Begin Again escrita por Nina Spim


Capítulo 10
Chapter Ten


Notas iniciais do capítulo

Depois de um sumiço, eu voltei :)
Esse capítulo é o divisor de águas da história.
Espero que o entendam, porque eu não vou voltar atrás.
Boa leitura!



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Parte XIX – E meu coração está batendo como um barco a todo vapor

                      Todos os seus fardos sobre os meus ombros

                      (In the Mourning, Paramore).

Continuo esperando.

Algo sobre a espera que nunca apreciei e que me aterroriza é como ela alimenta a nossa incapacidade de lidar com a realidade – com aquilo que está bem em frente de nossos olhos.

Estou atenta a tudo, a qualquer mínima mudança. Só que a pior parte de observar demais é que você fica acumulando todos os tipos de ameaças possíveis sem se dar conta que boa parte delas nunca vai acontecer.

Seguro meu celular com força. No “jantar” notei bem discretamente que Quinn usou o dela algumas vezes. Existia algo de alheio naquilo. Ela não estava dando a mínima para o que estava, de fato, acontecendo. A indiferença, embora até agora eu esteja fingindo o oposto, me irritou. O que podia ser mais importante do que o que eu tinha dito?

Será que ela não entendeu o que aquilo significa?

Não que eu entenda. Talvez, mais uma vez, eu esteja somente deixando a espera fazer o trabalho todo – assim, não preciso ser responsabilizada por nada. É mais fácil conviver com a culpa quando se está do lado de fora de tudo. Isso me abstém de encontrar uma razão, uma saída, um final.

A realidade parece fria, mesmo quando fecho os olhos e me permito inspirar e expirar vagarosamente dentro do carro. É tudo muito estéril, porque sei que a pessoa que está ao meu lado sabe da nuvem que se dissipa de mim, vagarosamente. Eu finjo não vê-la, mas está ali – pronta para envolver a nós dois da forma mais asfixiante possível. É bastante aterrador. Mesmo no silêncio, tudo que não tinha se concretizado, que parecia solúvel e nublado, se faz nítido e palpável. Como se a fumaça tivesse se tornado areia em minhas mãos. É sólida em mim, mas ainda assim quebradiça e se esvai com facilidade. Sinto que estou perdendo a autonomia da irrealidade que construí ao meu redor.

Parece que é exatamente assim que a loucura se instala nos mais suscetíveis. Quando o controle se arrebenta. Quando o sentido do interior inflamado se torna um jorro de fracassos vívidos no exterior. Claramente, a minha pilha de revés acaba de ganhar mais uma camada – talvez, a mais incongruente de todas e a que mais machuca.

Não tenho mais condições de sustentar este lado da corda. Talvez nem precise. Quinn, é possível, já tenha abandonado o outro há mais tempo do que minha capacidade de análise pôde confirmar.

Sei que a confirmação é isso. É este hoje. Este silêncio que se avoluma.

Olho para o perfil de Finn. Como sempre, ele parece concentrado e sério. Está de olho no pouco tráfego. Não há pontos de tensão em seu maxilar e isso é bom. Não há filamentos de desgosto ou raiva em seu olho direito, as pestanas continuam se abrir e a se fechar. As mãos não castigam o volante. Ele parece tranquilo. É a superfície dele tentando administrar tudo isso. Sei que as camadas de revés dele continuam ali, alojadas em seu coração. Nunca conseguimos interpretar o que existe no mundo oculto do outro, até que o nosso próprio mundo oculto extravasa e machuca o que há ao redor: tudo o que foi construído durante os anos e o que restou dos escombros acumulados. Nossos mundos ocultos apenas existem para transformar passado, presente e futuro em cinzas.

Somos cinzas a partir de agora.

 Temo proferir algo e interromper o fluxo que existe entre nós. Esse fluxo, outrora intermitente, já não escorre para lugar algum. Agora, ele se desvai. Escapa como sombras na noite. Como se sempre tivesse sido ausência.

Sinto a ausência.

Tudo é ausência.

Somos ausência a partir de agora.

Permito que essa concepção recaia em mim durante os minutos que se prosseguem. É o prenúncio. É apenas uma forma vã de tentar controlar a superfície.

Estacionamos na garagem e, mesmo que o carro esteja em ponto morto, não nos apressamos. Degustamos a penumbra do local; o farol apagado, as sombras projetadas nas paredes. Meus dedos se esfregam uns nos outros, ansiando por toque, por conforto, por luz. Não dizemos nada. Mas, quando o momento se torna pesado demais, tudo se dissipa. Finn rompe o laço abrindo a porta e me deixando para trás. Ocupa-se em acionar o interruptor e abrir a porta para o hall de serviços. Não olha para trás uma única vez. Entendo que o fluxo não pode mais ser nominado assim; agora é ruptura.

A casa está acesa quando me adentro. Finn não está às vistas e procuro por ele – procuro por razão. Sei que ele é razão. A razão que, neste instante, me falta. Que deixei cair em algum lugar no trajeto para cá. A falta que sinto falta.

Encontro-o no sofá na área convivência, perto do topo da escada. O andar inteiro está em meia-luz. Finn está com os cotovelos apoiados nos joelhos, as mãos nas têmporas. Se sabe de minha presença, faz questão de ignorá-la. Ainda não sei o que dizer, não sei o que ele quer que eu diga. Acho que já disse o suficiente pelo dia inteiro.

Não sinto vontade de implorar por perdão, ou de pedir que não me odeie. Sei que me odeia. Sei que odeia todos esses anos ao meu lado. Sei que, se pudesse, teria feito tudo diferente. Estaria com outra mulher, talvez; estaria em um casamento efetivo, sem passado.

Ainda não sei por que suportou tudo isso.

Ele sabia. Ele sempre soube.

Sabia sobre o fim.

Sobre o fracasso.

Sobre este dia.

Permaneço parada, a alguns metros dele. Observando. Tentando detectar a ameaça. Pergunto-me se, algum dia, a ameaça realmente existiu. Existiu? Ou será que, durante esse tempo todo, a ameaça era eu? Como me fiz ameaça? Como pude ser ameaça àqueles que amo?

Será que os amo mesmo?

Será que isso é, de fato, amor?

A Rachel de hoje resistiu tanto a si mesma que, agora, não sabe mais quem é. Eu dizia que era música – eu me sentia música. O que resta disso? Uma nota solitária? Avulsa? Desistente? O que resta daquilo que fui e daquilo que prometi ser?

Acho que a pior parte é não acreditar mais na própria história. Se eu olhar para dentro, talvez, não exista mais nada. Só vazio, uma eternidade que não termina nunca, que não responde a nenhuma das minhas perguntas. Agora, na verdade, as perguntas são insignificantes perto de quem eu não me sinto mais ser.

Eu abandonei a música em mim. Abandonei a história que residia em mim, que me afastava de ser ameaça. Acho que, então, é isso: um dia você acorda e percebe que se machuca para não ter de machucar aos outros. Mas, quando o dia de machucar aos outros chega, se machucar não é mais o suficiente. Acho que é isso que chamam de desesperança.

Não existe mais uma saída.

Não sei mais o que resta.

Sussurro o nome de Finn na minha mente, como um pedido de socorro. Na realidade, eu dou um passo em direção a ele. Aguardo que ele levante a cabeça e me olhe com ódio, com lágrimas nos olhos, com a brutalidade de um homem ferido. É desnecessário, porque nada disso acontece. Finn continua em seu próprio mundo oculto, enquanto deixa o meu em miúdos. Sei que não é a reação que ele espera, mas sento-me ao seu lado no sofá. Afundo-me ali, querendo que os braços dele me envolvam, porque costumava ser assim. A espera é mesmo irônica – não importa o que seja, continuamos aguardando por algum sinal, alguma palavra, algum olhar. Qualquer coisa que tente nos acalmar, que diga: valeu à pena. Não, não valeu à pena. Esperar não pode ser a resposta se você já conhece as consequências.

O espaço-tempo se parte numa única frase.

Finn nem ao menos olha para mim. Apenas faz o vento entre os lábios farfalhar como folhas no outono, como poeira. Como se nada existisse mais ali.

— Eu sempre soube da sua farsa.

Isso quebra quem eu imaginava ser, quebra qualquer coisa que habita em mim – despedaça o que eu esperançava cultivar. Não amor, mas o fazer a coisa certa. Agora, no entanto, parece que eu fiz a coisa mais fácil. Esse tempo todo, dez anos, eu simplesmente peguei o caminho mais curto e seguro, porque não precisaria me movimentar e sufocar em desespero. A coisa certa teria sido ser coragem no minuto em que revi Quinn no teatro, naquela noite. Mas eu continuei escolhendo covardia. Porque, talvez, isso seja a única coisa que restou de mim.

As conseqüências estão à vista, desnudas diante de meus olhos.

Não posso mais esperar.

Não devo mais esperar.

Eu desejei isso o tempo todo, desde o final do ensino médio. Desejei espera por parte deles. Desejei que soubessem o quanto a espera concretizou uma parte de mim e que, ao mesmo tempo, devastou a outra. A mesma essência que nos faz vivos nos mata. A espera é assim. Eu achei que estivesse continuando, mas estava, também, retrocedendo. É a essência das consequências. A essência que ama e que tem medo. A essência que destrói e que cura. A essência que sente e que foge.

Ainda na meia-luz, o laço que nos ligava se arrebenta. O nó que fingi ser laço ao redor de mim mesma me arrebenta.

Somos ruptura a partir de agora.

Eu me tornei ruptura.

Conheço a sensação que altera meu estado de conformidade para aceitação, é doída. Provei-a algumas vezes durante esses quase dez anos; na primeira vez, a aceitação me fez vingança, me fez raiva. Na segunda colocou-me em um pedestal inútil de provação – uma provação ridícula de auto-exibicionismo. Apenas para poder responder à vozinha negativa que perambulava minha mente: você conseguiu, você não tem mais passado. Mas eu nunca enterrei esse passado, continuei guardando-o como que uma reserva, como se pudesse acioná-lo e revivê-lo. Na terceira vez aconteceu a naturalização – era natural que, vivendo com Finn, o casamento fosse viável; o meu sonho de menininha, o futuro próspero.

A aceitação, nesta quarta vez, me vem em ondas de impotência; como quando quebramos algo e não há mais conserto. É doloroso, porque saber que não posso mais consertar isso – a minha vida e quem sou – me faz perceber que nunca realmente entendi as implicações de um término, de um adeus. As linhas finais de uma história são sempre as mais doídas, porque não podemos mudá-las. Elas existem independentemente de quem somos, do que desejamos e de quem amamos. As linhas finais são a trajetória desconhecida de uma vida que nunca planejamos – que, ademais, não dá para prever. O passado não retorna no espaço da realidade, mas faz parte de nosso próprio mundo oculto; talvez seja por isso que precisamos e queremos escondê-lo – é nosso e de mais ninguém. O meu passado se entrelaça ao de Quinn, mas não é igual ao dela. O meu passado se entrelaça ao de Finn, mas não é igual ao dele. Apesar de nós três termos tido passados entrelaçados nem um deles escreve, hoje, as mesmas linhas finais. Cada linha final resguarda o seu próprio mundo oculto.

Não sinto pânico, mas sei que minha história está em tempo de término.

Não acredito mais nesta história. Passei tanto tempo acreditando na irrealidade que, agora, o sentido não faz mais diferença. Não determina coisa alguma. Não me faz reconhecer quem me tornei – se é que me tornei alguém. Existe como tornar-se alguém a partir de uma mentira? A partir de cinzas e ameaças?

Além de quebrar quem imaginava ser, a farsa esmigalha meu coração. Interrompe qualquer fluxo imaginário que tentei perpetuar.

A mentira, esse tempo todo, foi o meu fluxo imaginário – as minhas supostas linhas finais.

Talvez, eu não tenha linhas finais.

Não me sobrou nem uma.

Apenas me sobraram páginas em branco.

Um amontoado de nada a partir de fluxos imaginários que sustentei a partir de um passado que deveria ter sido abandonado há tempos.

Talvez, minhas linhas finais sejam estas: abandono.

Ser ruptura não me basta mais: sou abandono a partir de agora.

 

Parte XX Que vergonha, todos nós permanecemos

                  como coisas frágeis e quebradas

                  (...)

                  Ainda há vislumbres escuros no fundo do meu coração,

               onde já esteve em chamas, agora há uma pequena faísca

                 (...)

                 Aprender a perdoar mesmo quando não foi um erro

                 (Part II, Paramore).

Existia algo em mim que, agora, se faz nulo.

Acho que acabei quebrando esse algo no meio da vida.

De certo modo, acredito que me deixei para trás nesse processo.

As horas passam e já é de madrugada. Não sei quando vou conseguir relaxar, porque fico ansiando uma explosão. Checo meu e-mail sem me dar liberdade para pensar em qualquer outra coisa. Sinto que meus pensamentos pairam sobre uma única resposta; em uma única pessoa, em uma única esperança. Perto das três da manhã reconheço que é tudo em vão e faço um retrospecto de tudo que minha mente é capaz de alcançar. Existe muita coisa – lembranças pontuais, mágoas extremas e um pânico esquisito, que me engolfa em uma espécie de estado de alerta.

Estou cansada, sinto cada parte de meu corpo implorando por descanso, mas o que existe dentro de mim é infinito; nunca para. É como uma música em looping que não consigo pausar. E, na verdade, tenho medo de pausá-la. Não sei o que vai acontecer, não sei se estou preparada para o que vai acontecer.

E agora?, fico me questionando.

Não sei, não sei.

Às quatro e trinta e cinco faço uma ligação. Sei que não devo, mas parece importante. É importante.

Por favor, atenda.

Sinto uma pressão envolvendo minha cabeça e a vontade de chorar brota de novo, porque parece que isso é apenas uma repetição. Olho para o teto, deitada, contando os toques. Por favor, atenda.

Ela atende.

— Hmmm?

— Por favor, me ajuda – as palavras parecem uma pequena linha que nos separa, que me separa do mundo. Não sei o que dizer, porque acho que perdi a capacidade de fingir que está tudo bem.

— Peraí, vou chamar a S...

— Não, não. Não é com a Santana. É contigo – lanço na mesma hora, antes que Brittany passe o celular adiante. – Eu me lembrei de uma coisa. O seu pedido de casamento. Eu nunca fiquei sabendo o que você disse para a Santana.

Há uma pausa, mas ouço a respiração de Britt do outro lado. Depois, a voz de Santana surge, mas não está falando comigo. Estão falando sobre mim.

— Eu dei a ela uma fotografia de um arco-íris, da nossa viagem à Califórnia. Eu não disse nada. Não precisei dizer. Quer dizer, ela viu o anel colado atrás da foto.

— Você não perguntou se ela queria casar?

— Não. Eu não precisava perguntar. Eu apenas sabia que a confirmação viria. Ela é uma das certezas que tenho. Como um arco-íris.

— Um arco-íris não é uma certeza.

— Para mim, ele é. Uma certeza não precisa estar nas mãos. É como uma fotografia, é só olhar. Quer dizer, você tem que entender o que está olhando, mas, se estiver entendendo, então ela é uma certeza. – faz-se silêncio. Não entendo nada do que ela me disse, porque minha mente está correndo para outros lugares e se recordando de coisas esquisitas. Estou tentando lembrar se, algum dia, já olhei um arco-íris. – Quinn. Você tem alguma certeza? Você sabe o que está olhando?

— Meu teto – respondo.

— Não agora, antes. – Brittany suspira na linha – É sobre isso, a gente sabe. Não é sobre mim, mas sobre você. Você está tentando saber se já olhou para alguma certeza.

Meu Deus, tudo isso parece muito esquisito.

— Vou ter que desligar – digo. A verdade é que eu não suporto esse entendimento. A incerteza de estar no breu. É por isso que não sou capaz de olhar para lugar algum. É por isso que não existe nem um arco-íris na minha vida. Ou pedidos de casamento.

— Você vai ficar bem? A gente pod...

Não sei o que ela e Santana podem fazer, porque desligo na mesma hora.

O teto continua sobre mim.

Será que eu já olhei um arco-íris?

Não, isso não tem importância alguma. Um arco-íris não é uma certeza. Meus olhos podem me enganar, porque podem querer ver o que quiser. Pode ser uma alucinação, qualquer coisa projetada pela minha mente para me confortar.

Não quero conforto.

Mal suporto esse conforto mais.

Meus olhos me enganaram esse tempo todo. Porque não existe nenhuma certeza, nunca existiu. Esse silêncio é a prova. Quer dizer que nada, nada mesmo, encontra o seu espaço para viver e se ver livre. Não há liberdade se, no meio do silêncio, só existe pânico.

É inegável: eu estou em pânico.

Abro minha caixa de e-mails de novo. Nada útil, nada novo. Nada que seja aquilo que quero. Se é que quero. Não tenho certeza. Desencontrei a certeza. Nunca existiu nada que eu pudesse olhar na minha vida, nos últimos anos.

Talvez, nem mesmo tenha existido vida na minha vida, nos últimos anos.

Deixo o celular de lado, porque as lágrimas impossibilitam que eu enxergue qualquer coisa. Permito que os minutos passam enquanto me sinto engolfada nessa bolha feita de tudo e de nada ao mesmo tempo. Existe tudo ali, porque a explosão que aguardava, afinal, está acontecendo. Isso significa que cada parte do meu eu interno está embolado e arrebentado. O nada co-existe, uma vez que parece haver um esconderijo dentro de mim que desaparece com a esperança – uma espécie de buraco negro. Não sei para onde as coisas boas foram. O que sei é que só sobrou o que pode me ferir e me matar. De certo modo, quero que me fira e que me mate. Quem sabe, só assim tudo isso vai parar. Talvez a morte das coisas boas mate parte das coisas ruins e dê a elas outro caminho; outra certeza.

O que fazemos quando não temos nem uma certeza sobre as coisas boas?

Se adormeço, ou não, não faz diferença. Minha cabeça está dolorida e meus olhos ardem. Chorar parece surtir efeitos indesejados, então, paro quando nem mesmo isso alivia meus temores e minhas fraquezas. Parece que nada ajuda.

Para piorar, a campainha toca minutos depois. Eu nem me levantei da cama, não botei nada no estômago. E não sinto vontade de caminhar até a porta. Porque, o que quer que for, de antemão, parece inútil. Há batidas na porta, incessantes. Isso me incomoda mais do que tudo. Santana e Brittany parecem mesmo muito desagradáveis agora. Não dá para acreditar que vieram até aqui para me explicar sobre o arco-íris. O enjôo parece pior quando me lembro da conversa no meio da madrugada.

Talvez, se eu ficar aqui deitada vão embora...

Mas não se distanciam, porque a campainha é acionada mais uma vez.

Mesmo que meus ossos protestem, eu me arrasto do colchão. Não me olho no espelho, porque tenho medo de me encarar. Vou descalça até o hall e ajeito o cabelo – só um pouco para não dar a entender que desmaiei de qualquer jeito.

Abro a porta e meu estômago vazio despenca consideravelmente, como se tivesse recebido o soco de um gigante. Definitivamente, isso é um mau agouro. Mas não tenho muito tempo para reagir. Meus pés dão um passo para trás e sinto que vou vomitar o nada que sobrou dentro de mim.

— O que aconteceu com você?

Isso parece uma alucinação; uma das piores possíveis. Não dá para entender o que meus olhos vêem. Uma Rachel Berry perfeitamente alinhada parada em frente à minha porta, encarando toda a minha desordem exposta.

Não é uma boa hora para eu lidar com isso.

Meus dedos na maçaneta fazem menção de fechar a porta, mas os olhos de Rachel me analisam com tanto esmero e preocupação que sinto vergonha da ação. Não consigo encontrar um sentido para essa confusão. Não consigo entender o que vejo.

— Hm. O que está fazendo aqui? – decido que a melhor forma de lidar com isso é não oferecendo resposta alguma (porque não a tenho, é claro) e sendo totalmente retórica. Que se dane. Minha cabeça dói tanto e acho que meus olhos estão lacrimejando.

Rachel cruza os braços e aperta os lábios. Eu conheço essa compostura, significa que está nervosa e irritada ao mesmo tempo. Que não sabe o que fazer. Parece que temos isso em comum, que ótimo. Mas não tenho tempo nem vontade para encarar o que quer que Rachel queira de mim. Só preciso voltar para a cama e dormir mais umas vinte e quatro horas. Seria ótimo. Talvez dormir amenize, de algum jeito, essa dor toda. Provavelmente, eu pensaria mais racionalmente.

— Não sei.

Identifico alguma coisa no semblante dela. É algo que acompanha sua fala, uma extensão do que está dentro dela. Parece que está oferecendo isso a mim, mas de forma muito codificada. O que é? O que você quer?, a vozinha dentro da minha cabeça se irrita. Mas ela não sabe. É evidente: não existe nem uma certeza no que Rachel está me oferecendo.

— Não é uma boa hora. – não existe a real necessidade de eu dizer algo, mas ao dizer a situação parece menos drástica, como se pudesse ser adiada. Não temo o que Rachel traz, se é que traz algo, estou apenas muito esgotada, desencontrada e impaciente. Bastante com raiva, se quer saber.

Ela teve horas – horas— para quebrar o silêncio ontem, mas resolveu fazê-lo agora. Como se fosse ajudar. Como se pudesse mudar algo. Pelo contrário, sua cena somente me faz perceber que tudo já está mais do que acertado. Que o que quer que exista entre nós, agora, é imutável. E não quero mais combater isso. Só quero que vá embora. Ela e toda essa situação.

Minha fala a desconcerta, talvez por causa do meu tom ríspido. Provavelmente, achou que eu a convidaria para entrar e deixá-la falar e falar e falar. Mas eu não quero ouvir mais nada. Nunca mais.

Percebi que esse é o fim da linha.

Para tudo o que foi e para tudo o que eu quis que fosse.

Não quero que ela diga que sente muito, que precisava de tempo, ou qualquer outra desculpa. Ela deveria ter sentido antes, sem ter hesitado. Agora nada disso importa mais. Espero que tudo isso desapareça o mais breve possível.

Rachel me escruta com olhos de alguém ferido e surpreso.

Não finjo que isso me abala – porque não há mais nada dentro de mim o suficiente para que sua atitude me faça sentir culpada. Senti-me culpada por tantos anos que criei certa resistência. Joguei fora tudo isso, porque a culpa é inútil.

 – É melhor ir embora – eu digo. Não sei de onde estou retirando tanto afinco, uma vez que poderia desmoronar bem aqui, agora. Mas acho importante que ela entenda.

Se eu desfiz o casamento de Rachel e de Finn, não é mais problema meu. Quem trouxe a verdade dos confins de todas essas camadas de fingimentos e mentiras foi ela, ontem. Mas, se não é capaz de lidar com isso, não posso oferecer soluções milagrosas. Eu nem sei o que vai ser da minha vida a partir de agora. Como posso querer consertar a vida de outrem, se mal sei me reconhecer no espelho? Parece errado e injusto. Comigo e com ela. E eu cansei de errar. Preciso fazer a coisa certa, agora.

— Não volte. Por favor – adiciono.

Dizer que bati a porta na cara dela seria uma hipérbole, porque não houve estrondo algum. O que acontece, em seguida, é silêncio – nada tão diferente do usual. A porta está cerrada e eu a encaro. Não sei se Rachel está do outro lado, mas não sou capaz de sentir nada. Tristeza, raiva, ansiedade. Fico respirando no mesmo lugar, a mente vazia, os braços ao redor do meu próprio tronco. É esquisito. Não existe nada. Nunca mais vai existir nada.

Acho que é assim que a desistência acontece.

Não faz estardalhaço algum, simplesmente vem. Não provoca medo, ou luta.

Nós apenas ficamos parados no tempo.

Solto um suspiro, sentindo meu cenho vincado.

Isso não se parece com nada com que já senti antes e não sei dizer o quão benéfico e maléfico é. Minha mente continua vazia e eu a encho com o único pensamento que o momento merece: às vezes desistir é a única opção que nos resta.


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Notas finais do capítulo

Eu nunca escrevi palavras nas quais não acredito, então, não poderia ter escrito um capítulo diferente. Muito antigamente, eu teria escrito algo diferente, porque acreditava nisso, nesse final feliz. Mas, hoje, eu só acredito em finais.
Esse capítulo é o começo de um final.

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