A Janela escrita por Leandro Zapata


Capítulo 1
2167


Notas iniciais do capítulo

Essa história é originalmente postada no blog Um Dia Frio, de minha autoria:
congelante.blogspot.com.br



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O fraquíssimo sol entrou pela janela de Hazel quando o dia amanheceu como costumava acontecer todos os dias nos últimos três anos, infelizmente. Ela não queria levantar da cama; queria ficar deitada. Contudo, assim como todos os moradores da Colônia de Odessa, ela tinha de se levantar às 5 da manhã e trabalhar. Ela, felizmente, não tinha o pior dos empregos: trabalhava na Usina de Tratamento de Água Salgada de Odessa.

Ela levantou-se. Sua mãe, Brigitte Brown, já estava pronta e escolhia as pílulas de café da manhã para as duas. Brigitte também trabalhava na Usina, mas havia sido rebaixada a uma relis faxineira há três anos, quando o incidente no Domo Natural aconteceu. Hazel afastou o pensamento; não queria se lembrar mais uma vez daquele dia.

Um banho de cinco minutos era o máximo que os moradores de sua classe tinham direito por dia. Ela entrou no banheiro, tirou as roupas e posicionou-se sob o chuveiro. Não havia uma torneira para girar e ligá-lo, mas sim um leitor de digitais. Ela colocou seu dedão sobre a leitora, alguns segundos depois sua foto apareceu em uma tela de no máximo dez centímetros de comprimento. Ao lado da foto dizia:

Nome: Hazel Emmett Brown

Nascimento: 15/05/2149

Classe: Baixa

Um timer surgiu em seguida. Cinco minutos começaram a regressar e a água fria a sair do chuveiro. Ela ficou olhando o timer, assim parecia que ele passava mais devagar. Não lavou seus longos cabelos castanhos naquele dia, de fato, podia lavá-lo apenas uma vez na semana com autorização especial dada pelo Lorde Neuron, Senhor Supremo do Mundo.

Colocou o uniforme. Um macacão cinza com as iniciais em vermelho costuradas sobre seio esquerdo da jovem: U.T.A.S.O. Ela se olhou pelo espelho e se odiou. Se não fosse pelo que acontecera no Domo Natural, eles seriam da Classe Alta e, portanto, ela poderia ir para Faculdade de Tecnologia de Tóquio, na Colônia de Tóquio. Entretanto, por causa dela, ela e sua mãe estavam presas a Odessa para sempre.

Enquanto estava no ponto de ônibus, ela olhou para o céu. O sol atravessava e refletia no Domo ao mesmo tempo. Apenas de dia era possível ver a redoma de vidro que cercava a cidade. Aquele Domo era o que tornava o oxigênio da cidade respirável, ao contrário to resto do mundo. Se alguém saísse das Trezes Colônias e de seus Domos protetores, morreria sem ar no deserto.

Felizmente, Lorde Neuron, o Senhor Supremo do Mundo, criou aqueles Domos para que a vida humana pudesse continuar. Se é que aquilo podia chamar-se de vida.

Contudo, havia algumas vantagens. Por exemplo, ela subiu no ônibus, que não tinha rodas: ele flutuava alguns centímetros sobre o chão e era movido puramente a luz solar, portanto, não poluía mais o meio ambiente. Uma pena que o meio ambiente não mais existia. Os passageiros que usufruiriam daquele ônibus fizeram fila para entrar; quando chegou a vez de Hazel, ela colocou o polegar em uma leitora, muito parecida com aquela que tinha em seu banheiro, ao lado do motorista. Sua foto, data de nascimento e classe social apareceram. Outra vantagem era que, sendo da classe baixa, o ônibus era de graça para ela.

A Usina de Tratamento de Água Salgada de Odessa era uma das mais modernas do mundo. Tinha capacidade de tratamento com mais de 100.000 litros de água por segundo. Lorde Neuron, sem dúvida, havia criado o projeto daquele lugar. A função de Hazel era simples: ela passava o dia sentada diante de um holocomputer - um computador que era feito de hologramas - observando como estavam as máquinas e o sistema de tratamento. Se algo parecesse estar funcionando erroneamente, ela deveria acionar seu supervisor, que, por sua vez, avisaria o setor de manutenção para verificar.

Nunca, em toda história de 25 anos daquela Usina, o sistema falhou. Lorde Neuron, o Senhor Supremo do Mundo, se alegrava com isso.

Quando Nick Hedge chegou para substituí-la para o turno da noite, Hazel ficou aliviada. Não fizera nada o dia todo. Além dos minutos de almoço que tivera, não conversou com ninguém, afinal, trabalhava em uma sala sozinha e só poderia acionar seu supervisor se algo parecesse errado.

No ônibus, de volta para casa, dois polícias da chamada Coalition subiram. Um deles parou diante dos passageiros, e o outro conectou seu celular na leitora de digitais. Ele estava conferindo a identidade das pessoas que entraram no ônibus, e que ainda estavam. Eles teriam então, um check-list.

- Boa noite, senhores usuários. - O policial disse; sua voz era mecanizada, como se saísse de um computador. - Desculpe atrapalhar a viagem de vocês. - Hazel estranhou; ele estava sendo muito educado para um membro do Coalition; algo estava errado. - Nós acreditamos que um membro da Cordis, o grupo de resistência que insiste em desafiar Lorde Neuron, Senhor Supremo do Mundo, está nesse ônibus. Meu parceiro está fazendo uma lista, nós vamos conferir a identidade de todos. Desculpem-me o transtorno.

O ônibus prosseguia com sua viagem. Hazel foi uma das primeiras a ter a identidade conferida, pois estava logo no terceiro banco do ônibus. Visto que ela não era quem eles procuravam, eles continuaram coletando as digitais.

Eles terminaram no ponto em que Hazel descia, há alguns quarteirões de sua casa. Com ela, outra mulher desceu; uma loira que também trabalhava na Usina, ou pelo menos era o que seu uniforme dizia. Os dois Coalition desceram também, aparentemente, quem procuravam no ônibus não estava lá.

Eles olharam para loira e sorriram maliciosamente. Hazel conhecia as histórias. Sabia que os membros da Coalition eram humanos e, consequentemente, tinham desejos carnais. Eles também eram máquinas, para assim serem mais facilmente controlados por Neuron, então não tinham sentimentos. Meio homens, meio máquinas, esses eram os policiais da Coalition, aqueles que eram a segurança das Treze Colônias.

Hazel tinha uma decisão a tomar. Sabia o que aqueles homens fariam. Ela sabia que ela era a única que poderia pará-los. Eu vou me arrepender disso, ela pensou. Hazel foi atrás deles.

Os homens agarraram a mulher e a arrastaram até um beco entre dois prédios abandonados. Algumas pessoas viram, mas ninguém ousou se meter com a Coalition. A mulher gritava, implorando por misericórdia.

- Melhor você não lutar. - Um dos policiais disse enquanto abria o cinto da calça; Hazel chegou a entrada do beco nesse momento. - Dói menos. - O outro policial segurava a mulher.

- EI! - Hazel gritou, sabendo que iria se arrepender depois. - O que pensam que estão fazendo?

- Caí fora, garota. Ou então será a próxima. - Ele disse, sem olhar para ela.

- Deixem a mulher em paz! - Vociferou.

O policial se virou, encarando Hazel com ódio. Apenas no escuro era possível ver que, dentro de seus olhos, havia um brilho vermelho. Era onde ficava uma de suas partes mecânicas.

- Pensando bem, você é muito mais gostosa que essa aqui. - Ele disse. - Solte-a, vamos brincar com essa outra.

Era hora de agir. Hazel esticou seus dois braços; suas mãos abertas, na direção dos policiais, que estranharam o gesto. A loira correu para fora do beco. Antes que os Coalition pudessem impedir, suas armas voaram para as mãos de Hazel, que as agarrou pelo punho. Eles não entenderam. O que a garota estava fazen...? Eles não terminaram seus pensamentos, pois Hazel atirara com as duas armas ao mesmo tempo, atingindo-os exatamente entre os olhos. Morreram instantaneamente. Hazel acertara seus cérebros orgânicos e mecânicos.

Ela jogou as armas no chão e chutou para seus donos originais. Aquelas armas tinham localizadores GPS. Hazel estava arrependida. Era claro que estava! Ela aprendera a controlar aquilo, mas apenas para que outro incidente como o do Domo Natural não acontecesse. Ela prometera que nunca mais usaria aquilo, mas não apenas usou seu poder como matou dois Coalition. Por Deus, suas digitais estavam nas armas, era apenas questão de tempo que descobrissem que fora ela. O que aconteceria com ela e com sua mãe?

Ao chegar a casa, um pequeno apartamento, sua mãe não estava. Brigitte sempre chegava mais cedo que ela. Onde ela estava? Entrou no seu quarto, e não conteve o grito. Um homem estava sentado em uma cadeira de plástico que ela costumava jogar suas roupas sujas.

- Que merda...? - Ela perguntou, mas correu de volta a sala.

Ela agarrou um velho taco de baseball que pertencera a seu pai. Virou-se para o pequeno corredor que ligava os quartos a sala. O homem estava lá, encarando-a como se ela fosse um rato de laboratório.

- Boa noite, senhorita Brown. - Ele disse; sua voz era suave e grave, e não tinha nada de mecânica. Ele não era da Coalition.

- Quem é você? Como sabe meu nome?

- Oh. Que grosseria a minha. Eu sou o Dr. Jack Lake Harkness. Sei teu nome por que tua mãe me disse há menos de um minuto.

- Onde ela está?

- Segura. Ela está com a Cordis.

- Merda. - Hazel xingou. - Merda, merda. Meu Deus, que merda.

- Eu vi o que você fez. - Ele disse. - Drina me contou.

- Quem? - Hazel nunca se sentiu tão confusa e encrencada como naquele momento. Nem mesmo durante o evento do Domo Natural ela se sentira tão mal.

- A mulher cuja vida você salvou. - Dr. Harkness respondeu. - Assim que ela passou por você, ela me contatou. Disse que alguém enfrentou os Coalition. Eu tinha que ver com meus próprios olhos.

- Isso foi a menos de quinze minutos! Como chegou tão rápido?

Ele puxou a manga do casaco da mão esquerda. Havia um relógio preso em seu pulso. Um relógio analógico! Com ponteiros e tudo! Hazel já ouvira falar deles, mas nunca vira, afinal não eram fabricados desde 2050, muitos anos antes de ela nascer.

- Este é um aparelho capaz de viagem instantânea pelo espaço. - Ele olhou para ela; seu rosto assumiu um tom sombrio. - Hazel, o que você fez sem dúvida a jogaria na cadeira elétrica, e sua mãe passaria o resto dos dias dela no Domo de Reabilitação Social de Alcatraz. - Hazel ouvira histórias de que Lorde Neuron adorava assistir as execuções de cadeira elétrica, e por isso o sistema ainda era mantido durante todos aqueles anos.

- Eu sei. - Hazel não costumava, muito menos gostava de chorar, mas naquele momento foi difícil conter as lágrimas. - Eu não pensei direito. Tudo que eu pensei foi naquela mulher que iria ser estuprada e morta.

- Eu entendo. - O Doutor aproximou-se dela. - Eu vim aqui recrutá-la para a Cordis. Sem dúvida, sua habilidade será muito útil para nós. É isso, ou a morte.

Hazel olhou para os olhos azuis do Dr. Lake Harkness. Ela conhecia as histórias do mundo. Sabia que o que ele dizia era verdade. Contudo, como ele poderia acreditar em um estranho que invadira sua casa, levara sua mãe e dizia ser da Cordis, a resistência? Ele estendeu a mão para ela.

- Eu posso te levar imediatamente até onde está sua mãe. Ela está bem, não se preocupe.

Hazel calculou suas possibilidades. Ela era uma assassina, as armas apontariam para ela mais cedo ou mais tarde; provavelmente, mais cedo. Em questão de horas a Coalition bateria em seu apartamento para levá-la. Se ficasse, seria morte na certa. Se fosse, havia uma pequena possibilidade dela sobreviver.

- Como posso ter certeza de que você tem minha mãe e de que ela está viva?

- Muito bem. - Ele disse. - Não esperava que você me seguisse cegamente.

Ele sacou um cubo do bolso interno de seu terno. Colocou-o sobre a precária mesa. Apertou um botão azul sobre ele. Um holocomputer surgiu.

- Você deve estar familiar com essas coisas, não? - Ele perguntou.

- Sim. - Hazel respondeu. Ela sentou diante dele. Havia um grande “S” no centro da tela. Ela não reconheceu o programa. - O que é esse programa?

- Chama-se Skype. As pessoas costumavam usar isso para se comunicarem uma com as outras no passado. Nós ainda o usamos porque é fácil esconder as comunicações feitas de Neuron.

Ela olhou a data no canto inferior da tela. 09/09/2167 e a hora. Aquelas datas nunca falhavam. Ela clicou no “S”. A imagem de sua mãe surgiu na tela. Ela sorria. Hazel não se lembrava da última vez que sua mãe tinha sorrido.

- Que dia é hoje? - Perguntou à imagem.

- 09/09/2167.

- Qual foi à última coisa que meu pai me disse?

- “Você nasceu para lutar, Hazel Brown. Então, lute com bravura”.

Naquele dia, três anos antes, apenas seu pai e sua mãe estavam presentes. Não havia câmera nem guardas. Era o último momento de privacidade da família Brown antes que seu patriarca fosse executado na cadeira elétrica. A mulher na tela era sua mãe.

- Mãe, onde a senhora está?

- Em um lugar que você jamais acreditaria! Venha com o Dr. Lake Harkness. Ele irá trazer você ao lugar certo, Hazel.

A garota desligou o holocomputer e olhou para o homem.

- Vamos.

Ela pegou em sua mão, e eles desapareceram sem deixar rastros.


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