta ao dizer tal clichê. — Shion, eu não tinha mais nada. Você sempre teve algo para proteger: sua mãe. Já eu... Eu só tinha você. E, com a No. 6 destruída, todos os meus objetivos haviam sido alcançados. Sozinho, eu descobri quem sou de verdade. — confessou. Shion levantou a cabeça para poder ver o olhar pacífico presente no rosto de Nezumi:

— Eu sei que isso é algo inadequado de se dizer, mas obrigado por ter ido embora onze anos atrás. — Nezumi ficou atônito com a sua declaração. — Se você tivesse ficado, eu provavelmente teria recorrido à sua ajuda para qualquer coisa. Eu precisava aprender a cuidar de mim mesmo, e aprender a lidar com o meu trabalho.

— Você realmente cresceu, Shion. Estou orgulhoso de você. — admitiu em voz baixa. O homem de cabelos brancos sorriu com o elogio:

— Porém saiba que agora será mais difícil se livrar de mim. — os lábios de Shion formaram um bico infantil, que fez Nezumi reprimir um sorriso divertido. — Há ainda muito a ser feito em No. 6, e eu precisarei da sua ajuda. E mais, você me ama, então você não me deixará. — declarou, como se fosse um dos fatos mais óbvios do Universo. Nezumi ergueu uma sobrancelha:

— Seu presunçoso, o que te faz pensar isso?

— Você. — Shion respondeu simplesmente, dando de ombros. — Parece que onze anos era tudo o que eu precisava para finalmente compreendê-lo. Mas não se preocupe: eu nunca o obrigarei a falar isso em voz alta. Eu te conheço.

— Fico onze anos sem vê-lo e você se torna um arrogante. Você me decepcionou, Shion. — Nezumi disse, mas ambos sabiam que seu desapontamento era da boca para fora.

Mais uma vez, o quarto foi tomado pelo eterno companheiro de Shion e Nezumi: o silêncio. O clima pesado tornou-se mais descontraído, e ambos lembraram-se da razão pela qual gostavam tanto um da companhia do outro — a capacidade de se comunicarem por outros meios.

Shion aproveitou a calmaria para explorar seus sentidos, sentando-se corretamente na cama, para apreciar a vista oferecida por Nezumi. Com um movimento hesitante, o homem de cabelos brancos pousou uma de suas mãos no peito do outro, experimentando a sensação — era firme, musculoso. Quente. Pessoas vivas são quentes ecoou na mente de Shion.

Notando o súbito interesse de Shion pelo seu corpo, Nezumi correspondeu, dando um beijo cálido sobre a cicatriz rosa localizada na bochecha:

— Tão bonita... Sempre quis saber qual é o sabor dela. — comentou, parecendo não prestar atenção no que falara. Seguiu para o pescoço alheio, e Shion fechou os olhos com força ao sentir uma pressão confortável na região, soltando um suspiro delicado. Foi surpreendido com um beijo de Nezumi em seus lábios.

Shion lembrou-se do último beijo deles — aquele encontro confuso de dentes. Dessa vez foi mais harmônico, organizado. O desespero não mais dominava a mente deles. Em meio ao selar de lábios e encontro de línguas, eles perderam o fôlego. Nezumi foi o primeiro a pronunciar-se, estando menos ofegante do que Shion:

— Você não ficou com ninguém durante esse tempo todo. — percebeu, sentindo a ansiedade do outro.

— Nezumi, para mim sempre foi apenas você. Eu pensei que você já teria notado isso. — Shion abriu um sorriso sem graça.

— Shion... — Nezumi riu um riso descontraído e pasmo, sentindo-se lisonjeado. — O que eu faço com você?

Shion pareceu lembrar-se de algo, levantando rapidamente da cama. De pé, perante Nezumi, estendeu-lhe uma mão:

— O que você fará comigo? — ergueu uma sobrancelha, repetindo a sua pergunta retórica. — Que tal dançarmos? — Shion sugeriu, com um brilho nos olhos vermelhos.

Nezumi levantou-se, lançando-lhe um olhar de expectativa:

— Aprendeu algum passo novo enquanto eu estava fora? — perguntou, analisando a sua postura enquanto posicionavam-se. Envolveu a cintura alheia com um de seus braços; os dedos das mãos deles dois entrelaçaram-se.

— Não. — Shion enfim respondeu a pergunta de Nezumi, sendo guiado por este pelo quarto. — Mas eu dancei uma vez com a minha mãe, e ela disse que eu danço muito bem.

Os cantos da boca de Nezumi curvaram-se para cima:

— É óbvio que você dança bem. Afinal, você teve um ótimo professor. — como que para dar ênfase ao que falara, girou Shion em uma espiral fluida. Ele ficou um pouco desnorteado ao voltar à posição inicial em que estavam, mas, mesmo assim, Shion rebateu:

— Metido.

Nezumi riu alto, e Shion sorriu diante tal risada sincera. Há quanto tempo ele não a ouvia? Há onze anos, sua mente respondeu sua pergunta retórica. Quanta coisa mudara em onze anos... Entretanto, ao ver-se ainda sendo conduzido por Nezumi em passos lentos e ritmados, Shion percebeu que, felizmente, algumas coisas nunca mudariam.

— Eu vi uma lápide pequena na parte de trás do seu quintal. — Nezumi comentou repentinamente, sem interromper a dança. —Tsukiyo está enterrado ali?

Shion apoiou sua cabeça no ombro alheio, inspirando fundo para captar o máximo do perfume natural que emanava Nezumi. Ele permaneceu nessa posição ao, enfim, conseguir respondê-lo sem fraquejar a voz:

— Sim. Isso foi há uns oito anos. — na verdade, há exatos oito anos e seis meses, porém Shion não admitiria isso em voz alta. — E Cravat e Hamlet? — a pergunta foi recebida por silêncio, e Shion entendeu a mensagem.

Ambos ficaram mudos — era como se estivessem honrando a memória dos ratos, que os acompanharam tão fielmente, com um momento de silêncio. A dança prosseguiu, expressando o que palavras não eram capazes. Aquilo já se tornara natural entre eles; não havia mais a necessidade de Nezumi recitar one-two-three para que eles se mantivessem ritmados. Mas, afinal, que ritmo era esse? Ainda com sua cabeça apoiada no peito de Nezumi, Shion contou o tum-tum-tum agradável sob seu ouvido.

Eles estavam em ritmo com as batidas do coração de Nezumi.

Isso quer dizer que eu estou vivo, e é tudo que você precisa saber sobre mim — a mente de Shion sussurrou as palavras de forma doce, e ele teve de reprimir um sorriso de surgir em seus lábios. Quando pedira que Nezumi falasse mais sobre si mesmo, ele recebera essa resposta. Depois de onze anos, aquele homem de cativantes olhos prateados finalmente abrira-se por completo para ele. Sim, no final das contas, Shion não se arrependia do tempo que passaram separados — isso havia sido para o melhor.

Seu corpo estava próximo do de Nezumi, em total sintonia. Eles estavam juntos, enfim. Eles eram um casal? Shion fazia a mínima ideia, e apostava que Nezumi também não saberia responder essa pergunta. Rótulos banais não eram capazes de descrevê-los corretamente; rótulos banais não eram necessários entre eles. Shion e Nezumi simplesmente eram — e isso era mais do que suficiente.

No entanto, como lhe era feitio, Shion ainda possuía uma dúvida:

— Eu não tenho vontade de fazer sexo com você. — rompeu o silêncio, e Nezumi pareceu não entender o que ouvira:

— Oi?

Shion franziu o cenho, alheio à perplexidade do outro:

— As pessoas... Elas sentem atração sexual quando amam alguém. Eu não sinto isso. — Nezumi parou de dançar subitamente, porém Shion o forçou a continuar. O homem de cabelos azuis sorriu da sua insistência, antes de retomar os passos, protelando dizer algo. Ao notar que Shion esperava uma resposta sua, finalmente falou:

— Eu deveria ficar decepcionado com isso... — Nezumi ergueu as sobrancelhas em dúvida, não compreendendo onde o outro queria chegar.

— Mas...? — Shion mostrou expectativa para saber seu ponto de vista.

— Mas eu sempre vi sexo como um meio de obter algo material das pessoas, então não possuo uma opinião positiva sobre o assunto. — Nezumi fez uma careta, e Shion soltou um suspiro de alívio: então estamos de acordo nesse ponto, que bom.

— Talvez dançar seja a nossa forma de fazer sexo. — o homem de cabelos brancos sugeriu, e Nezumi revirou os olhos:

— Shion. — chamou-o, e foi prontamente atendido:

— Sim?

— Cale a boca.


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Notas finais do capítulo

Eu acho que uma parte de mim morreu, depois de me esforçar tanto para escrever essa conversa NezuShi. Sério, foram quatro páginas só de conversa entre eles, que sofrimento :s Bom, espero que tenham gostado do capítulo, e até o próximo õ/
PS.: Fico muito feliz em ver que tanta gente marcou a história nos acompanhamentos, sério, eu não esperava tanto feedback assim, muito obrigada *-* Btw, eu não mordo, ok? :v