Lealdade, Honra, e um Coração Disposto escrita por Dagny Fischer


Capítulo 28
Capítulo 28 – Pônei Recheado




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A Companhia estava excitada com as notícias que Bilbo, Fíli e Kíli haviam trazido de sua exploração, levantando os ânimos e fazendo-os tagarelar como um bando de adolescentes. Explicaram que o caminho era estreito e difícil de atravessar, mas depois de tudo que haviam passado depois de deixar as Montanhas Azuis nenhum anão tinha medo de um pouco de risco. Todos falavam ao mesmo tempo, definindo quem faria o quê, e quando.

“Está logo acima desse acampamento, mas não podemos ver porque há um beiral no penhasco. A baía é grande o suficiente para mudarmos nosso acampamento para lá, exceto os pôneis.”

“Vamos ver quanto a isso pela manhã. Quanto falta para o Dia de Ano Novo?”

“Não falta muito, creio. A lua quase minguou.”

“Então, temos que mudar o acampamento e carregar o carvão nos sacos de aniagem que estiverem vazios.”

“As plantas do Óin já estão empacotadas, então as deixamos aqui embaixo.”

“Alguém precisa permanecer embaixo para ficar com os pôneis.”

“Eu fico!” Ofereceu Bombur. “Não sei se a trilha é larga o suficiente para eu passar por ela.”

“Você vai ter que ir para a baía mais cedo ou mais tarde, Bombur. Quando Smaug for acordado ninguém vai estar a salvo fora da Montanha.”

“Vou ficar de olho nos pôneis enquanto for necessário, e enquanto isso pensaremos em como me fazer chegar até lá.”

“Certo, mas lembre-se que não há outra maneira a não ser ir para a baía.”

Dormiram num ânimo melhor do que em muitos dias, apesar do frio do inverno que chegava e a falta de fogo para aquecer seus corpos, comidas e almas. Estavam quase lá. Quase em casa.

No dia seguinte fizeram uma roldana improvisada com o bastão de Óin e uma caneca de metal da qual tiraram o fundo e moldaram para ter um sulco no meio para a corda correr por ele. Com isso podiam subir os suprimentos muito mais rápido do que carregar por todo o caminho, o que levava algumas horas por causa da trilha sinuosa, e era mais seguro, porque se evitava uma beirada estreita.

Bilbo estava dispensado de qualquer outra tarefa a não ser ficar perto da pedra cinza (a ‘soleira da porta’ como chamavam de acordo com suas palavras em Bolsão, uma era atrás), e pensar num jeito de entrar; apesar de que ele tinha certeza de que era só uma questão de tempo, de esperar até a luz do sol do Dia de Durin mostrar a Porta dos Fundos, e ele mantinha Thorin perto dele, para se fosse o caso. Era tão mais fácil para ele do que imaginava que seria quando Gandalf e os anões chegaram à sua porta, porque agora eles tinham planos, e planos alternativos para se os planos de primeira escolha falhassem, e ele não tinha que pensar sobre tudo sozinho, como sentia que era esperado dele pelos anões no começo, apensar de que sabia que Thorin e alguns outros não acreditavam muito em sua competência na época. Na verdade, nem ele.

O hobbit esperou pacientemente, ignorando o tagarelar infinito de Iris enquanto acariciava o cabelo dela em seu colo e olhava da parede de pedra para o oeste, e do oeste para a parede de pedra. Thorin estava quieto, também, explicando pequenos detalhes da cultura anã, costumes e história para Lily, que agarrava cada pedacinho de informação e associava ao conhecimento que já tinha, para reforça-lo. Bilbo invejava seu relacionamento aparentemente tranquilo, mas então Lily era um pouco mais velha do que a irmã, e Thorin tinha um jeito de lidar com as pessoas que Bilbo simplesmente não tinha. Talvez fosse isso que as pessoas chamavam de realeza. Iris era especial para ele, mas as vezes ele se sentia apenas uma grande orelha, alguém para ouvir a tagarelice irregular dela; havia pérolas no que ela dizia, mas as vezes ele tinha a sensação de que ela só precisava de alguém que lhe desse atenção. Ele nem lembrava se tinha sido desse jeito na sua vintena, e com certeza ninguém que era daquele jeito tinha ficado perto dele por tempo o suficiente para que se acostumasse com isso. Mas como explicar sem magoar os sentimentos dela? Apesar disso, ela era mais do que ele podia esperar de qualquer garota do Condado, e ele sabia disso.

O sol estava se pondo. Um tordo quase preto voou até a pedra quadrada com um caracol no bico e bateu com ele na pedra, assustando Bilbo. Ele viu a direção que a luz do sol poente tomou, e como ia até quase o meio de uma forquilha de pedra que o hobbit havia notado quando o tordo pousou.

“Thorin!”

O anão olhou para ele, surpreso, e Lily sentou-se, ansiosa para ver o que estava acontecendo.

“Onde está sua chave? Pegue a chave, podemos estar no limite do tempo!”

Thorin pegou-a de uma corrente de ouro em seu pescoço, tremendo. Acenou alguma coisa para Lily e ela e Iris foram imediatamente chamar a Companhia. Bilbo simplesmente não conseguia se acostumar com a linguagem de sinais dos anões e balançou a cabeça. O sol afundou mais até que foi encoberto por um cinturão vermelho de nuvens. A linha fina, quase indistinguível da lua nova fez sua aparição no horizonte; o anoitecer estava chegando. Os ânimos mergulharam até suas botas junto com o sol poente, porque não havia jeito de garantir que a fechadura seria encontrada se o sol não brilhasse sobre ela exatamente naquele dia. Então um vento distante abriu caminho por entre as nuvens, e o brilho fino e vermelho da luz do sol veio e luziu sobre a face da rocha. A Companhia prendeu o fôlego.

O tordo observou os anões pisarem sobre sua pedra de quebrar caracóis e cantou por alguns segundos, protestando; uma fina lasca de pedra soltou-se da parede e caiu, com um baque alto. Cerca de um metro acima do chão um buraco apareceu, ligeiramente delineado com um brilho que não era exatamente natural. Thorin correu e enfiou a chave no buraco. No mesmo instante em que o rei anão girou a chave, o sol se pôs e a lua se foi, mas diante deles uma fina linha prateada desenhou uma porta, um metro meio de altura e um de largura, como estava escrito no mapa de Thrór. Os anões mais próximos ajudaram a empurrar, e sem som nenhum a porta pendeu para dentro, revelando um túnel escuro para dentro do coração da Montanha.

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Alguns deles queriam acender uma tocha apressadamente para entrar e não tropeçar em nada, pois se sentiam seguros de que dentro do túnel Smaug não tomaria conhecimento de sua presença, mas Balin lembrou-lhes do sentido de olfato do dragão, que havia lhes dado muitas dores de cabeça enquanto planejavam a retomada de Erebor. Esperaram que seus olhos se ajustassem à completa escuridão e avançaram cuidadosamente. Thorin estava tenso, mas preferiria morrer a demonstrar. Sentiram as paredes, teto e piso, e souberam que era um retângulo perfeito onde os hobbits podiam andar com facilidade, a maioria dos anões não teria problema algum e a elfa teria que se abaixar para andar.

“Ainda é cedo na noite, qual o próximo movimento?” Dwalin perguntou a Thorin, enquanto saíam novamente, escorando a porta com uma pequena pedra para que não se fechasse e sentando-se num círculo apertado. Todos queriam ouvir o que seu rei tinha a dizer, mas ele apenas repassou o que já haviam planejado.

“Precisamos estar descansados para fazer tudo o que precisa ser feito a tempo de pegar Smaug de surpresa, então não há motivo para pressa. Vamos guardar todas nossas coisas Porta adentro, isso pode ser feito em silêncio, e alguém vá avisar Bombur do que achamos. Dormimos essa noite depois de guardar as coisas.”

“Eu vou avisar meu irmão!” Ofereceu Bofur, ao que Thorin assentiu.

“Você fica com ele e na manhã de amanhã vocês dois alimentam os pôneis com a coisa do Óin, prestem atenção que eles precisam engolir os pacotes inteiros, não mastigar, e então suspendemos vocês dois com a corda. Enquanto isso nosso gatuno entrará e atiçará o dragão para que ele saia da Montanha e coma os pôneis; assim que tivermos sinal de que Smaug foi desperto corremos para dentro, e túnel abaixo, um membro de cada time carregando um saco de carvão. Então nos dividimos para conquistar, o que quer que nossa elfa queira dizer com isso, nos cinco times predeterminados.” Thorin chamou cada time, o nome de cada um e o objetivo do time. “Time Formiga Azul: Esses são eu, Ori, Nori e Fíli; nós vamos achar os barris de metal e leva-los para os depósitos de salitre e enxofre para então usa-los no transporte desses ingredientes; Time Leopardo Cinza são Dori, Dwalin, Glóin, Kíli e Bombur, que devem encontrar o salitre e pulveriza-lo de novo se for necessário; Time Águia Amarela são Balin e Lily, que vão encontrar e repulverizar o enxofre, esse time é composto só de duas pessoas porque precisaremos de muito menos enxofre do que salitre, se as medidas de Iris estiverem certas, o que todos esperamos; Time Urubu Preto são Óin, Bofur e Bifur, que têm a tarefa mais repugnante de todas, encontrar o banheiro de Smaug; e Time Gralha Vermelha, que são Bilbo, Iris e Ellen, que darão o melhor e mais rápido de si para manter a todos nós informados sobre o que está acontecendo com os outros times. Lembrem-se de vestir suas piores roupas amanhã, possivelmente nunca mais seremos capazes de usa-las; no entanto, armoraria em metal pode ser limpada.”

Instintivamente os membros de cada time se ajuntaram, olhando os outros times para reconhecer quem era e o que estariam fazendo no dia seguinte; e, no fundo de seus corações, esperando contra o esperado que todos terminassem o dia vivos. Estavam por conta própria, sem mago nem nenhum outro tipo de ajuda com que contar, e um dragão vivo que destruíra seu reino e a cidade de humanos perto dele mais de um século atrás.

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Depois de jantar e mudar suas coisas para dentro do túnel, Kíli e Ellen deram um jeito de escapar um pouco sozinhos, usando um caminho que saía da baía de pedra e levava um pouco para cima pela colina. Sabiam há muito tempo que esse momento chegaria, quando uma luta real contra Smaug estaria à mão, então essa era a última noite em que tinham certeza de que o outro estava vivo, e não sabiam por quanto tempo. As estrelas brilhavam solitárias na noite escura, enquanto eles estavam deitados com as costas contra a montanha nua, de mãos dadas. Ele quebrou o silêncio.

“Você tem medo?”

Ellen levou um momento para responder.

“Tenho.” Ela suspirou. “Eu preferia enfrentar um conselho de acionistas inteiro para anunciar uma falência do que encarar o que temos pela frente amanhã.”

“Não vamos nem estar no mesmo time.” Ele estava aborrecido.

“Talvez seja melhor assim, a gente poderia se distrair ao ver o outro em perigo. Mas vou estar correndo pelo lugar todo, vamos conseguir nos ver um pouquinho, acho. E quando as coisas estiverem prontas vamos todos estar no salão do tesouro esperando nossa presa. E você?”

“Eu o quê?”

“Tem medo?”

Kíli respirou fundo.

“Não se espera que eu tenha. Sou um herdeiro de Durin.”

“Pode baixar suas máscaras, somos só você e eu.”

Ela mudou uma mecha de cabelo de lugar na testa dele. Ele rolou para o lado e acariciou seu rosto com um dedo, seus olhos de esmeralda escuros de preocupação.

“Tenho medo. Tenho medo de morrermos, e que nossas almas nunca mais se encontrem porque não tivemos um Discurso de Compromisso e eu sou um anão e você é uma elfa. Tenho medo que você morra e eu fique sofrendo noite e dia do jeito que sei que Mãe sofre em silêncio desde que Pai morreu; tenho medo que eu morra e você encontre outro alguém, porque você não é anã, você não é compelida a amar só uma vez na vida.”

“Você não confia no meu coração-de-anão, Kíli filho de Dís?” Ela estendeu a mão e correu os dedos pelo cabelo dele. “Eu juro, pelas estrelas de Varda que brilham sobre nós, que é você e só você quem eu amo, e ninguém mais nunca vai tomar o seu lugar, que foi forjado no meu coração.”

Kíli se inclinou e a beijou, faminto.

“Queria já ter tido minha Primeira Vez com você.”

“Não conseguimos achar um jeito na Cidade do Lago, onde tínhamos até quartos de dormir, o que dizer de ter uma chance nos ermos?” A elfa suspirou. “É, mais um empurrão para a gente tentar se manter vivo amanhã!”

Então deu-se conta. Ele havia dito ‘minha Primeira Vez’, não ‘nossa Primeira Vez’. Isso explicava muita coisa que não encaixava antes. Ellen percebeu que estava lidando com um virgem de setenta e sete anos de idade! Ela tinha que se certificar.

“Kíli, você quer dizer... sua Primeira Vez… na vida?”

Ele piscou, tímido, com um meio sorriso no canto dos lábios. Uma das coisas que tornavam Kíli tão atraente para Ellen era exatamente aquele olhar de inocência, apesar de que podia se mostrar travesso e atrevido quando queria, e o anão sabia exatamente o que fazer para ela querer mais. Agora a elfa sabia que não era só a aparência. Ela acariciou a barba curta e ele levantou o olhar para ela.

“Kíli?”

“Eu tentei te contar, mas você disse que ‘não era completamente diferente’, e você estava tão brava...”

Ellen se sentia envergonhada agora por aquele dia antes de Mirkwood.

“Desculpa, eu...”

“Você não tem que pedir desculpas. Não importa mais, eu superei.”

“Eu pensei...”

“Eu sei o que você pensou. Que eu fosse como a maioria dos homens. Mas isso é um assunto sério para mim. Não é porque sei como te beijar e como te tocar que você pode me julgar como se eu fosse desperdiçar minha semente com alguém menos do que adequada para gerar um herdeiro da linhagem de Durin. Alguém que não tivesse me escolhido.”

Ele se deitou de novo, mãos atrás da cabeça, olhando para as estrelas.

“E agora estamos a horas de lutar contra um dragão e só Mahal sabe se vamos estar vivos no final do dia.”

Ela se apoiou num cotovelo e lhe lançou um olhar de desculpas.

“Kíli… está zangado comigo?”
Ele deu uma risadinha.

“Se fosse para estar zangado com alguém, seria com seus irmãos, resolutos em manter sua castidade a salvo de mim.”

A elfa sentou-se e olhou para ele, um sorriso travesso nos lábios.

“Kíli, acha que temos tempo?”

“Tempo para quê?”

“Para... fazer alguma coisa… antes que meus irmãos cães de guarda venham nos procurar?”

Os olhos dele se arregalaram.

“O quê... mas onde? Como? Quando?”

“Aqui, agora! Podemos ser criativos, não acha?”

O anão sentou-se, alvoroçado.

“Ficou louca?”

A elfa o empurrou de volta para o chão, rindo.

“Te peguei!”

“Espera! Vou tomar uma medida de segurança, como você diz.”

Kíli sentou-se, juntou as mãos em frente à boca e soltou um pio que lembrava a Ellen uma coruja com soluço. Um som parecido respondeu de não muito longe.

“O que foi isso?”
Ele a olhou com o sorriso travesso a que ela estava acostumada.

“Pedi a Fíli para nos avisar se algum cão de guarda vier nos procurar. Eu e meu irmão temos nossos próprios códigos de assobio.”

“E agora...”

Ele a abraçou, procurando por sua pele quente debaixo da blusa solta, fazendo sua orelha pinicar com a barba curta enquanto sussurrava, a voz rouca.

“Agora a gente se apressa com o que deveria ser feito devagar, se você jurar que realmente quer, porque eu não quero te machucar mas não sei o quanto posso me conter.”

A elfa estremeceu, e não era de frio. As mãos dela correram o corpo dele por cima das roupas, sentindo seus músculos rijos e muito mais sob seus dedos, a voz dela traindo sua urgência, olhos vidrados brilhando perigosamente para ele.

“Você não vai me machucar, seu bobo; apenas me tome! Eu esperei por você tanto tempo...”

As mãos dele pararam por um momento e então Kíli a fitou profundamente nos olhos; uma ponta de ciúme brilhou em verde escuro e então se foi, substituída por um ligeiro sorriso.

“Pode-se sempre levar vantagem no que parecia ser um desserviço...”

Mesmo sem experiência, Kíli sabia exatamente o que fazer com ela, e uma Ellen deliciada descobriu que sua diferença de altura não importava nada em relação a outras medidas; na verdade, sentia-se como se seu longo tempo ‘fora dos negócios’ estivesse se refletindo em seu corpo élfico numa renovação a um estado de ‘quase nenhum negócio feito’, e ela sentiu que ele lhe servia perfeitamente, o anão de cabelos escuros reivindicando-a para si como nenhum outro homem jamais o tinha feito. Ela mordeu o lábio inferiror para abafar um gemido e ele parou, franzindo a sobrancelha.

“O que foi? Você está bem?”

“Eu estava bem, mas você acaba de me colocar em modo assassino!” Reclamou a elfa.

“Como assim?”

“Se você se atrever a parar de novo, eu te mato!”

Era uma ocasião de roupas demais e tempo de menos, mas plena de anseio e desejo, e o jovem par logo tinha liquidado o assunto, ofegando e querendo mais. Kíli correu os dedos pelo cabelo de Ellen, sorrindo, um brilho diferente nos olhos.

“Agora estou pronto para matar um dragão!”

Fíli assobiou como um tordo bêbado e eles se apressaram em subir as calças e desamarrotar as roupas antes de voltar para o acampamento, sorrisos satisfeitos em seus rostos. Se sobrevivessem a Smaug, encontrariam maneiras de enganar os cães de guarda de novo e fazer as coisas muito devagar da próxima vez.

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Smaug não se lembrava quanto tempo tinha dormido, uma vez que o tempo não era mais uma questão para ele. Ser o mais velho, para não dizer o último e único de sua raça, lhe dava a comodidade de deixar de pensar em coisas banais como tempo. Na verdade, não tinha necessidade de pensar em nada desde que encontrara aquela confortável cama de ouro de que gostava tanto, e podia dormir à vontade entre uma e outra refeição, que podiam ser a décadas de distância uma da outra.

Mas então um ruído distante perturbou seus sonhos de ganância e violência, e um olho tremulou e se abriu. Não havia nada para ser visto, mas havia um cheiro, sim, um cheiro que não conhecera antes. Procurou pela fonte do cheiro, e não viu nada; mas estava lá, sim, tão certo como sua cama era feita de ouro. Deu uma olhada na principal e única entrada de seu antro, grande o suficiente para ele passar depois que fez algumas reformas para ficar adequado ao seu tamanho, mas não havia nada lá para ser visto, e ele não conseguia cheirar nada vindo daquela direção, na verdade. De onde o cheiro poderia estar vindo?

Um ligeiro hausto de ar fresco lembrou-o do pequeno buraco na parede, que ele não tinha se dado ao trabalho de fechar devido a sua insignificância. O cheiro vinha daquela direção, tinha certeza. Smaug farejou e disse.

“Não é preciso se esconder, coisa fedida, eu sei que está aí.”

Claro que não falou de qualquer jeito convencional, mas mais parecido com o que Bilbo sentiu com Galadriel em Imladris; a diferença é que ela apenas havia olhado em sua mente, e Smaug falava dentro dela. Assustou-se, com um monte de razão. Mas então, era para isso que estava lá, para atiçar o dragão, e atiçar o dragão ele iria, mesmo que bem agora estivesse tão assustado que não conseguia proferir uma palavra.

“O gato comeu sua língua, fedido? Posso comer mais do que sua língua se não tiver mais educação do que entrar na minha casa e se esconder como um rato. Veio roubar minha propriedade?”

“Eu...” Bilbo gaguejou. “Eu vim ver se as lendas eram verdade, ó Smaug a Grande Calamidade!”

“Ah, então você tem uma língua para falar, heim?” Sentia-se divertido por ter feito sua presa falar. “E a que lendas você se refere, fedido?”

“As lendas sobre seu magnífico colete de diamantes finos e gemas preciosas; palavras correm que és o mais aterrador dos dragões de todos os tempos, e o mais rico.”

Era sempre bom bajular um grande verme; pelo menos o divertia e deixava-o menos apressado para incinerar alguém. Estava funcionando.

“As lendas são verdade, fedido, como por ver por si mesmo.”

Smaug abriu as asas para mostrar o peito e o abdômen, realmente assombrosamente cobertos com ouro e pedras preciosas. Bilbo notou uma pequena área na parte superior esquerda do peito onde faltavam algumas pedras, ou por não terem sido presas ainda ou por terem caído durante o sono de Smaug; não importava, era um ponto fraco do mesmo jeito.

“Agora, fedido, você sabe muitas coisas sobre mim, e eu não sei nem o seu nome, nem de onde veio. Seria justo deixar-me saber um pouco sobre você.”

Bilbo não era nenhum tolo, apesar de nunca ter lidado com um dragão pessoalmente, e tinha mais juízo do que expor a si mesmo e ao resto da Companhia.

“Eu vim de longe, por cima de morro e por baixo de morro, de floresta e de rio, e através do ar!”
“É um bocado de onde vir, mas não me diz seu nome. Quem é você, fedido? Ou devo te chamar de ‘Fedido’ até que te coma?”

“Não precisa me comer, ó Smaug o Tremendo! Eu não seria nada mais que um pequeno incômodo para suas mandíbulas potentes, não merecedor de ser mascado por seus dentes afiados como espadas!”

“Mas você perturbou meu sono, Fedido, e agora estou inclinado a tomar uma refeição. Diga seu nome, gosto de saber o que estou comendo!”

A pressão das palavras de Smaug dentro da cabeça de Bilbo latejava, e o hobbit sabia que tinha que fazer algo rápido.

“Para me comer vai ter que me pegar primeiro, ó Smaug o Poderoso, e os cascos sobre os quais cavalgo são mais rápidos que coelhos de Rhosgbel!”
O latejar diminuiu um pouco, misturado com dúvida. Bilbo soltou a respiração que não sabia que estava segurando.

“Cascos rápidos, hmm? Vejamos se você será tão rápido depois que eu comer o dono dos cascos, senhor Fedido!”

Com isso o dragão partiu para seu caminho de saída e deixou o tesouro, não sem antes mandar um grande hausto de fogo na direção do buraquinho. Bilbo correu, mas não o suficiente para não se chamuscar um pouco, e levou muito tempo depois de sua aventura para que o cabelo da parte de trás de sua cabeça e de seus calcanhares crescesse novamente. De qualquer forma, estavam tendo sucesso, e Bilbo encontrou a Companhia descendo o túnel conforme o planejado.

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Smaug estava completamente aborrecido. Era desagradável o suficiente ter uma coisa fedida visitando seu tesouro sem ser convidada, e então ele não podia nem ver a coisa fedida; deveria ter cuidado daquele buraco de rato eras atrás. Tomou seu caminho até o Portão de Erebor e voou pela abertura que havia feito acima do balcão para sua conveniência. Então voou alto e circulou a montanha um pouco abaixo do nível da neve, visto que era improvável que qualquer cavalo fosse andar tão alto, e teve uma boa visão das cercanias. Avistou sua presa.

Para sua surpresa, não era só um cavalo, mas um cavalo e vários pôneis junto com ele. Deviam estar frouxamente amarrados, porque dispararam a correr com facilidade quando ouviram suas asas trovejantes a se aproximar. Isso significava que o camarada Fedido não estava sozinho, nenhum ladrão solitário precisava de todo um rebanho de pôneis para roubar seu tesouro, apesar de que seria necessário muito mais do que aqueles pôneis para carregar ainda que apenas uma pequena parte de suas posses. De qualquer forma, comeria o cavalo e os pôneis no almoço e Fedido de sobremesa.

Não levou muito para completar sua chacina, e sentiu-se um pouco pesado pelo tanto de carne de cavalo que aquecia sua barriga, e voou de volta para seu posto favorito no esporão sudeste da montanha para vigiar um pouco. Era uma manhã agradável para comer pôneis, e Smeug sentiu que um bom gole da água do rio lhe cairia bem; às vezes ele até se servia de um pouco de peixe junto com a água. Voou até a margem do Rio Corrente e bebeu o quanto quis, rindo quando um peixe balançou a cauda contra sua garganta. Smaug arrotou.

Engraçado, ele não se lembrava de já ter comido pônei e arrotado salada alguma vez. Na verdade, ele nunca comera salada antes. Seu estômago parecia estar meio indisposto; melhor voltar para casa. Fedido não iria longe sem seu cavalo, e seria uma caçada agradável; não se divertia tanto desde que tomou Erebor dos anões. Anões. Seria bom comer anão de novo, fora há tanto tempo, mas onde encontrar anão para comer? Eles não eram caras legais, foram embora e nunca mais voltaram para brincar com ele de novo. Nada legais, anões nada legais mesmo.

Smaug deixou o chão para chegar na entrada acima do Portão e sua asa direita esbarrou na figura esculpida de um anão, estilhaçando algumas lascas de pedra que caíram no chão vários metros abaixo. Engraçado, não se lembrava de quando tinha esbarrado em alguma coisa sem querer antes. Desceu mais um pouco, para longe do Portão, e andou devagar para seu covil. A salada não estava lhe fazendo bem, tinha certeza. Agora, onde estaria o Fedido? Se estivesse dentro de sua casa, ele o tostaria um pouco antes de comê-lo. Só para melhorar o sabor.

Mas isso podia esperar, porque bem agora ele estava sonolento, e sua cama de ouro estava chamando por ele, e ele não devia ter comido todos aqueles pôneis numa só refeição. Agora era tarde demais, e Smaug arrotou salada de novo, para seu próprio vexame, enquanto ficava tão sonolento que começava a ver dobrado, e tropeçou para dentro de seu antro como um lagarto bêbado. Peidou sonoramente, e riu do próprio som. O tesouro ficaria empesteado por dias, mas era incapaz de se preocupar com isso nesse momento. Hora de fechar o buraco de rato antes que outro fedido saísse de lá. Foi em direção à parede mais distante, tropeçando num barril de metal. De onde aquele barril tinha vindo? Smaug o cheirou mas tudo que podia farejar era seu próprio peido. Repugnante.

Outra tentativa de chegar até a parede e alguma coisa chamou a atenção no canto do olho, um pequeno movimento, nada mais que um vislumbre de um morcego esvoaçante atrás de uma pilha de ouro a centenas de metros de distância. Ele piscou para tentar melhorar sua visão dupla e uma mosca o picou. Uma mosca, só poderia ser uma mosca o que acertou seu olho, e ele tentou esfregar o olho ofendido com sua pata dianteira, fazendo mais dano do que melhoria. Pelo menos tinha se livrado da visão dupla, porque só o outro olho estava funcionando direito agora. Infelizmente, outra mosca picou dentro de sua narina, fazendo com que espirrasse. As coisas estavam ficando esquisitas o suficiente para que percebesse que algo estranho estava acontecendo. De onde todas aquelas moscas estariam vindo? Ele adivinhou.

“Fedido! Fedido, venha até aqui onde eu posso te farejar direito!”

Sua cabeça estava zonza, mas a dor em seu olho e em sua narina o despertaram um pouco. Percebeu mais barris de metal em volta dele, e eles cheiravam a... seu próprio esterco? O que isso estava fazendo em seu quarto de dormir? Barris muito pequenos para pegar em suas patas e levar embora, seria melhor lidar com esse absurdo num estilo de dragão, visto que incineração era sempre uma opção. Respirou fundo e soltou fogo.


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