Elevador escrita por Miss Pond


Capítulo 1
Capitulo Único — O Fio.


Notas iniciais do capítulo

Espero de verdade que gostem.



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Os olhos tentavam resistir ao impulso de fechar enquanto as mãos tremiam violentamente ao segurar o volante. Não podia bater com o carro — seria uma morte muito violenta e poderia acabar com a vida de outros. Não era isso que ela queria; nenhuma das pessoas que buzinavam para sua direção descontrolada, ou observavam seu nervosismo nas calçadas, tinha qualquer coisa a ver com sua decisão.

Não. Isso era absolutamente algo só dela.

Era poético, o que estava fazendo. Indo para o prédio mais alto de sua cidade pequena e tão insignificante quanto sua vida. Ele possuía apenas nove andares e o terraço, mas era mais do que suficiente. Dependendo da forma com que caísse, não teria chance alguma de sobreviver.

Claro que pensara em formas mais fáceis de terminar sua jornada, mas para ela não parecia certo deixar que um amigo ou familiar encontrasse seu corpo ensanguentado na banheira ou frio em cima da cama com uma cápsula de analgésicos vazia ao lado. Não, seria muita crueldade. Ela queria que um estranho a achasse, e não desejava de forma alguma que pensassem que fora suicídio; fingir um acidente seria menos doloroso para aqueles que diziam se importar com ela. E talvez se importassem, de fato. Mas o amor deles não era suficiente... Às vezes os demônios gritam alto demais, mais alto do que qualquer voz que ofereça ajuda.

Júlia estacionou na primeira vaga que encontrou o mais próximo possível do edifício. Ela estava decidida, mas isso não impedia que estivesse ofegante. Entrou no prédio comercial pela porta da frente e ignorou todas as cabeças que se viraram para ela. A maioria das pessoas utilizava ternos e mais da metade delas possuía um telefone na mão. Rezou para que ninguém perguntasse quem era antes que chegasse ao elevador. Tinha dois deles, mas um possuía diversas pessoas à sua frente, apenas esperando. Dirigiu-se ao outro.

Clicou no botão para chamá-lo e aguardou em um impaciente silêncio. Estava inicialmente no quinto andar. Desceu como se nada importasse e ninguém estivesse com pressa, o que irritou Júlia, mas logo a mulher se obrigou a relaxar — não fazia sentido que qualquer coisa conseguisse irritá-la nos minutos finais de sua vida. Checou sua bolsa; o telefone estava ali. Era a única coisa que precisava para fingir que não fora suicídio. Quando enviasse uma mensagem a sua melhor amiga Viviane dizendo que precisava contar-lhe uma coisa engraçada, mas o sinal não estava ajudando, iriam presumir que fora ao terraço tentar encontrá-lo. Tropeçou e caiu para a morte; trágico, mas acidental.

As portas do elevador finalmente se abriram. Júlia entrou e apertou o botão para o terraço. Era isso. Sua última viagem. Observou os andares passarem com ansiedade, mas a máquina parou quando atingiu o número quatro. Um homem jovem, com cabelo encaracolado, terno aberto e informal, uma bolsa masculina e um livro na mão entrou. Ele estava inteiramente vestido de preto, mas tinha um sorriso simpático no rosto.

— Bom dia. — disse educadamente.

— Bom dia. — respondeu Júlia, resolvendo parecer normal. Seria a última pessoa a vê-la com vida e talvez tivesse que testemunhar sobre sua saúde mental. Era melhor que não a achasse louca.

Ele apertou o botão com o número 6.

— Indo para o terraço? — indagou. — Não tem muita coisa por lá, além de uma bela vista.

— Estou precisando espairecer, então uma bela vista não faria mal. — Lembrou-se de seu plano e acrescentou: — E o sinal lá em cima deve ser melhor.

O elevador havia acabado de passar pelo quinto andar.

— Não poderia concordar mais; com a parte sobre espairecer. Sobre o sinal, já não sei. Considero meio chato trabalhar aqui, então uma vez por semana me permito um cigarro e o vento do terraço. Você trabalha aqui? Nunca a vi antes deste momento.

— Eu... — começou Júlia, mas foi interrompida por um solavanco.

O elevador parou por completo e todos os seus botões escureceram e sua luz apagou. Em questão de segundos, uma nova luz surgiu, parecendo ser efeito de uma situação de emergência.

— O que aconteceu? — exclamou ela, apertando os botões incessantemente.

— Acho que faltou energia. — respondeu o homem. — Não entre em pânico, acontece de vez em quando. Por mais que digamos que precisamos de gerador de energia, os patrões não escutam. Olha isso! Lamentável.

— Eu não posso ficar presa aqui, tenho coisas a fazer! Coisas importantes. — Júlia exclamou, tentando apertar o botão de emergência, mas nada aconteceu quando o fez. — Droga.

O homem a observou em silêncio.

— O quê?

Ele deu de ombros.

— Eu pensei que iria lá pra cima para espairecer e encontrar sinal. Acho que isso não configura como importante, se me permite dizer. — Ele pareceu pensar no assunto. — Ou não era isso que você ia fazer?

— Mas é claro que era.

Cachinhos colocou sua bolsa no chão e cruzou os braços para Júlia.

— Você ia se jogar.

Era literalmente impossível ele saber disso, então a loira deduziu que seria apenas uma teoria. Teoria esta que ela pretendia negar com veemência.

— Por que eu faria isso?

— Não sei; não te conheço. Mas você não tem muita sorte, não. — ele sorriu. — Quer saber o que eu faço para ganhar dinheiro? Eu leio as pessoas, as entendo e as ajudo a superar o que as faz sofrer. — respondeu sem esperar que Julia manifestasse sua vontade de saber ou não. — Sou um psiquiatra.

— Que bom pra você, mas eu não preciso de ajuda. Eu não ia me jogar.

Ele suspira.

— Você não possuí nenhuma maquiagem, ou joia. Sua calça jeans está suja e sua blusa branca poderia ser tirada de um brechó, porque está rasgada.

— E o que isso tem a ver com suicídio?

— Sua bolsa é da Louis Vuitton e seu tênis da Nike. Ambos parecem verdadeiros. Se eu pedisse para tirar seu telefone celular da bolsa, tenho certeza que veria um iPhone 6 Plus, ou algo tão caro quanto. Você é rica, se importa com sua aparência e, no entanto, está vestida como alguém que não quer ser olhada. Quando pessoas vão se suicidar, elas tendem a se desmontar. E foi isso que você fez.

— Obrigada, Sherlock Holmes. — resmungou Júlia, escorregando para o chão e cruzando as pernas. — Acha que vai demorar muito para a energia retornar?

— Dá última vez foram duas horas. Dou dez minutos para começar a ficar muito quente aqui dentro. Sinto muito, mas não vai tirar a sua própria vida em nenhum momento próximo a este.

Júlia o encarou.

— Você está achando isso engraçado? Que tipo de psicólogo é você?

Ele se sentou à frente dela.

— Primeiro, sou um psiquiatra; é diferente. Segundo, não estou achando engraçado; estou tentando provar pra você o quão desnecessário essa atitude seria.

— Como sabe disso? Nem me conhece, como você mesmo disse. Não sabe o que existe aqui dentro. — ela apontou para a própria cabeça.

— Não sei mesmo. Mas acredito que nenhuma situação é ruim o bastante para justificar a ação de se matar.

— Nem todo mundo aguenta certos tipos de dores. Você, mais do que qualquer outro, deveria saber disso. Afinal, sua profissão é lidar com todo tipo de sofrimento e sofredor.

— Eu entendo perfeitamente que algumas pessoas não suportam as provações que a vida coloca em sua frente. Eu sei que para alguns simplesmente não faz sentido continuar lutando. E eu sei que você pode ser uma dessas pessoas. Mas, mesmo assim, o meu trabalho é fazê-la mudar de ideia.

— Não é seu trabalho. — lembrou-o Júlia. — Eu não te contratei.

— Você não precisa. Não poderia passar o resto da minha vida pensando que poderia ter salvado uma vida e escolhi o caminho mais fácil; desistir.

— É isso que pensa? Que estou escolhendo o caminho mais fácil?

— Sim. — respondeu prontamente. — Vamos fazer um acordo; você me diz por que tomou essa decisão, todos os seus medos e todos os seus fantasmas, e eu tento te convencer que é possível mandar tudo isso embora. Se não conseguir, deixo que suba até o terraço e se jogue. E ainda digo que foi um acidente, pois você estava muito sorridente, ou o que quer que seja.

Júlia se inclinou para frente.

— Está falando sério?

— Claro que estou. Eu não minto.

— Tudo bem.

— Então, me diga. Por quê? Se for mais fácil para você, feche os olhos e finja que está conversando consigo mesma.

Júlia fechou os olhos. Por um longo momento, o silêncio preencheu seus ouvidos; apenas sua respiração entrecortada era ouvida e a pressão de seu coração batendo forte contra seu peito, sentida. Percebeu que nunca tinha contado a ninguém sobre o que a assombrava. Nunca lhe ocorrera procurar um profissional, ou alguém que via todos os dias e dizia que a amava. Nunca deu a entender que algo estava errado, e nunca entendeu porque fazia isso. Não era atenção que queria? Não era que a enxergassem que precisava? Não, não era isso. Ela só queria que a dor parasse. Mas de onde veio à dor, pra começo de conversa?

— Eu não sei. — sussurrou ela. — Eu não sei de onde veio à dor. Ela simplesmente está aqui e não vai embora de forma alguma.

— Você tem que voltar. — ela ouviu o homem dizer. — Tem que voltar o máximo que puder. Tem que lembrar quando chorou e porque o fez. Tem que lembrar quem te machucou e quanto isso doeu. O quão profundo o corte foi. Não pode esperar que a dor vá embora se nunca a tentou curar.

— Está dizendo que sou uma péssima suicida porque não sei a fonte do sofrimento?

— Não. Estou dizendo que é uma péssima ideia ser suicida se não sabe nem de onde o sofrimento vem e se ele pode ir embora. Pense.

— Eu acho que...

Tudo vinha em flashes. Os motivos, as razões. As dores e os horrores. A raiva e a ira. As infelicidades e a solidão. As coisas que ela se obrigou a aguentar por anos e anos, algo que parecia vir dela, sem qualquer fator externo. Ela era o porquê — ela era errada, toda errada. Nada nela valia a pena. Era só isso.

— Me diga por quê. — ele pediu.

— Porque eu não valho nada. — respondeu Julia. — Eu não tenho nada que valha a pena. Tudo em mim é descartável.

— E por que você acredita nisso?

— Porque... — então ela se lembrou. — Porque me disseram isso. Muito tempo atrás.

— Quem disse?

Um sorriso falso, um olhar dourado. Cabelos loiros ao vento e a pele clara como porcelana. O biquíni vermelho combinando com o batom. Uma viagem aos Estados Unidos e uma bela praia. Uma garotinha que parecia ser sua miniatura correndo pela areia. A impaciência de alguém que preferia não ter o fardo de cuidar de outra vida. Os gritos da desconfiança, a dor de uma separação. Um homem arrependido e uma mulher enfurecida. Uma criança chorando e sentindo na pele o que era ser culpada por algo que não fez.

— Você. — A mulher gritou enquanto segurava seus bracinhos. — Depois que você nasceu ele não me queria mais. Eu fiquei flácida e feia. E por isso ele arranjou outra. É tudo culpa sua, sua idiota inútil. Você não presta, assim como seu pai.

Júlia abriu os olhos, tremendo.

— Você lembrou. — disse o homem. — Me diga.

— Minha mãe... É culpa dela. Ela... Disse-me isso. Porque meu pai... A traiu.

— E você não lembrava disso?

— Eu lembrava que meu pai e minha mãe se separaram quando eu era um bebê praticamente, mas não tinha consciência que ela me culpava. — ela o olhou. — É mesmo possível que tenha sido isso esse tempo todo?

— Você acredita que tenha sido isso?

— Não. — Júlia sussurrou, as lágrimas se amontoando em seus olhos. — Eu só quero que a dor acabe. E eu sei que a culpa não foi minha. Eu não sei porque dói tanto. Eu simplesmente não sei de onde toda essa confusão dentro de mim vem.

O homem se arrastou até o lado dela e se encostou na parede do elevador.

— Você acredita em Deus?

— Na verdade, não.

— Em quê você acredita?

Ela suspirou.

— Eu espero que tenha algo melhor do outro lado.

— O outro lado seria uma espécie de nova vida?

— Não... Algo melhor que isso. Eu... Eu só quero ser feliz.

— Não acha que poderia ser feliz aqui, na terra? Superando os seus medos, sejam eles quais forem, e recomeçando sempre que precisar recomeçar?

— Se eu achasse, não estaria aqui nesse momento.

Ele colocou a mão em cima da dela.

— Me deixe ajudá-la.

— Como? — sussurrou Júlia. — Eu honestamente não me vejo superando.

— Eu tinha uma pessoa importante na minha vida. — disse ele. — Eu a amava e ela me amava. Éramos tão felizes... Tudo era perfeito; eu estava na faculdade e ela crescendo o restaurante da família. Mas eu não enxerguei que era tudo uma fachada. Ela tinha demônios interiores que eu não conseguia entender, não conseguia viver sem machucar a si mesma; todos os dias novas cicatrizes surgiam em seu corpo. Eu estava tão cego... Eu não sabia o que fazer. Até que não havia nada para fazer, porque ela resolveu acabar com tudo.

Ele entrelaçou seus dedos aos de Júlia.

— Então desisti da faculdade de direito e resolvi fazer medicina. Precisava ajudar pessoas para superar o fato de que não pude ajudar a mulher da minha vida.

— E superou?

— Não se supera a morte, loira. A desgraçada é definitiva demais para seguir em frente. A dor sempre vai ficar ali. Em alguns dias dói mais do que em outros, só isso. Então, cada um sabe a dor que traz no coração. Eu sei a minha e você sabe a sua. Estamos vivos, aqui e agora. E a morte não é caminho.

— E se for o caminho para mim?

Ele parecia triste.

— Não é. Confie em mim.

O elevador começou a se mexer e os dois se levantaram rapidamente. A máquina continuou a subir e parou no sexto andar. As portas se abriram e fecharam, mas o homem não saiu. O elevador continuou subindo.

Sétimo andar.

E o fio entre a vida e a morte nunca esteve tão fino. Iria ele arrebentar?

— É uma decisão egoísta. — sussurrou Júlia. — Mas eu sou uma pessoa egoísta.

Ela o olhou. Oitavo andar.

— É o caminho mais fácil. Mas algumas pessoas simplesmente não suportam a dor.

Nono andar.

— Você é uma dessas pessoas?

Terraço.

Uma única palavra. Uma afirmação. Uma negação. Três letras. Seu destino segurado por apenas três letras. O fio estava soltando...

As portas do elevador se abriram.

O fio estava solto. Uma única resposta. Uma única pergunta.

Sim ou não?


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Notas finais do capítulo

Obrigada por ter chegado até aqui! Que tal me deixar saber sua opinião nos comentários?