Além das Dunas Brancas escrita por Shalashaska


Capítulo 7
Dúvidas e Escolhas


Notas iniciais do capítulo

Cheguei!!
A primeira coisa que eu tenho de falar é pedir muitas desculpas para a Gabi Lords, pois eu havia prometido atualizar ontem e só vim postar o capítulo hoje. DESCULPAAA. Enfim, para compensá-la, aqui vão 3 980 palavrinhas de bônus HAISHAIS
Dedico a todos vocês que acompanham a minha história, comentando ou não ~~ mesmo que seja muito legal saber o que vocês estão achando.
Boa leitura!



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As vestes distintas e agora maculadas do mestre balançavam ao vento, cujo o sopro espalhava o cheio acre do ódio.

As narinas de Tamir se abriam e fechavam, respirando profundamente daquela atmosfera pesada. Seus olhos cravaram-se no rapaz insolente á sua frente, embora sua mente não estivesse concentrada em apenas matá-lo. Ele pensava com intenso desgosto como fora lerdo para aparar os golpes súbitos de Raed e tremia só de refletir o fato de seus subordinados terem sido mais lerdos ainda em ajudá-lo. Não se permitiu sentir as dores do corpo, especificamente na cabeça e nos braços, só foi capaz de ranger os dentes e prometer-se que destruiria o filho do harém assim que este se afastasse de seus preciosos dromedários.

– Vocês ouviram bem, seus cretinos. – O ladrão gritou, puxando a rédea de outro animal que estava próximo. Dois bons reféns estavam em suas mãos. – Joguem tudo o que é meu perto de mim, no chão. E se eu fosse vocês, não tentaria uma única gracinha. – Vendo a tensão que paralisava a todos e sentindo o rasgo em seu braço, irritou-se. Não tinha tanto tempo para ficar parado. – Vamos, quero tudo agora!

Os homens que o fitavam com espanto apressaram-se num único pulo para juntar a bagunça que haviam feito com os pertences do ladrão, e mostraram-se bem delicados em colocar cada objeto nas sacolas, embora ressentidos também. Tinham gostado do que haviam visto, e alguns encaravam pacotes de chá e comida longamente antes de abandoná-los em seus devidos lugares. Outros ficaram onde estavam, prontos para qualquer movimento brusco de Raed. Quando as últimas bolsas caíram no chão levantando um pouco de areia com um som macio, um lampejo iluminou a cabeça do líder corcovano, que saiu marchando rapidamente para o lado oposto onde todos se aglomeraram.

O ladrão sentiu a espinha estremecer gélida e sabia que isso não fora causado pelo ferimento em seu braço. Até então contava com o acaso e a violência, mas não sabia como agir assim que tivessem entregado tudo. A cada minuto ficava mais fraco para lutar, além de não possuir uma arma decente, ou ao menos não em suas mãos. Sua espada e alguns instrumentos pequenos estavam no meio das outras coisas e ele não saberia dizer em qual das bolsas deveria procurar, sem considerar o tempo que tal ação levaria. Apesar da lâmina contra a garganta de um pobre bicho, era ele que se sentia cada vez mais encurralado.

Esse sentimento só aumentou quando Tamir juntou Kadar pela gola da roupa e o levou arrastado até onde estavam. Encararam-se em puro silêncio.

– Eu tenho algo que você quer e você tem algo que eu quero. – Raed sentiu a compressão de seu diafragma, sentiu todo o esforço dos pulmões contra as costelas para exclamar com o resto de dignidade que ainda lhe restava. Precisava aparentar coragem ou insanidade para convencê-los à obediência.

– Não me faça rir. – Tamir rebateu, levantando o corpo meio inconsciente do seu enteado. Somente agora começava a abrir os olhos e balbuciar alguma frase ininteligível, um bom sinal para quem se mexia tão debilmente momentos atrás. – Alguém ameaçando nossos animais inocentes, o meio de vida de um povo tão trabalhador? O conselho que pode me tirar o título de líder não é assim tão misericordioso para com os outros. Vai me absolver por duas mortes em defesa dos nossos. – Ele riu quando ao perceber que a ratazana ofegava. – Um ladrão e um traidor, o que mais poderíamos esperar de dois bastardos? Bem, saiba que ...

O mestre virou-se com determinação e desembainhou um punhal da cintura de um dos corcovanos ao seu lado, raspando a lâmina no perfeito som da morte, o som que todos responderam com o silêncio. Ele de fato não tinha intenção de deixá-los vivos, nem mesmo antes. Segurou rudemente a cabeça de Kadar e apontou a faca em direção à sua jugular, contemplando direto nos olhos de Raed. Não importava se o ladrão machucasse o seu animal, mesmo que fosse o mais valioso e prometido à um rico senhor, pois começando a cambalear do jeito que estava, não faria algo tão grave. Tamir poderia entregá-lo sem maiores problemas depois de também matar o filho de Neriah.

Raed sentiu o interior de seu corpo afundar como se uma força invisível e poderosa o sugasse por dentro, esvaziando-o por completo, e desabaria caso suas pernas não estivessem tão bem fincadas ao chão igual à duas estacas. Enxergou com verdadeira dor os olhos de Kadar piscarem sonolentos, mostrando aquela “porta aberta e convidativa” fechando-se definitivamente enquanto seus lábios murmuravam o nome de seu quase irmão. Então soube o que era ver o seu amigo ser morto sem poder nem arquejar. Estava longe e frouxo, jamais conseguiria salvá-lo.

–... Não estou aberto a negociações.

O ladrão não gritou, não teve um pingo de capacidade para isso. Seu esôfago revirou-se num complexo nó, evitando que o brado desesperado dele saísse da boca. À sua frente, uma cena intensa e de sangue desenrolou-se como ele jamais esperara ver:

Os corcovanos impediram o seu líder.

Uma sequência de gritos e movimentos rápidos acontecia sem que Raed tivesse tempo para processar. Talvez se tratasse de uma elaborada alucinação de sua mente, querendo tirá-lo da crueldade real a fim de deixá-lo minimante são, ou quem sabe uma ilusão comovente de Alethia. O homem de quem Tamir pegara o punhal puxara o antebraço do último com incrível firmeza, ainda que se ferindo no processo, enquanto outro o imobilizava por trás, agarrando-o. Antes que o debater do corpo de Tamir conseguisse tirá-lo do abraço, um terceiro surgiu para terminar o serviço: seu punho acertou em cheio o osso maçã do rosto de seu mestre, desnorteando-o instantaneamente. Sangue saíra de sua boca azeda.

Kadar também atingiu o solo inerte, mas ileso.

Raed permitiu-se resfolegar abertamente, recuperando afinal o ar que se esvaíra do peito. Não queria perder a postura, porém era tarde demais: seus olhos arregalaram-se e o punhal caiu de sua mão. O homem que salvara o aprendiz caminhou a passos largos em direção ao ladrão, esboçando um sorriso presunçoso nos lábios. Realmente aquilo deveria ser uma surpresa.

– Primeiro acalme-se. – Ele disse, limpando o talho de sua própria mão com um lenço do bolso. Sua voz era serena como se instruísse de maneira amável um iniciante à arte culinária e não acabado de nocautear o mestre de seu povo. – E venha comigo. Não queremos que perca mais sangue, certo?

Raed precisou de alguns minutos para encontrar a própria voz.

– Engraçado ouvir isso de quem me atirou a boleadeira e lutou comigo com uma adaga.

– É... – O outro coçou a barba, mirando o céu. – Um começo bem inesperado e marcante, admito. – O sarcasmo encheu as veias do ladrão, revigorando-lhe com a energia rubra da ira. Desgraçado. - Mas agora temos a chance de consertar o estrago. Venha, antes que eu mude de ideia. – Completou, transformando sua simpatia em ameaça. Funcionou.

Auxiliado por aqueles que lhe feriram de diversas formas, o jovem andou trôpego até onde lhe indicaram, e sentou-se sobre um tecido gasto e próprio para estender na areia. Esperava que logo tirassem sua vida, o que não aconteceu. Ao invés de tratarem-no igual a cinco minutos atrás, os corcovanos trouxeram-lhe água, limparam e estancaram o sangue de todos os seus cortes, passaram unguento em sua pele e enrolaram bandagens onde puderam. Fizeram o mesmo com Kadar, que já sustentava o olhar por mais tempo e por mais que estivesse imensamente agradecido por tudo, também desconfiava do comportamento agradável deles, pois não era racional cuidar de ladrões.
Queimando na mais pura suspeita e vigilância, Raed foi deixado em paz na companhia silenciosa de Kadar por toda a tarde, ligeiramente afastados dos outros. Estavam todos confortáveis e protegidos da luz intensa devido à cobertura dos tecidos erguidos em hastes, e comeram uma parcela das provisões não perecíveis que dispunham. Horas se passaram sem nenhum outro grande acontecimento além de algumas saídas para aliviar a bexiga. Quando o tom vermelho do entardecer tingiu o céu, os homens fizeram uma fogueira para afugentar o frio e aquele sujeito em específico veio conversar com o seu antigo alvo sem cerimônias. Sentou-se ao seu lado e deu um suspiro exausto.

– Meu nome é Zahir. – Agora descansado, o rapaz pôde prestar atenção no rosto dele, que apesar das marcas de pele e o castigo do Sol, não aparentava mais do que quarenta, quarenta e cinco anos. Os cabelos eram curtos em contraste à barba, e em uma de suas sobrancelhas grossas havia uma falha de cicatriz. Poderia ser o pai de Kadar. – Acredito que imaginava que eu e meus companheiros não ajudamos Tamir por mera incompetência.

–Não refleti sobre isso além de achar muito bom na minha situação.

Ele riu, mas Raed não queria simpatia dele. Fora o reflexo vazio de suas pupilas no espelho, também não enxergava nada nos olhos daquela figura, e caso fossem parecidos no interior, o ladrão sabia bem do que era capaz para enganar alguém.

– Você é um garoto habilidoso; é triste não ter nascido em Corcova Azul.

– Não sou garoto e nem mercador de camelos. – Respondeu com a arrogância tirada do seu âmago, provocando e testando o homem com quem trocava estranhas palavras. - Sou ladrão, sempre fui.

– Você é um sobrevivente, pelo o que eu sei. – Passou um cantil de água aromatizada com essência de laranja, refrescante e rara no deserto. Bebeu um gole antes, para demonstrar que não estava envenenada. – E como você mesmo disse, vai sobreviver à tudo isso também.

Com um sibilo nervoso, replicou como uma serpente irritada prestes à pregar os dentes na presa.

– Estou esperando a parte que me conta o porquê salvou nossas vidas e traiu seu líder.

– Você não deveria esperar nada além do dia de amanhã para partir. Tente mostrar um pouco de gratidão. – O homem, porém, era um domador de cobras. Raed o fuzilava, mesmo que o outro não se importasse.

Zahir admirou a resistência e a confiança do jovem, mas não o considerava superior de forma alguma. Queria resolver toda esta situação o quanto antes e então voltar para a cidadela, onde teriam abrigo e comidas decentes; portanto não via sentido em ter de se explicar para o ladrão, por mais talentoso que este fosse.
Porém, caso omitisse detalhes que parecessem importantes ou provocasse a mínima desconfiança, temia que o garoto cometesse alguma loucura maior. Poderia colocá-los em sério risco. Com outro suspiro contrariado, Zahir desejou um gole de álcool.

– Apesar dos lucros e do controle, Tamir é um tirano. O Conselho estava esperando um caso mais sério para intervir, já que o povo o defenderia se fosse algo mais leve. – Ele lembrou como a maioria admirava a firmeza do mestre e louvava a tranquilidade de toda a Corcova Azul, ainda que a atmosfera sufocante reinasse. Secretamente instruídos pelo Conselho, agiam iguais à subordinados quaisquer, impedidos então à rebelar-se contra os maus tratos à Kadar. Era enteado e aprendiz dele, não podiam fazer nada até que fosse urgente. - Hoje tivemos essa oportunidade.

– Vocês não podiam ter aproveitado essa oportunidade antes de nos surrarem?

Zahir deu uma curta e maldosa risada.

– Eu diria para não nos questionar, no entanto devo reconhecer que tudo é muito frustrante para você. – Por fim encarou o rosto de Raed diretamente, sendo franco. – A insanidade de Tamir era perigosa, mas funcionava. Só quando ele quis matar Kadar e enfrentar o conselho pudemos agir.

Ele levantou, achando que saciara o suficiente a sede do ladrão por desculpas. Observava os olhos daquele menino, desejando que pudesse quebrar outras tradições e levá-lo junto com Kadar para sua terra natal, a fim de treiná-los de maneira decente. Os dois possuíam um potencial diferenciado. De costas, o ouviu dizer:

– Vocês corcovanos têm costumes bem estranhos.

O homem virou-se, voltando à conversa do ladrão.

– Guarde seu veneno e nem por um momento chegue a pensar que isso foi bondade ou favor. Foi justiça. – Refletiu brevemente e completou: - Você teve sorte.

Raed absorvia as palavras do sujeito de pé com genuíno desdém; queria acertar-lhe uma rasteira, juntar seu amigo e suas coisas e fugir em um daqueles cavalos que o bando tirara do nada. Se não fosse por estes animais, teriam conseguido fugir mesmo com certo desespero.

– A sorte nunca passou de um jogo de interesses alheios que me são ou não convenientes e, por mais que eu compreenda suas motivações, o resto do grupo parece bem interessado nos meus suprimentos.

A cada minuto que corria, Zahir afeiçoava-se mais àquele menino insolente e ferido.

– Vocês dois nos fizeram gastar o pouco que tínhamos. Não nos planejamos para uma viagem longa no deserto e Tamir insistiu em trocar dois dromedários por cavalos de outra caravana que encontramos. Passamos fome e precisamos de algo para retornar, cuidando de um velho e de um ferido.

– Vai realmente levá-los?

Raed recebeu a figura irritante de um sorriso amável.

– Isso é conversa para outra hora. – Ele deu de ombros, fazendo pouco caso do pergunta ansiosa de Raed, que receava pelo destino do amigo. O que aconteceria com Kadar se voltasse à Corcova Azul? O que Tamir faria se ficasse perto demais dele? A respiração do ladrão ficou rápida e seu corpo doía em cada inspirada de ar frio. – Agora descanse, levantaremos antes do nascer do Sol.

O homem se foi, deixando Raed sozinho com seus próprios pensamentos. Sentado próximo do corpo debilitado de Kadar, o qual voltara a dormir, ele imaginava que Zahir fosse tão bom quanto Tamir e pretendesse largá-lo depenado na areia, para morrer antes mesmo do meio dia. Era provável. Irritou-se com a situação inteira, perguntando-se onde estava a lealdade da gênia que não os ajudara, por mais que seu amo se preocupasse com sua maldita garrafa roxa. Sentira pânico ao vê-la nas mãos do corcovano e agora experimentava a incômoda impressão de vulnerabilidade sem ela. Chamando-a de inútil como uma curiosa canção de ninar, Raed deixou-se levar pelo entorpecimento.

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Tamir gritou e esperneou, ordenando que o soltassem e jogando mil ameaças e maldições aos homens que o seguravam. Nada adiantou e os corcovanos, além de amarrarem as mãos do antigo mestre como fizeram com Raed, também o amordaçaram para não ouvirem mais uma única reclamação do velho.

O dia começou bem.

O ladrão fez o desjejum no tapete que adormecera, comeu alguns grãos e tâmaras, as quais garantiam energia e um sabor a mais na humilde refeição. Não foi assassinado durante a noite, muito pelo contrário: assim que se mostrou desperto, os homens que o ajudaram no dia anterior refizeram seus curativos e trocaram as bandagens sujas. O rapaz se sentiu incomodado com alguém mexendo novamente em suas feridas, porém não reclamou, pois a sensação de frescor era algo de outro mundo. Kadar já estava de pé e mesmo inchado parecia ter mais disposição, visto que conferia a bagagem uma a uma, separando o que era da Corcova e dos ladrões. Raed aproximou-se do amigo trazendo uma lamparina em uma das mãos, curioso e um pouco preocupado. Observava com calma o serviço dele, até que este finalmente notou a luminosidade laranja e virou-se para checar quem era, abrindo uma expressão surpresa e também aliviada. Neste breve movimento, Raed viu o reflexo púrpura de algo em suas mãos.

– Achei essa sua garrafa de estimação. – Ele a entregou, sem esconder seu constrangimento. Queria ser mais firme e perguntar o que havia de tão especial naquele item, porém o momento não lhe pareceu certo. – Um dos homens queria levá-la.

–Ah. – Lhe respondeu com os olhos estreitos e arqueando as sobrancelhas. – Obrigado.

A tensão abraçou os dois, cobrindo-os com a vontade de questionar um ao outro mas privando-lhes da coragem para tal. Havia muitas perguntas no ar, perguntas que os dois inalavam e eram incapazes de transformar em palavras na língua. Miravam um ao outro, enxergando as feridas e marcas roxas. O elo que os unia como irmãos era forte e atemporal, no entanto... A cumplicidade construída na infância desgastara-se pelos anos de distância, levando vidas completamente distintas. Sabiam que a ligação que formaram através de brincadeiras de criança não se sustentava na mesma forma; as travessuras não seriam punidas apenas com sermões.

Viram então que não se reconheciam mais, que eram outras pessoas. Naquele olhar, perguntaram-se podiam confiar um no outro.

– Ei, vocês. – A voz de Zahir ecoou pelo horizonte, quebrando o clima de dúvida entre os dois. O corcovano, o qual comandava o grupo provisoriamente, aproximou-se com firmeza dos dois ladrões, obrigando-os a recuperar a postura de força. – Ótimo, já organizaram suas coisas. Quero que vão até lá atrás, de onde vim, levem tudo o que pegaram. Têm cinco minutos.

Raed e Kadar entreolharam-se quando o homem deu as costas, partindo de onde viera com igual determinação. Dúvidas ainda pairavam acima de suas cabeças, porém num silencioso acordo decidiram que não era hora nem lugar para isso. Sim, eram diferentes agora, mas Raed ainda via a porta aberta no olhar do amigo, a mão estendida; e Kadar também enxergava a visão de sempre: um desafio, uma provocação matreira.O reino afundara, as crianças do palácio viraram homens e os laços de amizade tremulavam em mudança, mas... Estes jamais se partiam.

Quando chegaram ao ponto indicado, viram Tamir montado em um dromedário pequeno, ainda amarrado e amordaçado, por mais que seu corpo estivesse imóvel sobre a cela. Fazia força para respirar, tamanho o seu ódio.
Assim que bateu os olhos no padrasto, uma enxurrada de memórias o assolou em suor frio. Kadar tinha consciência que não deveria ser dominado por estúpidas reações do corpo, porém era inevitável: as cicatrizes em seu braço formigavam em aviso, além dos novos hematomas tingidos na pele. Em busca de apoio o aprendiz procurou o olhar de Raed, mas este exibia um comportamento muito curioso, pois bebia de seu Cantil como se não visse água há dias. Encarava Tamir para então virar o recipiente sobre a boca e quando a garrafa esvaziava, ele então a chacoalhava sobre a mão demonstrando não haver mais um único pingo. Em seguida, despejava mais água na garganta.

Kadar estava machucado e entorpecido, no entanto não o suficiente para alucinar deste modo. A água daquela garrafa não acabava.

Discretamente mirou o restante dos homens para verificar se mais alguém percebera tal estranho acontecimento, embora todos parecessem alheios por completo. Ou quase todos. O rosto de Tamir faiscava, uma vez que compreendera as ações do ladrão. Também ouvira a história da mulher que encantava cantis e pretendia fazer negócios com ela; uma pena que sofrera um grande furto antes disso. A ratazana o roubara, o fizera caminhar pelo deserto e agora o humilhava, ostentando o item que ele tanto cobiçou.
Todos os outros estavam ao lado de seus respectivos animais em um semicírculo e pareciam prontos para a viagem. Após os últimos retoques no equipamento de seu cavalo, Zahir parou na frente de seus subordinados, chamando o foco para si de imediato. Ao contrário do velho líder, o novo não gritava pela atenção ou obediência dos outros, pois apenas com o tom certo de sua austera voz era capaz de comandá-los com maestria, talvez até com certa gentileza. Ele deu um aceno em saudação aos dois rapazes que vinham carregando somente suas sacolas, e afinal começou o seu discurso:

– Esta confusão está prestes a acabar. Pelas tradições, devemos levar Tamir e Kadar de volta para a Corcova Azul para serem julgados, e deixaríamos o nosso ladrão solto depois de nos devolver o que roubou. No entanto, sabem que não faremos assim. – O aprendiz engoliu em seco, desejando que um buraco de areia movediça se abrisse debaixo de seus pés. Ao notar o corpo trêmulo dele, Raed apertou seu ombro, em seguida indicando uma faca escondida no cinto, com um veloz movimento das íris. Era sua maneira discreta de que lutariam para sobreviver. – Estes dois tomaram nossos pertences e nosso tempo, mas ao menos nos deram a chance de tirar Tamir do poder.

Os corcovanos resmungaram contrariados, por mais que concordassem.

– Nos devolveram os dromedários e dividiram os suprimentos, uma troca justa. Vocês estão livres, não iremos persegui-los mais. – Levantou a mão para impedir alguns protestos, virando-se então para o enteado do velho. – Kadar, não faço a mínima ideia do que está planejando, embora isso não seja problema meu. Pode tanto continuar com essa viagem quanto voltar conosco; duas escolhas com seu nível de insanidade. O que você prefere?

Ele sentiu o peito amolecer como se estivesse derretido. Era a primeira vez decidia algo sério da sua vida e isto lhe enchia de desespero e gratidão. Encarou Zahir, cuja a silhueta era emoldurada pelo nascer rubro do Sol, e sentiu que teria um futuro seguro em sua terra natal. Cuidaria dos animais, sairia com as caravanas para as vendas, depois arranjaria uma esposa e formaria uma família. Talvez participasse do Conselho, ou quem sabe, sonhava ele, poderia virar líder igual ao seu avô. Todas eram belas imagens de um destino tranquilo e... Incompleto.
Ao seu lado estava o seu irmão, alguém que descobrira estar vivo há poucos dias, e este o chamara, como sempre, para uma aventura além da imaginação de Kadar. Os olhos de desafio o procuraram mais uma vez; e ele aceitava novamente roubar as romãs do rei. Não sabia o que aconteceria a seguir, se sobreviveriam para contar história ou se morreriam em uma situação fora do normal, mas apesar de todo o formigamento na pele, isso era o que mais queria descobrir. A amizade lhe soou como uma estupidez consciente.

– Vou com Raed. – Ele abraçou forte a bagagem ao peito numa mistura de coragem e arrependimento. Seu corpo doía tanto por dentro quanto por fora, contudo ele pensava até onde chegariam e que fim teria aquele fantástico enredo.

– É, menino, sempre soube que você era meio ruim das ideias. – Zahir murmurou, meneando a cabeça. – Bem, está decidido. Agora, Tamir pode nos causar ainda mais problemas, sabemos disso. Ele apelaria para o emocional do povo, destruiria o Conselho. Não queremos comoção, queremos ordem. Portanto, acho racional tratá-lo com as mesmas condições que nos dava: Exílio. Só você, seu bicho, alguma comida e ah! – Ele abriu um sorriso satisfeito. – E o Sol. Para o seu bem, espero que encontre um vilarejo logo.

Tamir se revirava em cima do animal, gritando através da mordaça. Antes que um dos corcovanos desse um tapa do traseiro do dromedário para mandá-lo correndo para longe, Raed gritou para que esperassem.

– Não somos animais. – O ladrão disse, mostrando uma doçura jamais vista por ninguém em todas as horas juntos. – Já que repartimos tudo, quero que ele leve meu cantil de prata.

Todos desconfiaram daquele comportamento, mas não o impediram de fuçar em suas próprias coisas e pegar o tal cantil, o qual era decorado com simples arabescos de prata. O coração de Kadar descompassara de súbito. Ele havia visto algum tipo de encantamento no artefato que os permitia ter água sempre, por que seu amigo presentearia o homem mais desprezível que conheceram? Raed sorriu ao prender o objeto junto da parca bagagem do velho e rapidamente parafraseou o que Tamir dissera:

– “Não mato,” – murmurou ele. – “Mas posso criar condições para isso, não se preocupe”.

Dito isso, o ladrão se afastou fazendo um ligeiro teatro e o corcovano tinha uma expressão que ninguém conseguiu entender.

– Bom, - O novo mestre pigarreou, temendo pela loucura do rapaz que admirara no dia anterior. – Terminamos por aqui. Abbas, pode esporear o dromedário.

Uma curiosa alegria crescia no corpo de Raed ao ver a poeira que as patas do animal levantavam. Sentia-se morno de felicidade, poderia até derrubar lágrimas de satisfação. Ao seu lado, preso à cintura, outro cantil balançava cheio.

Ele havia trocado a água dos recipientes enquanto Zahir fazia seu discurso.


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Notas finais do capítulo

E então? Foi longo, eu sei.... mas ao menos teve mais ação e um novo personagem, que eu a-d-o-r-e-i, esse cara veio do nada na cabeça. De qualquer modo, peço correções caso algo esteja errado ou confuso demais. Não deixem de me avisar.
É isso, tenham uma excelente semana e até a próxima!



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