Além das Dunas Brancas escrita por Shalashaska


Capítulo 9
Diáfano


Notas iniciais do capítulo

Olá, minha gente!!
Quero desejar Feliz Dia da Mulher para todas as minhas queridas leitoras; espero que todas recebam pelo menos algumas flores ou mensagens neste domingo tão especial! Hoje, lembramos nossas antepassadas, agradecemos a luta que nos abriu caminhos. Há mais o que se fazer, mas com união e perseverança o mundo transformará-se num lugar muito lindo para as mulheres que ainda virão.
Por uma vida mais linda e leve para todas nós, pois merecemos!

Também quero agradecer muitíssimo aos meus leitores que comentaram na semana passada: HeisenNerd, Gabi Lords, Auri e Amanda Abreu, vocês foram tão doces!! Fico muito feliz pelos elogios, agradeço do fundo do meu coração, mas confesso que me dá certo receio decepcioná-los de alguma forma XD Portanto, espero que gostem do desenrolar da trama de hoje.

Hoje o capítulo é mais suave.
Boa leitura!!

(Galera, minhas notas iniciais são cortadas quando vou postar os capítulos, de modo que tenho que reescreve-las toda vez e eu me perco! Isso acontece com as suas fics também?)



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/585514/chapter/9

Os olhos do aprendiz estavam bem abertos; suas íris de denso e escuro mel absorviam a energia da imagem a sua frente. Notou com um veloz calafrio na espinha que sua pele inteira arrepiara-se, cada pelo do braço eriçado como um gato assustado. Sua respiração estava presa na garganta, a qual parecia pulsar com um gaguejo entalado:

“Uma gênia?!”

A porta aberta, que era a janela de sua alma, deixava a aura de poder entrar, vinda daquela voz serena e ancestral. Um eco retumbava no ar e na areia, como se a composição da atmosfera estivesse diferente pela simples existência do ser feito de vapor. A fumaça púrpura então tremulou por um segundo e depois flutuou pelo vento como uma lenta estrela cadente, com sua cauda de névoa. Aproximou-se mais do dois viajantes, que ainda estavam sentados no solo quente.
Neste leve movimento, Kadar lembrou-se de respirar e o fez com desespero. Estava diante de uma espécie imprevisível, cujos feitos ressoavam através do tempo e espaço. Todas as lendas invadiram sua mente de uma só vez, frases soltas e emoções desconexas, lembranças de contos ditos ao redor do fogo. Não conseguia distinguir os olhos naquela criatura amorfa e indescritível, porém sentiu-se observado atentamente, dissecado, destrinchado e revirado pelas entranhas. Adrenalina correu pelas suas veias, injetando cada músculo de intensa inquietação.

Se de fato houvesse uma porta que levasse até sua alma, a gênia estava entrando. Entrando e enxergando cada canto que nem mesmo ele queria olhar.

Como deveria se portar? Seria sua obrigação mostrar-se humilde, servil ou até submisso? Ou então os gênios admiravam valentia? Mito nenhum discorria sobre comportamentos diante de tais seres, pois o folclore ensinava principalmente a evitá-los a todo custo. Suas próprias palavras então sussurraram em seus ouvidos: “Acho que jamais aconteceu tanta coisa estranha comigo quanto nesses últimos dias.”

Com o coração aos saltos, embora com o corpo paralisado por inteiro, ar saiu de sua boca aberta através de breve suspiro. Sentira algo a mais na atmosfera, finos e macios indícios de uma curiosa fragrância, um perfume refrescante de uma flor desconhecida.

Dos seus lábios um leve sorriso surgiu, algo impensado e tolo, enquanto ponderava o quanto era um verdadeiro banquete aos sentidos encontrar-se com tal criatura. Suas emoções afloravam-se inquietamente; terror, euforia, admiração e raiva; no entanto deparou-se também com a serenidade plena em seu espírito. Tinha medo e sabia que isso era tanto instintivo quanto racional para a ocasião, mas a curiosidade lavou todo o seu interior de qualquer resquício de tão baixo sentimento.

Alethia, por sua vez, experimentou cada molécula sua queimar, sentiu seu corpo resistir a ser desintegrado, mas aos poucos ceder igual a todas as vezes que conferia tão de perto e profundamente a verdade dos mortais. Sim, a verdade doía e principalmente para ela, contudo estava mais do que acostumada e, ao menos desta vez, agradou-se com a visão. Ela recuou e deixou que sua temperatura voltasse ao normal.

– Alethia! – Raed disse com um debochado tom alegre, sem saber o que acontecera entre a gênia e seu amigo enquanto observava a fumaça roxa. No fundo, estava nervoso por vê-la tão cedo e inesperadamente após a discussão. – Então nos concede sua nobre presença...

– Sim, meu amo. – Ele notou um sorriso displicente, quase irônico, em sua voz. – Da forma que eu de início planejei.

Kadar percebeu que além da gênia e do perfume no ar, havia mais algo que ele não sabia. Antes que o ladrão respondesse com o veneno que lhe viera de imediato à boca, o aprendiz levantou-se da areia, afirmando com entusiasmo:

– Uma gênia... – Sua simpatia não era atuação de mercador que aprendera. Virou-se para o amigo, cuja face estava torcida, e completou: - Por isso mantinha a garrafa sempre por perto.

– É a tal da “feitiçaria das boas”, como você disse.

Para o desgosto de Raed, que ainda revirava-se com o desentendimento da madrugada, a gênia riu. Era como se o mortal tivesse simplesmente sonhado com a noite passada.

– Não precisa ficar constrangido, Kadar. – As bochechas dele coraram pelo tom amável que ela usou. – Ambos sabemos que Raed é doce assim mesmo.

O breve gargalhar do aprendiz ecoou pela atmosfera abrasiva, uma fonte inesperada de frescor. Estava de fato impressionado, pois a aura formal e severa da gênia se desfez com aquela afirmação matreira, provocando o seu amo. As lendas também não contavam sobre o senso de humor dessa espécie.

A tentativa de incitar um atrito entre Alethia e Kadar fora completamente revertida num tolo gracejo, de modo que uma grande nuvem astral cobriu a cabeça de Raed com sombras e relâmpagos. Sempre odiara brigar com sua companheira de viagem e ficava alguns dias de mau humor quando isto acontecia e agora Alethia, que deixara bem clara a sua opinião quanto ao seu amigo e aos mortais em geral, unia-se justamente à Kadar para rir de suas reações nervosas.
Ele desejou que ela, cega pelas suas próprias palavras, visse o quanto fora maldosa em dizer que o ex-comerciante era ganancioso a ponto de traí-lo. Ansiou com todas as forças que Alethia quisesse discutir de novo. Seu pulmão ardia em desejo de gritar com ela, embebido na mais pura frustração; no entanto tudo isso não era exatamente pelas razões que achava que era.
Os últimos dias o abalaram muito mais do que admitiria e o seu interior estava igual ao mar que parcas vezes vira: imprevisível, instável e tempestuoso. Sentimentos incendiavam suas veias com intensidade, algo que ele reprimia por baixo da pele.

– Certo, certo... – Ele passou as mãos pelas têmporas, depois abanou os dedos para apressá-la. – Vamos, Alethia, te dou a tal graça. Faça o que tem de fazer e nos tire logo daqui.

Um sopro mais forte atingiu a névoa densa e começou a dissipá-la num tom dourado igual ouro em pó salpicado no ar.

Ela está sumindo?!”

– Ei, ei, ei! – Raed também levantou-se num pulo, aproximando-se. Seria possível puxá-la de volta? – Onde está indo? Não disse que estava preparada?

– É, fique mais um pouco. – Kadar adiantou-se, somente para receber um olhar feio do ladrão. Querendo rir, a voz dela respondeu com o seu eco sobrenatural de costume.

– Estou preparada para dar início aos ritos.

– E o que fazemos enquanto isso? – Ele ergueu os braços exasperado, indicando o mar de areia que estavam, pois sabia que levaria tempo para concluir o que quer que fosse. – Morremos de fome?

– Aconselho que descansem mais, durmam se possível. Será bem desgastante para os dois quando eu movê-los daqui, o que deverá ocorrer ao pôr-do-sol.

Raed suspirou alguns resmungos que tanto a gênia quanto seu amigo decidiram ignorar.

– Não era para você facilitar a minha vida?

– Acredite, - Sem querer argumentar mais, a fumaça roxa gradualmente cedeu lugar à um brilho dourado misturado à transparência do vento. Ela estava cansada e queria se distrair com algo mais do que a irritação ilógica de seu amo. – Estou fazendo isso.

Dito isso, Alethia partiu.

Dois viajantes se encararam, ambos confusos e apreensivos. Novamente eram apenas eles, Safir, um cantil e o deserto. No entanto, a garrafa púrpura sempre tão quieta e misteriosa estava vazia.

– Bem, - O ex-comerciante arriscou dizer, mesmo com a aura colérica do amigo. – Não será difícil desmaiar com esse calor.

–••–••–••–••–••–••–••–••–••–••–••–••–••–••–••–••–••–••–••–••

Kadar tentou puxar conversa enquanto ele e seu amigo estavam debaixo das sombras, abrigados do castigo injusto do Sol, porém não conseguiu retirar muito mais do que respostas monossilábicas e breves resmungos. Sentado com as pernas e os braços cruzados, Raed parecia concentrar-se num mantra de puro ódio, emanando uma energia rubra para fora de seu corpo. Não narraria as diversas aventuras que seu irmão queria tanto saber, principalmente aquela em que encontrava certo frasco místico, o qual Kadar segurava nas mãos com genuína devoção. Pensava ele que esta era a garrafa original de Alethia, e não parava de passar os dedos sobre os arabescos em alto relevo. O ladrão observava aquilo se segurando para não arrancar o objeto das mãos do outro e jogá-lo longe, como pensara dias atrás.

As horas se arrastaram, Kadar caiu num sono profundo e Safir cochilava e acordava de tempos em tempos. Raed encarou o céu e fechou sua expressão mais um pouco, arrancando uma risada fina e cristalina do ar.

– Ficará assim o dia inteiro?

Responder uma pergunta com outra pergunta lhe incomodava, contudo foi inevitável que isto lhe saísse da garganta:

– Ora, você não está fazendo o ritual? Não precisa de concentração?

“Já entendi que gênios são imprevisíveis, mas eles precisam ser tão irritantes?” Refletiu, lembrando-se da discussão e de como essa briga parecia ter evaporado junto com o bom senso de Alethia. Talvez fosse mais fácil se ela tivesse apenas lhe concedido algum desejo, ou quem sabe esta era sua maneira particular de amaldiçoar os homens.

– Vocês dois assumiram isso por si mesmos. – Ele soltou um suspiro debochado, sentindo veneno ácido lhe encher a boca. – Eu não disse nada.

Raed arqueou uma sobrancelha e apertou seus braços cruzados sobre seu tórax:

– Como sempre.

– Idem.

Mais silêncio se fez, cobrindo os pensamentos do mortal e da criatura feita de brumas. Ambos não eram completamente honestos um com o outro, pois Alethia esquecia-se de se comunicar por puro hábito de solidão de sua raça, e Raed, também uma criatura só, evitava expor os cantos escuros de sua essência.

– Sua víbora. – O caçador de recompensas sibilou em desgosto. - Se fosse tangível, eu te açoitaria com as rédeas do cavalo.

– Como você gosta de brigar comigo enquanto Kadar dorme! – A voz dela disse com bom humor, aliviando a aura de seu amo, mesmo que a contragosto. De tão furioso, começou a achar certa graça na situação.

Quem mais se desentendia de forma semelhante com um gênio?

– Ah, Alethia. – Ele soltou mais um suspiro. – Você não existe. Falando em brigar, por que a mudança de opinião? Por que decidiu aparecer para Kadar?

As partículas de ouro refletiram intensamente a luz do Sol.

– Ele tem um interior que eu nunca vi. – Ela afirmou com um tom sério, quase assombrado. – Saibas que tens um grande amigo ao seu lado.

Dezenas de questões fizeram tempestade na cabeça de Raed, porém apenas uma única e aparentemente matreira pergunta escapou pelos seus lábios, os quais já armavam um meio sorriso zombeteiro:

– E eu? O que tem no meu interior?

Na verdade, esta era um dos pontos que o ladrão tinha receio em tocar. Uma pergunta tão simples, dita de forma irreverente e leve, guardava em segredo boa parte de sua essência.

Como seria seu interior, afinal?

– Você é diferente. – Ela riu, sem saber o que suas palavras significavam.

– Diferente? – Não pôde dizer que a resposta foi uma completa decepção. – Não sei se gosto ou não disso.

– Você não tem de gostar, é apenas diferente. – Alethia estranhou a expressão que seu senhor fizera: um riso mudo, com os olhos estreitos de quem entendera a malícia de uma piada. – Não consigo enxergá-lo com clareza, pois é meu amo. Mas posso interpretá-lo.

“Ou ao menos tentar” Ela completou mentalmente, confusa por Raed ser tão ou mais volátil quanto à névoa de seu corpo.

– Sim, você é a gênia. Entendi.

O ladrão sacudiu levemente a cabeça e mirou o corpo adormecido de Kadar, esparramado e alheio à conversa. Se alguém o visse daquela forma, ainda com os hematomas que lhe cobriam a pele, com a boca aberta e todo desmantelado, pensariam que o infeliz foi surrado até a morte por bandidos, não tão raros assim em viagens no deserto.
Raed desconfiara de seu irmão antes, ao vê-lo segurando a garrafa de Alethia. Até onde ele teria absorvido os princípios corcovanos, ou pior, os valores de seu padrasto Tamir? Ele próprio virou ladrão em tempo integral, uma evolução nada nobre do menino que roubava doces e fazia travessuras no palácio. Então, quem seria esse homem chamado Kadar? Não havia como ter plena certeza de sua lealdade, pois o passar dos anos é um bálsamo corrosivo: Cura, mas também deixa marcas. O que seria de seu amigo de infância depois de onze anos?

Encarando as marcas nos tornozelos e o ferimento enfaixado no braço, lembrou-se de como tentaram desesperadamente sobreviver quando a Corcova Azul os pegaram. Reviveu as mesmas emoções aflitas do momento em que Tamir quase assassinou seu enteado. Sentiu a desconfiança e viu o quanto fora contraditório em acusar Alethia sendo que ele próprio suspeitava de Kadar. Sim, tinha um grande amigo ao seu lado, mas a questão era:

Até quando?

Como se de fato pudesse ler os pensamentos de seu senhor, a gênia abrandou o tom ao confortá-lo:

– Não se preocupe com Kadar agora. A viagem está custando tudo o que é, mas ele está indo bem. – “Vocês dois estão” ela divagou, sem revelar tal pensamento. – Durma, na boca da noite os acordarei.

Raed imaginou ter visto um sorriso tímido se formar no ar e ele nada pôde fazer além de mostrar as palmas da mão, num inconsciente gesto de sinceridade.

– Então... Paz?

– Deixaríamos uma única discussão mudar isto?

O ladrão não respondeu. Somente esticou-se para alcançar algumas sacolas, agora quase vazias, para servir de travesseiro e encostou sua cabeça no tecido, ajeitando-se de lado para cair na diáfana inconsciência. Fechou os olhos, e mais rápido do que supôs de início, dormiu.

O vento soprou sem peso algum, levando um estranho e súbito toque de borboleta aos rostos dos viajantes como um beijo terno em cada. Pairando junto ao ar, a criatura etérea observava-os.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Escrevi basicamente ontem e hoje, então não dei uma revisada muito profunda no material... não quis deixá-los esperando! Se encontrarem algum erro, por favor me avisem que eu corrijo!
Dependendo como for, escreverei mais e postarei de novo ainda hoje!! ~~ Tô empolgada para a joia das mil tretas que está chegando MUAHAHAHA~~
Muito obrigada por acompanharem essa minha história, vocês são os melhores leitores do mundo!! *0*



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Além das Dunas Brancas" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.