Camélia escrita por SatineHarmony


Capítulo 3
Frio/Quente




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Nezumi sentia-se feito um anjo da morte. Ele vagava pela extensa casa de Shion, como se esperasse pela partida de Inukashi, para cantar-lhe uma música e poder finalmente ir embora.

O seu desconforto alcançara níveis extremos, e observar aquela casa cheia de vida, cheia de pessoas, deixava-o com um gosto amargo na boca, e uma sensação de enjoo. Parecia que, afinal, após passar anos afastado da civilização, socializando com indivíduos apenas quando estritamente necessário, ele finalmente perdera sua capacidade de lidar com pessoas.

Todos pareciam estar ocupados com algo, cumprindo um objetivo de vida — Rikiga passava tardes inteiras trabalhando no jornal, Karan parava de assar pães apenas para preparar as refeições da casa, o menino Shion ia à escola todos os dias —, enquanto Nezumi simplesmente estava ali. Até mesmo Inukashi, apesar de estar doente, caminhava pela casa, interagindo com todos de tal forma convidativa que Nezumi estranhara à primeira vista. No entanto, ela evitava ir à parte da padaria, pois sabia que os clientes não ficariam muito confortáveis em ver alguém carregando um suporte de soro de um lado para o outro.

Na manhã seguinte à sua chegada em No. 6, Nezumi descobrira o horário espartano de trabalho de Shion — e finalmente entendera as reclamações de Karan sobre os excessos do rapaz. Porém, ele não esperava coisa diferente de Shion; ao ter a oportunidade de consertar algo, o homem sempre dava o seu melhor. E, pelos elogios que Nezumi escutou de Karan acerca dos feitos de Shion, parecia que ele estava realizando um bom trabalho.

Nezumi alternava entre passear pela nova No. 6 e ajudar Karan na cozinha — algo que rendia muitas risadas da parte de Inukashi. Algumas noites, Shion se dava ao luxo de dormir mais tarde apenas para conversar a sós com Nezumi na sala de jantar, após todos terem ido para suas respectivas camas. Shion falava sobre seus projetos que visavam à reconstrução da No. 6, e, em troca, Nezumi lhe contava histórias de acontecimentos que presenciara durante os onze anos que passara rondando pelo mundo.

Por mais que eles tivessem passado inúmeras horas conversando, e tentando compensar pelo tempo perdido, nenhum dos dois teve coragem de fazer as perguntas que tanto martelavam suas cabeças há mais de dez anos.

* * *

As mãos de Karan afofavam a massa crua de um jeito delicado, e com clara experiência. Percebendo o olhar interessado que o homem dava ao que ela estava fazendo, a mulher virou-se para ele:

— Você quer tentar, Nezumi?

Este assentiu silenciosamente, abandonando sua postura indiferente para juntar-se a ela no balcão. Ao ver a forma como as mãos alheias se moviam, Karan virou-se para ele com uma expressão interrogativa:

— Você gosta de cozinhar, Nezumi? — perguntou, exibindo um sorriso agradável. — Você parece ter uma técnica própria para o preparo; por acaso você já fez isso antes?

— Eu sempre cozinhei para mim mesmo. — deu de ombros. Karan não pareceu se importar com a sucintez de Nezumi:

— Eu não me importaria em ter um ajudante de cozinha enquanto você estiver aqui. — seu tom de voz era sugestivo, e Nezumi deu um meio-sorriso diante da simplicidade dos pensamentos daquela mulher:

— Então parece que você acabou de ganhar um souschef, Karan. — afirmou, e ela deu-lhe um breve abraço antes de voltar a trabalhar na massa. Estranhando a ausência de comentários provocadores de Inukashi a tal manifestação de afeto, o olhar de Nezumi buscou-a pela cozinha, e a encontrou sentada quietamente numa cadeira. Seu rosto aparentava estar mais febril do que o normal, e sua respiração estava ofegante. — Inukashi? — perguntou.

Ela só foi capaz de fazer um mínimo sinal negativo com a cabeça; fadiga era quase tangível em seus movimentos. Logo em seguida, Inukashi desatou a tossir seco — seu corpo foi atravessado por espasmos repentinos, quase derrubando o seu suporte de soro.

Karan estava ao seu lado no segundo seguinte, auxiliando-a a levantar-se.

— Nezumi, nós temos de levá-lo de volta para o quarto; é lá que estão os equipamentos. — avisou. — Pegue máscaras e luvas no armário de baixo, rápido, por favor. — pediu, apontando para o compartimento onde estavam guardados os objetos.

Quando Nezumi estava preparado para levar Inukashi em seus braços para o andar de cima, o seu acesso de tosse já estava mais controlado. Protegidos por máscaras cirúrgicas e luvas, ele carregou a garota, enquanto Karan o acompanhava de perto, levando o suporte de soro, com cuidado para não desconectar a agulha.

Inukashi foi posta sobre a sua cama com o maior carinho do mundo, e Karan não perdeu tempo, colocando logo um respirador na garota. Nezumi admirou ver aquela mulher, de cabelos já grisalhos e olhos tão doces, agir de forma determinada e profissional.

— Por ora, eu posso facilitar a respiração para Inukashi. — Karan comentou, e sua voz era urgente, porém calma; algo que Nezumi achou estranhamente paradoxal. — Isso nunca aconteceu antes, então o melhor a se fazer é chamar o Shion. Você pode ir à prefeitura avisá-lo, por favor, Nezumi?

Karan mal havia terminado de falar, quando Nezumi retirou-se do quarto com passos apressados.

* * *

Nezumi chegou ao seu destino em menos de meia hora. Ele não sabia ao certo se teria sido mais inteligente pegar um transporte público até a prefeitura; com tal situação presente, não era momento de ponderar, e sim de agir.

Ao indagar com a secretária da recepção se poderia ver Shion, ela o informou que ele estava em uma reunião importante. Nezumi debruçou-se sobre o balcão, colocando uma mecha do seu cabelo azul atrás da orelha. Os olhos da secretária seguiram atenciosamente o movimento.

— Talvez você possa abrir uma exceção para mim, por favor? — sua voz estava tomada por uma hesitação falsa, e seu olhar era de súplica dissimulada. Ela mostrou interesse:

— Talvez, se você... — a jovem interrompeu-se no meio da frase, e sua fisionomia tornou-se repentinamente desapontada: — Ah, Shion-san acabou de aparecer. — não havia emoção alguma em suas palavras. Ela indicou algo atrás de Nezumi, e ele olhou por cima do ombro.

Shion estava atravessando portas-duplas até o saguão onde Nezumi estava. Ele estava absorto em uma conversa com o homem ao seu lado, gesticulando entusiasmadamente para as pastas em suas mãos. O olhar de Nezumi percorreu o estranho próximo de Shion. Cabelos brancos, corpo magro e frágil, indicando má saúde. Sua face mostrava claramente um passado com completa falta de cuidados. Entretanto, aquele rosto podia enrugar e envelhecer o quanto quisesse, que Nezumi mesmo assim seria capaz de reconhecê-lo.

Não era possível.

Aquilo era impossível.

Improvável, extremamente improvável. Uma chance em um milhão — e, como sempre, Shion vencera na loteria dos infortúnios.

Nezumi trincou os dentes, e seu corpo ficou estático. Contemplou a ideia de dar meia-volta e ir embora, porém ele sabia que Shion era necessário agora. Inspirou fundo, e tentou canalizar a tensão que sentia para suas mãos, fechadas em punhos. A secretária lançou-lhe um olhar confuso, porém ele a ignorou, dando-lhe as costas.

Shion notou a aproximação de Nezumi, e não pensou duas vezes antes de correr em sua direção:

— Algo aconteceu com Inukashi, não foi? — perguntou, franzindo os lábios de preocupação. O homem com o qual ele estava conversando andou mais rápido, para permanecer ao lado de Shion. Este não se esqueceu das suas boas maneiras: — Kensei-san, Nezumi. Nezumi, Kensei-san. — gesticulou entre eles dois, apresentando-os de forma apressada. Então se virou para o mais velho: — Kensei-san, uma emergência surgiu em casa e temo que não poderei voltar hoje. Portanto, você pode tirar uma folga, ok? — fez uma breve reverência, e não hesitou em puxar Nezumi pelo braço e sair do recinto. — Quais são os sintomas? — perguntou, enquanto seguia para o bicicletário em frente à prefeitura.

— Tosse seca, dificuldade para respirar, e febre. — respondeu, enquanto subia com ele na sua bicicleta. Mais tarde, ele teria uma conversa com Shion sobre como homens de vinte e sete anos não vão ao trabalho de bicicleta.

— Você tem certeza de que é tosse seca? — questionou ele, enquanto começava a pedalar rapidamente. Ao sentir Nezumi assentiu contra suas costas, suspirou de alívio: — Então já posso garantir que não é tuberculose. Mas também pode ser outras doenças muito piores...

A mente de Shion estava trabalhando tanto que Nezumi era quase capaz de ouvir as engrenagens girando. No entanto, a cabeça do homem de cabelos azuis estava recheada de imagens do "Kensei". O que diabos esse salafrário quer com Shion?

* * *

— Inukashi, como você se sente? — Shion perguntou, enquanto monitorava seus batimentos cardíacos pela máquina. Quando ele e Nezumi chegaram a casa, ela já estava mais calma e respirando com mais facilidade, porém seu rosto mostrava que ela estava exausta.

— Eu acho que estou tão quente quanto uma fogueira, e muito cansado. Fica difícil de respirar em alguns momentos, e eu estou com uma coceira irritante por aqui — indicou para a área de sua garganta. — Meu peito dói como se tivessem colocado tijolos sobre ele. — inspirou fundo após terminar de falar, ficando minimamente sem fôlego.

Shion baixou a cabeça, pensativo. Uma expressão de esclarecimento logo apareceu em seu rosto, porém, quase no mesmo instante, ele mordeu o lábio inferior com pesar. Alheio aos olhares interrogativos de Nezumi e Inukashi, foi até o balcão presente no quarto, tirando uma caixa de lenços de uma das gavetas.

— Assoe o nariz, Inukashi, por favor. — pediu, entregando-lhe o objeto. A garota pareceu ficar com nojo de fazer tal coisa, no entanto não contestou, diante da seriedade de Shion. Depois, ela tentou não ficar enojada ao vê-lo segurar o lenço usado. — Inukashi, eu vou ficar um tempo no laboratório, mas volto daqui a pouco, ok? Eu sei que você não gosta disso, mas seria melhor se você passasse o resto do dia deitado na cama.

Após a garota assentir obedientemente, Shion retirou-se do cômodo em silêncio. Nezumi ficou um tempo em pé, apenas observando a cena que se fizera à sua frente. Ele sempre soubera que Inukashi era uma pessoa amena por dentro — bem dentro —, porém era impossível acostumar-se com a ideia de ela seguir ordens — ordens de Shion "cabeça de vento", ainda por cima.

Nezumi atravessou a porta ao lado da do quarto de Inukashi, encontrando Shion com suas costas apoiadas numa das paredes do laboratório, como se estivesse sem forças para ficar de pé sozinho. Seu olhar estava preso ao lenço aberto em suas mãos.

— Está amarelo. — sua voz era um mero sussurrou. Nezumi avançou, pegando uma das banquetas disponíveis, e levando-a até Shion. Ajudou o homem de cabelos claros a se sentar, e manteve uma mão sobre a sua maçã do rosto pálida, fazendo movimentos circulares com o polegar para acalmá-lo. Shion deixou-se ser manuseado, fechando os olhos enquanto lágrimas silenciosas escorriam. — Inukashi está com pneumonia.

Nezumi tentou secar algumas das lágrimas de Shion:

— Isso já era previsto, Shion. Você sabe que a hora dele está chegando. Não tem jeito; você não é capaz de impedir isso de acontecer.

Shion afastou seu rosto das mãos de Nezumi de forma brusca, levantando-se com movimentos hesitantes. Ele balançou a cabeça para se recompor:

— Não me leve a mal, mas eu estou lidando com isso há mais de seis meses, e escutar conselhos de você, que só está aqui há uma semana, me deixa muito irritado. — bufou de desprezo, deixando a frustração fluir por sua fala.

— É mesmo? — Nezumi ergueu uma sobrancelha. — Você não costumava ser tão ignorante assim, Shion. Isso foi algo causado pela sua velhice? — alfinetou. — Por acaso você está com vontade de me bater agora?

Movendo-se com mais fluidez e velocidade do que em sua adolescência, Shion aproximou-se com passos rápidos e silenciosos, avançando nas mãos de Nezumi. Envolveu um de seus pulsos, e, quando estava prestes a fazer o mesmo com o outro, Shion perdeu o equilíbrio ao sentir o pé de Nezumi enganchar num dos seus tornozelos.

Assim, Shion e Nezumi caíram no chão. No instante em que suas costas bateram no piso duro, Shion começou a rir — era uma risada descontrolada, quase inumana. Nezumi o observou do rabo do olho com desconfiança, até notar que a gargalhada era autêntica. Parecendo finalmente notar que seu comportamento não era adequado para o momento, Shion trincou os dentes para reprimir suas risadas.

— Shion, você bateu com a sua cabeça? — Nezumi franziu o cenho, exibindo real preocupação. — O que diabos foi tudo isso?

Shion acomodou-se sobre o chão, deitando de bruços. Virou seu rosto na direção do de Nezumi, e seu rosto mostrava constrangimento pelas suas ações:

— Eu pretendia prender seus pulsos nas suas costas, para mostrá-lo que eu não preciso bater em você para calá-lo. — sua justificativa só deixou Nezumi mais confuso. — Onze anos e eu ainda não sou capaz de derrubá-lo. — estalou a língua de desaprovação. — Você sabia que eu estudei defesa pessoal? Não acredito que, mesmo assim, eu não consigo vencer de você em uma luta.

— Shion... — Nezumi tentou reprimir um sorriso, porém falhou miseravelmente. — Você é louco. — enunciou cada palavra com clareza, sentindo o significado delas penetrar em seu cérebro. Deus, o quanto ele sentira falta do nonsense de Shion?

Logo o homem estava de pé, colocando um jaleco e um par de luvas. Sua fisionomia tornara-se séria repentinamente:

— Levante-se, Nezumi. Nós temos de pegar novos remédios para Inukashi.

O outro se sobressaltou com mais uma mudança extrema de assunto. Seus olhos estreitaram-se de realização — Então é assim que você está conseguindo suportar essa tragédia, Shion. Você está desfrutando dos menores momentos felizes do seu dia-a-dia.

Nezumi levantou-se, observando silenciosamente Shion considerar um armário de medicamentos. O homem poderia não ter força física para derrubar Nezumi, porém ele parecia possuir uma força de vontade infinita.

Nezumi o invejava por isso.

* * *

Esperou a secretária distrair-se com um telefonema para passar pelo balcão de forma ágil, e despercebido. Atravessou o saguão com passos apressados, e seguiu para as portas-duplas que vira Shion atravessar na manhã daquele mesmo dia.

A antessala que Nezumi adentrou estava, por sorte, deserta. Havia doze portas de madeira, e cada uma delas apresentava uma placa com um nome diferente inscrito. A maioria delas era enfeitada com coisas inúteis, e Nezumi teve de conter um sorriso ao avistar a placa que procurava — ela era simples, e possuía apenas Shion escrito com letras garrafais em preto.

Foi até a porta com urgência, temendo ser visto por alguém. A maçaneta não hesitou em ceder sob seu toque, e ele entrou no cômodo sem dificuldade.

Nezumi viu-se, então, dentro de um escritório tão singelo quanto a placa que adornava a porta. Havia apenas o necessário — uma escrivaninha com duas cadeiras, e estantes cobrindo todas as paredes. Sem quadros e sem decorações, era um local limpo e objetivo. Bem Shion, de fato.

Virou-se para a escrivaninha, analisando os documentos deixados por Shion ali. Mal começara a fazê-lo quando escutou a porta atrás de si ser aberta e fechada. Interrompeu seus movimentos, voltando-se para a entrada do gabinete com uma expressão de inocência dissimulada:

— Olá, Kensei. — ele nem sequer pestanejou para o homem, sentando-se numa das cadeiras vagas, e aparentando despreocupação. — Esse não é seu nome verdadeiro, não é? — franziu a testa em desafio.

— Não é preciso ser muito inteligente para saber que Nezumi também não é o seu nome verdadeiro. — rebateu, uma vez recuperando-se da surpresa de encontrar o homem no escritório. — Fiquei muito impressionado por encontrá-lo de novo, garoto. E finalmente compreendi tudo o que você me disse na última vez que nos encontramos. Quem diria que um dos líderes proeminentes de No. 6 seria o meu filho? — foi retórico, e o orgulho era claro na sua voz.

Nezumi revirou os olhos com a conversa fiada. No entanto, se ele fizesse os comentários certos, talvez conseguisse retirar alguma informação do homem à sua frente.

Eu estou impressionado por você ter conseguido chegar aqui inteiro, considerando o fato de que você é incapaz de proteger-se. — Nezumi bufou. — E então, como foi o reencontro com o seu filhinho e sua esposa?

— Não se faça de idiota, garoto, porque essa não é a sua cara. — Kensei acomodou-se na outra cadeira. Então esta seria uma conversa longa. Ótimo. — Eu sei que você está hospedado na casa do Shion, então você obviamente sabe que Karan se casou de novo.

— Estou surpreso que você tenha sido ingênuo o suficiente a ponto de pensar que ela esperaria por um velho sem valor feito você. — as palavras de Nezumi tiveram o mesmo efeito que adagas para o outro. — Sacie uma curiosidade minha: como você convenceu Shion a contratá-lo? Você é o secretário dele, se eu supus corretamente.

Kensei abriu um sorriso que mostrava algo entre orgulho e egocentrismo:

— Aquele menino, ele é muito bom para seu próprio bem. — balançou a cabeça em um movimento negativo, e Nezumi revirou os olhos. Isso era tão Shion. — Fingi ser um mendigo e pedi ajuda a ele. Disse que era um homem honesto e estava à procura de um emprego. Ele não pensou duas vezes antes de me fazer seu secretário. Ele criou o cargo por minha causa, sabia?

— Só Shion mesmo, para acreditar em tantas mentiras. — Nezumi fez uma careta. — Agora que estou aqui, eu irei ensinar uma ou duas coisas a ele. — abriu um sorriso falsamente agradável. — Cuidado, velho, se você sair da linha enquanto eu estiver pela cidade... — deixou a ameaça no ar.

— Sair da linha? Não sei do que você está falando. — Kensei foi sarcástico. Nezumi estreitou os olhos:

— Você se faz de idiota muito bem. — observou. — Talvez seja porque você é um de verdade. — deu uma gargalhada cheia de escárnio, mas voltou a ficar sério rapidamente: — Você sabe do que eu estou falando, velho. O ouro. O que você fez com ele?

Kensei colocou as mãos na frente de seu corpo, como se estivesse contendo algo:

— Espera aí, eu ofereci um acordo a você há mais de sete anos. Sinto muito, garoto, mas você está atrasado; agora é tarde demais.

Nezumi suspirou de impaciência. Talvez ele não aguentaria mais cinco minutos de conversa com tal ser lento — no entanto, Shion tinha a quem puxar.

— Eu estou pouco me fodendo para o ouro. Eu estou acima das pessoas que fazem qualquer coisa por dinheiro, muito obrigado. — sentiu-se ofendido por Kensei ter pensado tal coisa de si. — Eu estou deixando um aviso para você. Se você causar qualquer confusão relacionada ao ouro, e envolver o Shion no meio, eu o farei se arrepender profundamente disso.

— Boa sorte com isso, garoto. Shion nunca deixaria alguém se machucar por causa dele. — deu uma risada seca.

— Quem disse que Shion iria saber, caso algo acontecesse? — Nezumi agora abriu um sorriso docemente ameaçador, que era muito mais perturbador do que a sua ameaça em si.

Kensei não parecia se sentir nem um pouco intimidado:

— Você e Shion são namoradinhos, não estou correto? Você nunca faria isso com ele. Matar o pai dele seria algo péssimo para o seu histórico.

Nezumi trincou os dentes, recusando-se a responder tal afirmação estúpida. Tendo uma súbita mudança de pensamento, levantou-se da cadeira, rumando à única janela do cômodo. Abriu-a, avaliando a altura dela até o chão — não era muito alta; um salto bem aterrissado seria o suficiente.

— Meu aviso foi dado, portanto, se me der licença, vou-me embora. — posicionou-se sobre o parapeito com agilidade. — Sinto muito, porém não sou capaz de suportar longas conversas com ralé como você. — e jogou-se no vazio.

* * *

— Ei, ralé! — Nezumi escutou uma voz masculina gritar atrás de si. Apesar de saber que não era com ele que estavam falando, virou-se mesmo assim. A cena diante de si era uma mulher com roupas simples, que trancava a porta de uma loja de rua ao ser abordada por dois homens bem vestidos.

A mulher encolheu os ombros, fingindo não ouvir o insulto.

— Eu estou falando com você. — um dos homens segurou-a pelo ombro, e a pressionou contra a parede. — Não confunda os papéis aqui; quem deve ser ignorado são pessoas do Distrito Oeste, como você. Nós somos mais importantes do que você, nós vivemos há mais tempo em uma civilização do que você, portanto você não pode se dar ao luxo de nos ignorar.

A mulher fechou seus olhos com força, com medo de ver seus agressores. O outro homem decidiu assumir:

— Vocês, do Distrito Oeste, são que nem ratos. Vieram feito uma infestação quando o muro caiu, e destruíram toda a organização que tínhamos aqui. Antes de vocês chegarem, nós não sofríamos roubos, nem assassinatos. Nos hospitais, tinha espaço para todo mundo. Vocês estão matando pessoas, seus ratos nojentos.

A mulher não ouviu mais nada, e, estranhando o silêncio, ela abriu os olhos com hesitação. A primeira coisa que viu foi o corpo de ambos os homens jogados no chão, com marcas de soco no rosto, e nariz quebrado. Avistou um desconhecido de cabelos azuis a poucos metros de si:

— Muito obrigada... — ela interrompeu-se: — Qual é o seu nome?

Um sorriso:

— Nezumi.

* * *

Era noite quando Nezumi finalmente chegou em casa. Uma rápida olhada no relógio da rua disse-lhe que ele não estava atrasado para o jantar. Seguiu pela a hera que crescia próximo ao quarto de Inukashi, e surpreendeu-se ao encontrar a mesma sentada no parapeito da janela. Parou de escalar, encontrando uma posição segura, e esperou que a garota se pronunciasse:

— Eu poderia me jogar daqui. Um simples empurrão e tudo isso terminaria. — disse, com seus olhos fixos no luar à frente deles.

Nezumi gelou por um instante, mas lutou para retomar o controle de seu corpo rapidamente. Tentando manter uma máscara calma e confiante, falou:

— Mas você nunca faria isso, não é, Inukashi?

Ela riu de forma espalhafatosa, como sempre fazia:

— O que te faz pensar isso?

Nezumi parou por um momento, pensativo.

— Não sei. Talvez o fato de você ser a mulher mais corajosa e forte que já conheci. — isso foi dito em um sussurro quase inaudível.

Inukashi finalmente virou seu rosto para Nezumi, observando sua fisionomia para checar se ele estava mentindo. Ela pareceu satisfeita com o que viu, pois se retirou do parapeito, pousando com segurança dentro do quarto. Nezumi seguiu da hera diretamente para dentro de casa, em silêncio.

— Você está se movendo muito bem, para alguém com dores e febre. — notou ele.

— Vale a pena. — seu tom de voz era de desdém. — Agora eu posso morrer, porque Nezumi finalmente me elogiou. — deu um sorriso egocêntrico. — E eu sempre soube que era corajoso e forte; eu não precisava de você para me falar isso.

— Você é um cachorro muito estranho, Inukashi.

Ela revirou os olhos, não se importando com o insulto:

— Aponte uma pessoa dessa casa que seja normal. — ela o desafiou.

E não teve como Nezumi discordar de Inukashi.


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Notas finais do capítulo

Sobre quem diabos é o Kensei:
* Beyond é uma das light novels do universo de No. 6, que conta diferentes histórias que ocorreram antes, durante e depois da trama principal. Por exemplo, conta a história pessoal da Inukashi, a vida do Shion depois que o muro da No. 6 é derrubado, etc. Porém uma das histórias que mais me surpreendeu (e que me inspirou a escrever essa fanfic) foi a do Nezumi. Ele encontra o pai do Shion, que compartilha com ele uma grande descoberta: ele encontrou evidências de que existem reservas de ouro na região da No. 6. O pai do Shion oferece a Nezumi a oportunidade de voltar a No. 6 com ele, porém Nezumi a rejeita. O diálogo é muito interessante, e vale muito a pena ler: http://9th-ave.blogspot.com.br/2013/03/novel-no-6-beyond-ch-4-b.html
E é só isso ^^ Muito obrigada pelos reviews, eu fico muito feliz mesmo que tenha gente realmente lendo a minha fanfic. Até o próximo capítulo, e desculpa pela demora ç.ç