O Doador de Sonhos escrita por Emanuel Hallef


Capítulo 2
Ato II - Mas tudo que pudesse dizer não bastava... ATUALIZADO


Notas iniciais do capítulo

Leia ouvindo "Secrets - One Republic": https://www.youtube.com/watch?v=qHm9MG9xw1o

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A garota continuava deitada sobre aquela areia molhada. Com os olhos vermelhos e inchados, os lábios de um roxo cáustico, pressionava os dentes tão fortemente na língua que, juntamente com a água que tossia para fora, o sangue deslizava e sujava seus seios expostos.

Tentava encontrar forças para se levantar... Tentava, somente, pois alguma coisa dentro de si a queimava: um desejo feroz e indomável, uma ânsia de vômito, e mal respirava como se dentro dela não houvesse lugar para o ar. “Venha me assombrar como da última vez. Liberte-me... — voltou a tossir, a água engasgando-a — desta prisão feita de sonhos e pesadelos”, recomeçara a sussurrar a música que cantara enquanto afundava no mar, e a canção se dissolvia por detrás de tudo: dos seus sentimentos, dos seus medos e, principalmente, das expectativas em relação a figura encapuzada (que tanto esperava ver; sentir seu toque, desejava-o com o mesmo ardor que desejamos a água quando estamos com sede).

Ergueu parte do seu corpo e agora estava sentada. Esfregou os olhos para enxergar além da escuridão e avistou um vulto se aproximando. A coisa andava entre as árvores sempre em sua direção. Anne não conseguiu distinguir um rosto; mas pelo jeito que o corpo caminhava e recuava em intervalos, dava para ver que lutava contra si próprio, tentando permanecer parado. Fosse quem fosse, era alto e usava um capuz que cobria a cabeça e sombreava seu rosto.

Vários passos depois, a distância entre eles cada vez menor — Anne percebeu que a figura encapuzada havia cedido a qualquer que fosse seu extinto, pois não forçava mais o corpo a parar, ao invés disso, caminhava com determinação em direção a ela.

A menina não esperava pelo pior, não esperava ser machucada...

Ela apenas queria que a coisa se aproximasse.

A figura parou diante dela e Anne fechou os olhos. A covardia era morna e a menina não se resignou... tomou fôlego e abriu a boca, esperando ouvir um grito agudo, mas a única coisa que ressoou foi:

“Um... Dois... Três...”

Então, inesperadamente, uma sensação veio-lhe subindo do seu coração pesado e célere, ensurdecendo-lhe os ouvidos, forçando-a a fechar os olhos e relaxar, pois tudo estava bem. Ela ficaria bem. Segundos depois, permaneceu ainda um instante parada, o rosto sem expressão, lasso e cansado. Aos poucos foi renascendo... abriu os olhos vagarosamente e voltou à luz do dia. Frágil, respirando de leve.

Por um segundo que parecia conter uma eternidade, Anne fitou o rosto da coisa e se surpreendeu, pois não viu um rosto, mas uma máscara de ossos enrubescidos e secos. Com os olhos vidrados e sem foco, como janelas de uma casa abandonada, Anne admirava aquela máscara. Nunca tinha visto algo tão assustador e encantador — não ao mesmo tempo. Isso a fez sorrir, e sua mão moveu-se sozinha em direção a bochecha da figura... Uma vez lá, começou a acaricia-lo, devagar, sentindo os ossos espetarem a palma da sua mão. A coisa imitou seu gesto e colocou seus dedos em cima dos de Anne, segurando-os e os tirando da sua bochecha com muita delicadeza. Quando a menina percebeu que sua mão não estava mais no lugar que colocou, veio-lhe uma saudade martelando seus pulmões e os perfurando, fazendo-a lembrar de uma cena:

“Estava em um bosque, debaixo de uma samambaia, ajoelhada, arrancando a grama com a mão esquerda, quando, por detrás de si, surgira um menino... Ele se ajoelhou e ficou ao lado dela: ‘O que aconteceu?’, perguntou, colocando sua mão em cima da mão da garota. Anne percebeu o gesto e esboçou um meio sorriso, fraco e quase sem expressão: ‘Minha irmã morreu...’, disse fungando, e uma lágrima desceu do seu olho puxado lentamente, mas não chegou a cair no chão, pois o menino a impediu: ‘Ela não morreu... Apenas viajou para um lugar muito, muito distante. Aposto como deve ter ido pegar doces’. Isso fez Anne sorrir, voltando a fungar: ‘Como é o seu nome?’, perguntou...”

O flashback acabou e, antes que a menina pudesse aceitar que alguma coisa iria acontecer, antes que pudesse sentir qualquer coisa além de atônita surpresa e arrebatamento, notou que alguém a levantava.

As mãos da coisa, abertas e grossas, moveram-se sob a coxa nua de Anne, fazendo-a voltar a realidade e perceber que continuava nua. Aquela figura, que parecia um homem, a via do jeito que nasceu. O mais interessante era: a menina não estava com vergonha. Não pôde deixar de notar seu próprio rosto sendo refletido por uma poça de água, formada por um pequeno buraco na areia da praia, onde o homem agora pisava em cima. Como ele se distraiu um instante, esquecendo a raiva, as dúvidas...

Sempre acontecendo alguma coisa para desviá-la da corrente principal. Era tão vulnerável...

Subiram alguns degraus e o homem moveu suas mãos lentamente, das nádegas da garota até as suas coxas. E, por conta disso, Anne não pode deixar de olhá-lo por um minuto. A figura não se deteve ao sentir o corpo da sua vítima vibrar, ao contrário, continuou caminhando para longe do mar como se não tivesse carregando uma mulher nua e pálida.

Estavam se aproximando de um parque de diversões abandonado. Quando ultrapassaram certo limite, rolando pela roleta acinzentada, as cores sumiram e, no lugar delas, um emaranhado de tons fortes e penosos, acompanhados por uma distorção em preto e branco, roubou a atenção de Anne.

Ao lado de onde estavam, uma montanha-russa seguia seu percurso sozinha, silenciosa, cortando o vento como uma navalha cega. À medida que exploravam o lugar, outros brinquedos apareciam... A esquerda, um carrossel girava, girava e girava, mudo e com lentidão. Os cavalos, todos quebrados — como se alguém tivesse usado as unhas para esculpir marcas e arrancado os fios que os segurava no ar —, cavalgavam gradativamente, rangendo e tintilando (como se fossem sinos de uma igreja).

A direita, crianças estavam reunidas em frente a um palco, esperando por alguma apresentação, talvez. Pareciam ter a mesma idade e o mesmo tamanho. Não conversavam entre si, não mexiam os membros do corpo e, tampouco, respiravam.

Porque eram fantasmas feitos de fumaça, osso e diamante.

— Estamos quase chegando... — anunciou o homem encapuzado com indolência, quando passaram em frente a várias máquinas de caça-níquel e brinquedos de variados tipos.

Anne viu, de relance, alguns balões preso a algo. Lembrou-se que sempre gostou de balões, os achava fascinante e sempre procurava entender como conseguiam ficar flutuando apenas com uma corda os segurando. Foi quando no meio do raciocínio, ainda com um sorriso no rosto, teve outra recordação. Desta vez muito mais viva:

“Estava correndo e saltitando em direção a um brinquedo desfocado, junto com o seu mais recente amigo: o menino que a consolara dias atrás. Tinham comprado sorvete de morando com pistache e o devoravam a medida que corriam, sujando suas roupas. ‘Acho que vou ter medo de andar naquele brinquedo, An’, disse o menino, lambendo os dedos sujos de sorvete. Anne estava quase terminando o seu, quase tropeçou e caiu. ‘Nossa, que coisa, acabei perdendo meu sorvete de pistache’, sussurrou quando o menino a socorreu. ‘Não se preocupe, An, prometo que na volta te compro outro. Confia em mim?’, ele falou erguendo a mão para ajudar a amiga a levantar. ‘Se não comprar juro que escondo seu balão, viu?’, deram as mãos e partiram em direção ao brinquedo”.

O flashback acabou e Anne, com o susto, deslizou dos braços do homem e caiu no chão com o corpo virado para baixo. Ainda assim, mesmo depois de tudo que viu e sentiu, a menina não experimentava o medo. E durante longos e profundos segundos soube que aquele trecho de recordação que vira antes era uma mistura do que já vivera com o que ainda viveria, tudo fundido e eterno. Mas por que não conseguia se lembrar do nome daquela criança?

— Vista-se! — disse o homem, mal humorado, atirando um vestido para Anne, que o apanhou com as duas mãos.

A figura ficou de costas, esperando que a menina se vestisse. Anne obedeceu imediatamente e entre dentes, os olhos ardentes de curiosidade, ficou de pé, sem se importar com absolutamente nada. Sem se importar que, possivelmente, o homem pudesse vê-la nua. Não demorou para se vestir, a roupa era leve e se encaixou ao seu corpo perfeitamente, como se tivesse sido feito sob medida. O homem se virou, viu que sua vítima já estava vestida e pegou-a novamente nas mãos dela, segurando com bastante força.

— Não precisa me segurar! Tenho duas pernas e elas funcionam muito bem, se quer saber... — respondeu Anne rispidamente, olhando para frente, com a cara emburrada e as sobrancelhas unidas. Soltou sua mão e, sozinha, tomou à frente e caminhava seguindo seu extinto.

— Cale a boca, fique quieta! — respondeu o homem rudemente, a voz abafada por conta da máscara. Acelerou os passos e tomou o posto de líder.

Aos poucos se aproximavam de um roda-gigante. Anne, agora, podia ouvir as engrenagens trabalharem e baterem, em alguns momentos, umas nas outras, formando um barulho fino e agudo.

— Para onde está me levando? — perguntou a menina, um pouco sonolenta, com o tom de voz quase inaudível. O homem ignorou-a, continuando a caminhar em direção a roda-gigante iluminada (as luzes, que deveriam transmitir cores simultâneas: azul, vermelho, verde e lilás, destacavam-se pela aparência morta e, como todo o resto, em preto e branco — Hey, seu bobalhão! — gritou Anne, se aproximando com passos rápidos em direção ao homem. Tocou-lhe no ombro e sentiu seu corpo tremer.

Ele não reagiu, apenas se virou e ficou admirando Anne por alguns segundos...

— O que vai fazer comigo? — insistiu a menina.

O homem gargalhou, rouco — Nada que me surpreenda — respondeu, calmamente, como se tivesse tomando um drink com alguém.

— Vai me matar? — Anne perguntou e, ao mesmo tempo, sentiu um forte desejo de se sentar e cruzar as pernas. Assim o fez, se acomodando no chão cheio de terra e olhando diretamente para o céu sem estrelas. Não estava com vontade de correr, de “se salvar”... por mais que seu cérebro a forçasse.

— Como se morrer fosse o pior de todos os males. Por alguns minutos achei que fosse diferente das outras, mas agora... — O homem se virou para a roda-gigante, balançando a cabeça em negativo — Vejo que são todas iguais. Sempre preocupadas se vão morrer.

— Não estou preocupada se vou morrer... — disse Anne com muita calma. Espreguiçou-se e se deitou, esticando os braços, como se fosse abraçar o céu negro — Seria uma consequências muito óbvia e... — fungou e se levantou, em seguida, respirando fundo — Odeio o óbvio! Mas, como todo ser humano, estou curiosa para saber o que vai fazer comigo.

— Curiosa? — perguntou o rapaz, olhando para Anne de relance. Esboçou um sorriso sarcástico por detrás da máscara e se aproximou da garota — Ninguém nunca ficou curiosa aqui. O medo sempre foi maior que qualquer emoção.

— Não sou qualquer pessoa, meu caro — respondeu Anne com o mesmo tom do homem, desta vez apoiando o braço direito na areia e se levantando. Limpou os braços de areia e sorriu, depois respirou fundo, ficando ereta e olhando diretamente para o rapaz. Amarrou os longos cabelos em um rabo de cavalo despojado e fungou novamente — Por que não abre logo o jogo?

O homem não a respondeu de imediato. Ficou observando e admirando como os lábios dela se moviam sinuosamente quando falava. Caiu em si e escondeu aquele pensamento no lugar mais longe da sua mente — O suspense faz parte do jogo — disse tentando esconder o tom balanceado.

— Qual é o seu nome? — Anne perguntou, andando ao redor do homem, que olhava para baixo e não entendia como tudo aquilo era possível. Não sentia se quer uma faísca de medo partindo da menina... Mas uma ousadia que se erguia íngreme, sem anseios, com ambição e bisbilhotice.

— No momento certo você vai saber... — respondeu o homem, se concentrando plenamente para ouvir a voz da menina. Descrevia-a como notas de um piano, tão leve e sensível que seus ouvidos eram capazes de tremer — Mas não sei o seu...

— Anne Catherine! — disse a menina, parando em frente ao rapaz e olhando novamente para a roda-gigante. Algo naquele brinquedo chamava mais sua atenção do que qualquer outro. Talvez fosse porque sentisse alguma coisa movendo-se dentro dela, se contorcendo, como se quisesse gritar (isso acontecia sempre que passava mais do que dez segundos olhando para aquele brinquedo) — O que aconteceu com a roda-gigante?

— Senhorita Catherine... — repetiu o homem, ignorando-a e torcendo os lábios por detrás da máscara. Falou o sobrenome da menina como se fosse um professor e tivesse fazendo a chamada — Eu até te ofereceria uma xícara de chá, mas... — continuou a falar com o sorriso no rosto escondido. Ficou de costas para Anne e começou a caminhar em direção a roda-gigante — Preciso começar logo com isso, antes que... deixa pra lá!

Passou alguns minutos e Anne se aproximou um pouco do brinquedo, inquieta. Esperou inutilmente que um pouco de brisa viesse e se chocasse contra seu rosto sem confissão. Ficou assim esquecida por um longo tempo. Conservava os ouvidos entrefechados por uma contração muscular do seu rosto, os olhos cerrados mal deixando passar a luz que a roda-gigante transmitia, a cabeça projetada para frente. Esse estado meio inconsciente, onde parecia-lhe mergulhar profundamente em ar morno, cinzento...

— Estamos prontos... — anunciou o homem, interrompendo os pensamentos da menina e fazendo uma reverência, imitando com muita perfeição um cavalheiro, estendendo sua mão. Anne, que estava gostando de tudo que o homem fazia, aceitou a ajuda e sentiu seu corpo ser puxado com muita facilidade — Desculpe se te assustei, não foi minha intenção. Agora vamos, depressa!

Anne nunca cogitou sair correndo, se livrar daquelas mãos grandes e ásperas, apenas queria ver o que a esperava naquela roda-gigante.

Estavam pertos, a menina conseguia ver os detalhes do brinquedo. Por mais que a roda-gigante ocupasse um grande espaço do parque de diversões, os cubos em formas de quadrados (que obviamente serviam para carregar as pessoas que entravam neles), eram pequenos demais para abrigar dois corpos e Anne deduziu que embarcaria sozinha naquela aventura, qualquer que fosse. Não havia cor naquele brinquedo, mas pela sua tonalidade, concluía-se que era muito antigo. O ferro que segurava as cabines era entrelaçado por uma raiz labiríntica, com musgos e galhos murchos que o envolviam. Aquele brinquedo, definitivamente, não era seguro.

Aproximaram-se da cabine e o homem olhou para Anne uma última vez. Pensou em tirar a máscara, mas, quase que imediatamente, os motivos que o fazia estar ali vieram à tona muito fortemente e ele se conteve.

— Está na hora de executar as cláusulas da minha maldição. Vou colocá-la nesta cabine e, depois disso, a roda-gigante vai começar a funcionar. Assim que der a primeira volta e chegar aqui, em frente a mim, você vai começar a ver flashbacks sobre a minha vida. Vai sentir absolutamente tudo que eu. Cada dor, cada desejo, cada vontade de gritar de desespero. Ou todas as vezes que tentei suicídio e algum intrometido se atreveu a me impedir. Vai sentir a dor da solidão, de olhar para os lados e só ver desprezo... injustiça... calamidades. De olhar para o espelho e ver o reflexo de uma pessoa cuja mente está presa a surtos psicóticos e... — o homem fechou os olhos, atormentado pelas próprias memórias que ressurgiam em forma de retratos — A perda da humanidade!

Com a mão de Anne presa a sua, o homem jogou a menina dentro da cabine. Ela, lá dentro, ainda não sentia medo. Mas a curiosidade corroía seu cérebro como se fossem traças. Queria, mais do que qualquer coisa, compreender o que estava acontecendo. Quem era aquele homem? Por que viu uma recordação que não fazia parte das suas memórias? E a cabana, quem morava naquela cabana?

O homem caminhou alguns centímetros para o lado, se aproximando de uma grande máquina de caça-níquel. Pressionou o dedo em cima de um botão — O jogo vai começar... — e agora estava satisfeito.

Apertou-o e a roda-gigante começou a se movimentar...


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Notas finais do capítulo

Meu mundo paralelo, acesse: emanuelhallef.wordpress.com