O Doador de Sonhos escrita por Emanuel Hallef


Capítulo 5
Ato V - Suas energias estavam sendo drenadas. E o mundo não sobreviveu...


Notas iniciais do capítulo

Para uma melhor apreciação do capítulo, leia ouvindo: Never Alone: https://www.youtube.com/watch?v=x8QubLxJI54

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Retornou ao parque de diversões e o mundo parecia girar.

Não conseguia raciocinar direito e muito menos descrever o que sentia, mas algo lá fora chamava tanto sua atenção que seus joelhos forçaram-na a se levantar e espiar, através do vidro da janela da velha cabine da roda-gigante, o parque de diversões. Procurou pelo homem, mas não conseguiu encontrá-lo.

Ficou assim, deslembrada e oca, com os olhos mórbidos, procurando incansavelmente pela figura encapuzada.

Ao mesmo tempo em que lembrava, instintivamente, do que sentiu por meio do flashback (que não era bem uma simples recordação), a sensação de ter um tesouro e perdê-lo.

Não sei se você já perdeu alguém que amava. Mas a dor ultrapassa qualquer tipo de sensação... Você se vê abandonado e perdido, como se não existisse mais nada dentro de si. E foi isso, em cada pequeno detalhe e forma, que Anne sentiu.

Muitos me questionam ao ouvir essa história: mas Anne não perdera os pais. Tom, o homem encapuzado, que perdera. Porém, vale ressaltar que, naquele instante, quando a pobre menina viu as duas pessoas: a mãe, morta de um jeito vil (a cabeça rachada, as orelhas trituradas como se fossem simples pedaços de entulhos, e o corpo mutilado), e o sacrifico do pai, que foi muito além de um simples gesto espontâneo, ela sentiu absolutamente tudo.

De um pensamento feliz até o calor fulminante do fogo devorando o corpo do homem que se fez de escudo para proteger o próprio filho.

Ela era o próprio Tom. Os dois estavam ligados por um fio invisível e conectados de uma forma que Anne nunca viu antes. Poderia jurar a menina, que sentiu, até mesmo, os ferimentos de Tom.

E, agora, mais do nunca, ela queria vê-lo e entendê-lo melhor.

— Eu vi o corpo dele ser devorado pelas chamas — disse Tom, em murmúrios abafados, saindo de detrás do carrossel e ficando visível a Anne. Parecia calmo. E de fato estava. Por mais que soubesse e tivesse consciência dos sentimentos que bombardeavam Anne depois do flashback ao seu passado, nada ali importava para ele. Afinal, suas emoções foram arrecadas e sentir qualquer tipo de remorso não estava em seus planos. Talvez gostasse do que fizeram com ele. De certa forma, não ter humanidade deixava as coisas mais práticas e fáceis. Podia matar Anne agora mesmo e não completar o ritual, mas não perderia a boa sensação de ver alguém sofrer e sentir tudo que sentiu no passado. Quando sua existência era apenas um detalhe — Olhei por última vez nos olhos dele para me certificar que a morte o tinha levado. Continuei debaixo dele quando caímos... estava muito quente e eu senti o calor queimar minha pele, mas eu não queria sair. Eu não podia. Precisava senti-lo por última vez. Precisava ter esperanças que talvez seu coração ainda estivesse batendo e que ele tivesse forças o suficiente para me dizer qualquer coisa que fosse. Mas eu esperei em vão... Acabei desmaiando por causa dos ferimentos e acordei em frente aquela cabana.

— É bem mais fácil fingir que não tem mais humanidade. Continuar sem sentir emoções encurta o caminho. E é isso que está fazendo. Você fala que não tem mais humanidade. Que a arrancaram de você, mas ainda assim demonstra dor ao lembrar-se do sacrifício do seu pai... pode ter enganado todas as pessoas que trouxe aqui. Mas não me enganará. A mim não!

— Do que está falando? — rosnou Tom.

— Que você fingi ser uma pessoa que não é. Que acha que pode simplesmente esconder os problemas e seguir em frente como se nada tivesse acontecido. E é mentira! Não podemos esconder os problemas. É preciso enfrentá-los de frente e mostrar que somos superiores a ele.

— Eu só queria uma sombra pra existir do meu jeito. E não preciso e nem quero a sua opinião sobre a minha existência, por que...

Mas fora interrompido por um grande tintilar de sinos. O mesmo barulho que o atormentou nos capítulos anteriores. O homem encapuzado agora estava ajoelhado. Sentia que algo rasgava seus tímpanos sem piedade alguma. Que uma faca amolava seu fio de ferro em seus olhos, arrancando seus cílios um por um. A dor era tão forte e intensa que o homem se poupou de respirar.

Confusa e atônita, Anne viu as crianças (que antes eram estátuas feitas de fumaça, osso e esmeralda) ressurgirem do seu longo sono. Elas caminhavam em direção a Tom, que sentia suas passadas e tentava correr dali para se esconder. Mas o mágico, lá de cima do palco, lançou um chicote de suas vestes e amarrou os pés de Tom, que caiu violentamente no chão.

As luzes do parque se apagaram e o preto e branco se vivificou. As crianças, que não traziam, de princípio, nada em mão. Carregava um longo chicote cheio de espinhos robustos e finos.

E um deles usou a arma para chicotear a pobre figura encapuzada, que gemeu e soluçou.

As ex-estátuas reuniram-se ao redor do homem e começaram a chicoteá-lo sem piedade alguma. Lá da cabine Anne observava a cena e batia, ao mesmo tempo, no vidro da janela, tentando quebra-lo. Mas sem nenhum sucesso...
Depois de chicoteá-lo o suficiente para verem o sangue descer de suas costas e ensopar suas vestes, as crianças começaram a retornar para os seus postos.

— Você está bem, Tom? — perguntou Anne, aflita, com os olhos vermelhos e lacrimejantes.

— Não preciso da sua pena! Preciso do seu medo! PRECISO QUE TENHA MEDO DE MIM!

Mas, infelizmente, Tom não estava seguro. Quase que imediatamente, um fogo surgiu de dentro da terra que começou a consumi-lo. Anne se assustou e se entreolhou na cabine, tão penoso e vivo era o fogo que consumia Tom. Cada parte do seu corpo estava sendo queimado. Suas veias estavam em chamas; seu coração era um vulcão. O calor aumentava cada vez mais (e Tom, consecutivamente, se lembrou do sacrifício do seu pai). O pobre homem sentia tudo perecer em chamas. O fogo estava livre. As labaredas encontraram liberdade pela sua boca e ele sentiu o a dor nos lábios. Elas o rondeavam com a força de um tornado, mas sem perder a beleza da sua dança flamejante. O homem fechou a boca quando não havia mais chamas para sair, e quando o inferno que o rondava percebeu isso, dobrou a carga asfixiante e avançou... Tom viu toda a sua fúria. E então ele não era mais nada. Seu corpo desabou no chão e ali permaneceu.

Anne gritou tão alto que era possível ouvi-la a quilômetros de distância. Mas seu desespero fora substituído por um medo descomunal, pois acabara de notar dois seres muito estranho se aproximando de Tom. Não eram as crianças. Não era o mágico. E muito menos humano. Era um ser assustadoramente horripilante, com grandes unhas em forma de garras, um gorro negro cobrindo-lhe a cabeça e terminando nas ondulações dos braços finos da coisa. Não existia rosto ali. Apenas uma imensidão negra. Os dois seres se aproximaram de Tom. Um segurou no braço esquerdo dele e o outro no direito. Levantaram o corpo do rapaz e começaram a carregá-lo em direção a um pequeno desvio que ficava ao lado da montanha-russa.

Anne se levantou pronta para usar todas as forças que tinha para quebrar aquele vidro. Mas sofreu o maior susto que já lembrou ter sentido. Uma das coisas a observava com muita atenção, batendo as garras umas nas outras como se estivesse se preparando para uma refeição. Anne fechou os olhos e esperou pelo pior.

— Muito bem! Seu medo é o alimento deste parque e deste brinquedo — sussurrava a coisa. Tinha uma voz grave e aguda, sensual e ao mesmo tempo rude.

— Pra onde vão levá-lo? — perguntou Anne, sem olhar para a coisa.

— Digamos que vamos dar um choque de realidade nos neurônios daquele rapaz. E, enquanto fazemos isso, você vai prosseguir com seu destino. Até breve! — e então a coisa apertou no portão da máquina de caça-níquel. A roda gigante rangeu, e segundos depois retornara a girar...


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Notas finais do capítulo

Meu mundo paralelo, acesse: emanuelhallef.wordpress.com