Além das Dunas Brancas escrita por Shalashaska


Capítulo 8
A Luz em meio a Estafa


Notas iniciais do capítulo

E aí, o final de semana foi bom?
Chego com mais um capítulo antes do que eu esperava! Comecei a trabalhar semana passada e ainda tenho de estudar, então me sobra pouco tempo para... bem, pra tudo. Faço o meu melhor para continuar escrevendo com a mesma qualidade de antes, quando eu tinha horas e horas livres, então espero que gostem desse novo capítulo. Ouvi muito o novo album do Imagine Dragons, "Smoke+Mirrors", relacionei várias músicas com alguns momentos da história, personagens e sentimentos, portanto se alguém quiser ouvir (principalmente "Hopeless Opus" e "Polaroid") fique a vontade!
Boa leitura!



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O balanço do cavalo era constante, ia de um lado para outro sob um rigoroso ritmo sonolento, igual à uma mãe tentando ninar uma pequena criança. Junto ao vento quente e um cenário que pouco mudava, Kadar escorregava na sela do animal, querendo dormir. Os olhos piscavam e ele lutava para permanecer acordado, porém sabia que mais cedo ou mais tarde seu corpo dolorido penderia para frente num desmaio exausto.

A quanto tempo estavam nessa caminhada melancólica? Para onde rumavam? E o mais importante, demorariam a chegar?

Tais questões circundavam a cabeça de Kadar como abutres sobrevoando uma carcaça. Sentia-se de fato podre, e começava a duvidar de sua decisão de acompanhar Raed. “Talvez a pedrada na cabeça em Sundara tenha o tirado da completa razão”, conseguiu pensar em suas aéreas divagações. Agora, embaixo do Sol e no mais puro silêncio rumo a lugar nenhum, ele desejava avistar o azul dos corcovanos e rumar para sua terra natal, para aquele destino feliz e incompleto que vislumbrara. Sim, incompleto mas com algum propósito claro.

Logo à frente, os pensamentos não eram mais alegres.

Raed sentia o calor do solo envolver seus pés através de seus calçados de couro e ainda assim caminhava firme, puxando o animal pelas rédeas. Não acreditava em sorte ou azar, mas aquilo era um recado do universo de muito mal gosto; era humilhante até o último nível: O cavalo que dispunham, a única montaria que Zahir os permitira levar, era o velho cavalo que Raed comprara por oito moedas de cobre e trocara por um lindo dromedário no mercado. Os corcovanos o mantiveram vivo por toda esta dura viagem. Uma ironia triste abalou o peito do ladrão, forçando-o a cogitar o preço real de seus furtos.
O início dos conflitos que sofrera viera a ser o final deles. O fim remetia ao começo.

Se não estivesse com tanta raiva, poderia chorar.

O único lado positivo da história era que o bicho era mais resistente do que Raed supunha, tal era sua impressão de ser trôpego e fraco. Revezando o lugar na sela com seu amigo, percorreram um longo trajeto sem que o cavalo aparentasse grandes dificuldades, o que bem o impressionara. Na cidadela, ele não era assim.

– Sei que não me obrigou a nada, - A voz de Kadar lhe atingiu os ouvidos, de modo que a imagem dele desabado sobre o torso do animal lhe viesse a cabeça. Não precisava vê-lo para que soubesse que seu companheiro de viagem estava assim. – Mas eu acho que estamos perdidos.

“Como é bom eu estar de costas!”, Raed concluiu com um esboço de sorriso. Estavam perdidos, porém não da maneira que o ex-comerciante imaginava.

– Ainda estamos em Ravel. – O ladrão respondeu, sabendo que a afirmação nada significava, pois aquele era o nome dado a toda a porção de deserto em volta de Nirav. Marchavam com os olhos grudados no horizonte repetitivo, infestado de areia e de vez em quando apresentando rochas maiores ou parcos oásis. No meio do crescente e abrasivo desconforto, rumavam à um lugar também desafiador, embora com as devidas recompensas; e tal conclusão parecia uma filosófica metáfora com a vida dos dois. Sempre foi assim, caminhando sobre terras áridas com um objetivo distante e quimérico em mente. Kadar soltou uma risada de deboche.

– Engraçadinho. – Finalmente se debruçou sobre o cavalo, e em meio aos seus questionamentos, se indagava como poderia chamá-lo. Safir? Mustafá? Ou Malik? – E, retomando a nossa conversa antes de sermos chutamos e ameaçados, o que de mais tem no Sul?

Raed parou e com um profundo suspiro voltou-se para encarar os olhos do amigo.

– Não me leve à mal, mas você fez uma péssima escolha. – Limpou a garganta, lutando para seu discurso soar com solidez, mesmo que isto machucasse Kadar. Lembrou-se do clima de desconfiança mútua de manhã e não parava de pensar que talvez não fossem amigos como imaginavam ser. – Deveria ter ido com Zahir.

– Eu já ponderei isso. Estamos aqui, há horas de distância de qualquer rastro de um vilarejo ou caravana. Fiz minha escolha, por mais que seja péssima, e não posso mudá-la. Escute... – Ele abrandou a voz, vendo que Raed estranhara seu tom e suas frases. – Sei que não gosta de se explicar, mas ao menos me diga para onde vamos.

O caçador de recompensas virou-se abruptamente, passando ambas as mãos pelo rosto e depois pelos tecidos que lhe cobriam a cabeça. Por todo o percurso odiara-se por não ter sido forte e recusado a decisão estúpida do amigo, uma decisão que só não era tão tola quanto aceitá-la como o ladrão aceitou. “Zahir tem razão, Kadar sempre foi meio ruim das ideias. Imagino então o que ele diria sobre mim.”

Recordando-se novamente dos olhares de dúvida que trocaram, concluiu que somente seria amigo de Kadar se prezasse mais pela vida dele do que o egoísmo de levá-lo à uma missão suicida.

– Se eu dissesse, você não viria comigo. – Murmurou, observando o longo trajeto que ainda teriam de percorrer.

Kadar desceu do cavalo, andando meio bambo por ter se acostumado com o ritmo moroso do animal. Aproximou-se de seu irmão, impressionado o quanto este estava errado, o quanto se recusava a acreditar que ainda era seu amigo a despeito das mudanças por quais passaram. Apertou o ombro dele como Raed fizera tempos atrás, e por mais que não houvesse armas para enfrentarem tal situação como o punhal que indicara no momento, queria lhe mostrar que ainda a enfrentariam juntos.

– Então não diga. – Foi a vez dele de dar as costas ao amigo e pegar as rédeas do animal. Safir, este seria seu nome. – Entendo que seja algo importante, e sinceramente... Não tenho nada melhor para fazer. Vamos, suba no cavalo. É a sua vez de montar nele, depois faremos uma pausa para os três.

Raed deu um meio sorriso, surpreso pelas declarações de Kadar. Ao montar em Safir, porém, seu sorriso desapareceu e ele se negou a deixar-se levar pela leveza agradável das emoções. Sabia que a convicção do amigo não se manteria intacta por toda a viagem, muito menos quando chegassem às Ruínas.

Sabia que mais uma vez separariam-se.

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Horas escorreram numa sequência de longas caminhadas e pausas; a cada minuto vencido pela sofrida resistência parecia sugar mais um gole de vitalidade dos três corpos. Raed aguardava pacientemente a hora em que seu amigo de infância desistiria dessa viagem insana e partiria logo para agressão, o que aceitava como algo muito justo. Isso nunca aconteceu. Eles andaram e andaram até o Sol desabar do céu; sua queda custando toda a luz do mundo. Pararam perto de um rochedo para descansar.

O vento uivava, trazendo repentinamente breves nuvens de poeira e frio. Diferentemente de camelos, os olhos de cavalos eram sensíveis à partículas finas no ar, de modo que além da tenda para os dois, também ergueram tecidos para proteger o velho animal da areia, o qual parecera agradecido pela pausa e pelos cuidados. Apesar da temperatura amena, não podiam acender uma fogueira no meio da barraca, então decidiram utilizar uma pequena lamparina para se aquecerem e jogaram mais alguns tecidos que tinham em cima de Safir. Assim que finalmente sentaram-se para respirar melhor após longas horas de viagem, uma espécie de torpor tomou o controle do espírito de ambos.

Kadar soltou um longo suspiro, esticando as pernas e flexionando os braços. Estava dolorido por inteiro, pois além do esforço físico ainda não se recuperara dos hematomas; nem se curaria em menos de uma ou duas semanas. Torcia para que chegassem à algum lugar muito bom onde pudessem desfrutar de cuidados intensos e, sonhava ele, um alojamento luxuoso. No fundo sabia que não seria exatamente assim, porém aquilo o animava de forma que não tinha coragem de desistir de seu ínfimo combustível. Ele encarou Raed, observando-o enquanto massageava seus tornozelos marcados pela boleadeira. Além do impacto e o aperto na carne, cair na areia à ponto de quase mastigá-la tinha sido horrível, mas Kadar não imaginava ao certo como a cena desenrolara-se neste ponto. Já estava quase inconsciente quando seu irmão fora pego.

Por fim, sentiu fome. Fazia horas que não punham nada na boca e ele não queria gastar o único cantil que possuíam, uma vez que Raed tivera a estranha ideia de presentear Tamir com a garrafa que a água nunca acabava. Não entendera ainda a razão por trás daquilo, no entanto não questionou e optou por afastar qualquer tipo de raiva que brotasse em seu peito. O ladrão deveria ter algum motivo para ser tão bondoso. Remexeu na bolsa e pegou um punhado de grãos de uma pequenina sacola, em seguida oferecendo-a para Raed.

– Oh. – Ele a aceitou, por um momento ainda distraído. – Aqui, pegue água. Não tem se hidratado bem.

Percebera que este comia pouco e bebia menos, e então começara a se preocupar. Já não estavam em um clima fácil, e agora feridos precisavam se cuidar mais que de costume. Kadar, porém, ergueu a mão em sinal negativo.

– Precisamos para amanhã. – Concluiu, sentindo a boca completamente seca.

Raed poupou sua voz e inclinou a cabeça para cima, gorgolejando todo o líquido. Enquanto engolia cada gota, fazendo de seu estômago um balão d’água, os olhos do aprendiz arregalaram-se com um aperto na garganta. Não respirava ao ver tal cruel cena. O caçador de recompensas então sorriu e arremessou a garrafa.

Kadar não estava preparado para o peso que recebeu nas mãos.

– Está cheio!

– Mas é claro! – Raed afirmou com um riso incrédulo. Seu amigo realmente pensara que daria a Água infindável para um ser inescrupuloso como Tamir? – O que você esperava?

– Eu... eu já não sei. – Foi a vez dele matar a sede, sendo mais ávido do que planejara. – Minha nossa. Acho que jamais aconteceu tanta coisa estranha comigo quanto nesses últimos dias. – Ele tampou o cantil e passou a mão direita pelas têmporas. – Ilusões, você, eu fugindo da Corcova Azul... Nós dois apanhando e depois Tamir condenado ao exílio. É... É muita coisa para processar.

O outro o mirou achando certa graça no comportamento do amigo, consciente do que mais passariam caso Kadar aceitasse entrar nas Dunas Brancas. Em seguida, lembrou-se das mil e uma histórias que vivera com a Alethia, a gênia mais temperamental que Raed supunha existir, por mais que não tivesse muita experiência com a raça dela. Nas curtas imagens que lhe rodopiaram atrás dos olhos, ele pareceu ouvir sua voz ora calma ora irritada. Sorriu pelo canto da boca e, por causa aquele instinto que queria tanto largar, passou a mão pela garrafa roxa presa à sua cintura.

– Não acho que duramos mais três dias, - Kadar continuou, notando o rápido e quase imperceptível movimento do amigo. Escolheu ignorar aquilo por enquanto. – Mas ao menos terei a chance de ver a Luz de Nirav. Sempre quis vê-la.

Desperto de púrpuras recordações, Raed assentiu.

Dizia-se que à noite no deserto, principalmente quando havia tempestades de areia, um facho intenso de luz atravessava quilômetros e quilômetros para orientar os viajantes, independente da parte de Ravel que se encontravam. Alguns diziam que era inteira branca, outros acrescentavam um toque dourado ou mesmo ciano ao seu tom, mas todos contavam que era um sinal de esperança na aridez da terra. As lendas narravam detalhadamente sobre o sentimento de ânimo efervescente, de alegria e tranquilidade absoluta. Acalmava a loucura que o calor do dia impunha e a preenchia a solidão dura da noite. Vinha de Nirav, o palácio paradisíaco, mas ninguém fora perto o suficiente da capital para ver de onde exatamente saía a luz.

– Tenho de admitir... É impressionante.

– Você já viu? – O jovem criador de animais mal podia acreditar. – Como era? O que você sentiu? É tudo o que falam?

Os ombros de Raed retesaram-se fronte a tantas perguntas e quando afinal tomou fôlego para responder, os padrões estampados no tecido acenderam-se em cores vivas como postos debaixo do Sol.

A Luz de Nirav aparecera.

Kadar levantou-se como se nunca tivesse sofrido um único ferimento na vida, veloz nos curtos tropeços pela areia, sendo logo acompanhado por Raed. Os dois viajantes saíram da tenda e puseram-se de pé para admirar a distante e cálida luz, a qual abria um caminho seguro para a direção da capital. O lume não machucava as pupilas, pelo contrário: parecia curar os olhos das imagens ruins que a alma ferira-se em ver. Cintilava, banhando a areia em tons de prata.

A tempestade de areia cessara, não ouvia-se mais os uivos dos lobos de vento. O tempo parecia parar enquanto contemplavam tal doce visão. O corpo de Kadar tremia em êxtase, borbulhando ondas de satisfação e alegria, pois um de seus sonhos realizava-se mais cedo do que esperava e aquilo lhe deixou ar ou palavras para descrever seus sentimentos. Coisas estranhas lhe aconteciam a cada novo dia e mesmo com todas as lesões e a incerteza do amanhã, sentia que afinal vivia. Não importava mais se estava no meio do deserto com míseros suprimentos rumo à um lugar sem nome.

Raed percebera o pulsar da aura do corpo ao seu lado e não precisava fazer uma única pergunta à Kadar para confirmar seu júbilo. Ele sabia que seu amigo sentia tudo o que as lendas diziam e muito mais; sabia que, para Kadar, aquilo era um sinal.

Em meio à curiosa luz, no entanto, uma sombra transpassou seu coração: Somente a água era eterna e um longo trajeto os aguardava. Era uma árdua prova de confiança, de resistência para chegarem ás Ruínas.

Quando lá estivessem, saberiam então que estavam na metade do caminho.

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– Certo, - Kadar passou a língua pelos lábios sentindo-a áspera como fosse feita de areia, de tão seca que estava sua boca por causa da raiva. – Eu retiro o que eu disse sobre não me importar com minha escolha de vir e etc. Esqueça tudo o que mencionei e vamos voltar.

– Ah... – O outro respondeu com um suspiro. Parecia que uma cascata de desastres rebentava com o desenrolar dos dias. – Podemos matá-lo ao anoitecer, daí teremos jantar, desjejum da manhã seguinte e talvez almoço, se o Sol não apodrecer a carne dele até lá.

Ambos encaravam o cavalo e não acreditavam na peça que o destino pregara. Os dois viajantes pararam para outro descanso, que era mais e mais frequente devido ao calor do Sol a pino, porém não havia comida o suficiente para que desfrutassem de todas as refeições diárias, ou ao menos não havia desde o alvorecer: Safir sentira fome durante a madrugada e aproveitou o sono pesado de seus novos donos para fazer uma breve visita à barraca deles, farejando a comida e devorando boa parte dela.

Agora eram eles, Safir, o cantil e o deserto; uma estupenda combinação.

Estavam cansados e o cavalo já demonstrava sinais de fadiga, para o desespero de seus espíritos já abalados. Por fim, escolheram uma larga sombra atrás de um rochedo para descansar, uma vez que Ravel era um misto de areia e solo rochoso, imensas pedras que serviam de abrigo aos que ali se atreviam aventurar.
Raed desejava que arrependimento de fato matasse, pois estaria morto há tempos para desfrutar desse elaborado infortúnio. Esquivara-se da morte diversas vezes para então ser lentamente assassinado por um animal através da inanição? Oh, aquilo lhe deixava o sangue quente, mesmo que refletisse uma estranha calmaria. Parecia ainda não acreditar no que estava acontecendo. Escorregou lentamente sobre os próprios pés e sentou-se com as pernas cruzadas, encarando os olhos do animal.

Um ronco fez ouvir-se naquela imensidão desértica.

– Foi a minha barriga ou a sua? – Kadar perguntou, sentando-se também. Fazia horas que não comiam e agora restavam poucos grãos, os quais adiavam gastar o quanto podiam. Seu amigo virou o rosto apático de forma desengonçada e murmurou:

– E faz diferença? Vamos morrer de fome daqui a pouco mesmo.

– Bem, - Ele empurrou a areia com os calcanhares, como fizera certa vez há anos quando visitou a praia. Aquilo o acalmara, embora pouco. – Podemos enfiar a adaga um no outro ao mesmo tempo.

Raed riu.

– Do jeito que as coisas andam, é capaz de agonizarmos durante muitas horas antes de finalmente morrermos... e eu não estou com a mínima vontade disso.

Os dois soltariam uma melancólica risada, se não fosse a dor da fome que apertasse-lhes o estômago. Não era o único, mas era um dos piores tipos de vazios que o ladrão sentira em toda a sua vida, esta que dava sinal de chegar ao fim.

“Morto por um cavalo” ele soltou um bafejo. “Que piada. Nem pra morrer direito eu sirvo.”

Jamais contara com muita ajuda além de sua própria capacidade e falta de amor pela vida e no momento tinha a plena convicção de que a gênia ria dentro de sua garrafa ao vê-lo sofrer. Era certo que ela não tinha um pingo de intenção de ajudá-los.
Na noite anterior, antes que também caísse no sono e Safir aprontasse tal tragédia, Raed tentara se comunicar com Alethia mais uma vez, sussurrando pelo seu nome fora da barraca para não acordar seu amigo. Não tinha certeza do que esperar de uma conversa com ela depois de tudo o que acontecera desde que saíram da cidade, no entanto acreditava que teria uma recepção melhor do que um sibilo nervoso vindo da garrafa, um filete denso de fumaça roxa saindo da tampa pontiaguda.

– Alethia! - Ele não conseguiu reprimir uma exclamação aliviada. – Alethia, você acordou.

– Quieto, meu amo. – Rebateu, fria como só a língua dela era capaz de ser. O sentimento de indignação cravou-se no peito do ladrão, provocando ondas de ira devido ao orgulho ferido. – Kadar não deve nos ouvir.

Disso Raed sabia, apenas não compreendia o motivo exato que a azedara.

– O quê?

– Ele verá um gênio. – A voz dela soou firme e impaciente. – Verá a chance de realizar todos os sonhos e desejos, verá a possibilidade de se tornar um rei e ser adorado como um deus. Diga-me que isso não é tentador. Diga-me que não seria fácil te trair e roubar minha garrafa. – Ele permaneceu em silêncio, porém não pela razão que Alethia imaginava. Não era confusão ou raciocínio o que se passava na cabeça do ladrão, era a certeza de que Alethia tinha muito que aprender. – Enquanto ele não me vê, não consigo sentir a verdade que se esconde dentro de sua carne, mas não quero arriscar para descobrir. Por mais bondade que aparente agora, ele também possui defeitos, fraquezas e vícios. É –

–... Humano. – A afirmação dele a calou como um trovão abafando todo o som na terra, forçando a fumaça lavanda recuar. – Humano assim como eu. Somos seres vis e peçonhentos, completamente insignificantes para a sua raça, não é? Por isso me deixou para morrer. Eu te aprisiono.

Os olhos dele queimavam, fuzilavam com toda força a névoa sobrenatural que cintilava frente a sua face. Ele engoliu seco, respirando de forma pesada conforme sentia o corpo inquietar-se. Cada fina veia de seu corpo destilava adrenalina e cólera.

– Isso não é verdade. – Ela não pensava assim e tal acusação lhe deixou lívida de amarga surpresa. Seus tímpanos ardiam, irradiando dor para o centro de seu peito. Em resposta, Raed soltou uma risada de deboche.

– Então, ao invés de nos socorrer, você achou melhor sentar e esperar que fôssemos moídos e humilhados por uma das criaturas mais detestáveis que já conheci; e que por um golpe desesperado conseguíssemos escapar. Parabéns, agora você me impressionou.

– Se algum deles me visse, teriam me tomado. É isso que quer? – Ele balançou a cabeça de forma teatral, indicando que sim. Alethia se contraiu, levando a fumaça para dentro da garrafa, cujo vidro acendeu-se em puro calor. Ficou incandescente por um breve momento e assim que voltou ao normal, Raed viu a fina camada de vidro que o fogo fizera sobre a areia. – Ouvi os corcovanos falarem do levante, certo? Eu senti que era a mais pura verdade vinda daquele homem, Zahir. Soube que ficariam bem afinal. – Ela enrodilhou-se sobre seu próprio corpo dentro do frasco, lembrando-se o quanto fora difícil assistir a tudo calada. – O que mais eu poderia ter feito?

Por mais que o tom dela tivesse notas de aflição e um toque de desculpas, o ladrão não percebera, pois estava consternado. Encarou-a de cima.

– Eu não sei. É uma gênia, me diga você.

Ele pegou a garrafa e a jogou dentro da bolsa de couro escuro novamente, de onde não a retirara desde então.

Parados e derretendo, os dois viajantes aguardavam o Sol escorrer do céu e deixar de brilhar tão furiosamente. Não conversavam, pois não tinham forças e nem assuntos lhe invadiam com força o suficiente na garganta. Meditavam sobre seus destinos incertos silenciosamente, em meio a fome e o sono. Quando começaram a perder a consciência, a visão perdendo-se no horizonte tedioso, uma nuvem espessa cobriu-os com uma fresca sombra.

– Meu amo, peço que acorde. – Ele inspirou o ar de uma só vez, tanto foi seu susto. Arregalou os olhos, mas de início não foi capaz de enxergar a cena com nitidez, pois desacostumara-se com a intensa claridade. À medida que piscava as pálpebras e passava a distinguir melhor os contornos que via, captou uma silhueta púrpura pairando acima deles.

Era Alethia, ainda feita inteira de fumaça e orgulho.

Kadar também despertou no mesmo instante, prendendo a respiração ao ver a criatura misteriosa misturar-se com o vento. A névoa roxa ia e vinha, descontruía-se e voltava à forma original de acordo com as lufadas de ar que sopravam.

– Elevei todo o meu potencial, como venho fazendo há alguns dias desde que partimos para mais esta aventura. – Raed sentiu seu estômago afundar com a declaração, sem saber como reagir às palavras dela e às reações de seu amigo ao lado. – Eu tinha consciência de que minhas forças seriam necessárias em dado momento e agora estou pronta para vos auxiliar. Estou preparada, meu amo.

Ela fez uma reverência formal como jamais fizera.

– Basta me conceder a graça.


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Notas finais do capítulo

Meio paradinho, eu sei XD Desculpa pessoal... é por isso que eu coloquei "Ravel" como nome do deserto; alguém fisgou a referência? Caso não, aqui vai uma breve explicação:
O francês Maurice Ravel, em 1928, escreveu um bolero à pedido de uma dançarina e o próprio auto considerava sua obra - que se tornou sua obra mais famosa - apenas um exercício, um estudo de orquestração. " O Bolero tem um ritmo invariável (escrito para semínima = 72, ou seja, com a duração teórica de catorze minutos e dez segundos), e uma melodia uniforme e repetitiva. Deste modo, a única sensação de mudança é dada pelos efeitos de orquestração e dinâmica, com um crescendo progressivo" Quando você acha que ela vai acabar, ela repete... e repete... indefinidamente XD
Peço correções, caso necessário ^^
Até a próxima!



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