Além das Dunas Brancas escrita por Shalashaska


Capítulo 5
Sangue no Deserto


Notas iniciais do capítulo

Olha, demorou menos do que eu esperava ~~ yaaaay~~ e até que fiquei satisfeita com o resultado. Espero que gostem, e que se manifestem um pouquinho pra me fazer feliz.



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– Sabe, primeiro fiquei feliz quando você relembrou algumas cenas da nossa infância e etc, mas agora vejo que só fez isso para eu parar de reclamar.

Ele notou que toda vez que resmungava do calor ou da forma que seu amigo o acordara, um belo pontapé no lombo, Raed era atacado por uma febre de nostalgia, desatando a falar de inúmeras recordações, coisas até mesmo irrelevantes.

– Parabéns. Você percebeu depois de duas horas e meia. – O ladrão rebateu mais à frente, perscrutando o lugar. Não haviam visto um novo oásis ainda, fato alarmante devido à crueldade do sol a pino. Embora com um cantil sempre cheio e uma boa quantidade de comida seca, precisavam de sombras.

Vez ou outra enquanto cavalgavam, ele tocava a garrafa roxa presa à cintura por puro instinto, e então se lembrava de que Alethia era bem criteriosa para quem se revelar, de modo que muito provavelmente não iria dizer uma única palavra ou ajudá-los enquanto Kadar os acompanhasse. Acordou antes do nascer do sol para tentar conversar com ela e esclarecer a situação, para onde iriam e por onde caminhariam, e por mais que não devesse maiores explicações para sua gênia, sentia a obrigação moral de ao menos trocar algumas palavras. Não se falavam há muitas horas, o que lhe causou estranheza, acostumado depois de anos com a presença diária de sua voz. Retirou-a da bolsa escura e sussurrou para despertá-la, porém só o vento da madrugada lhe respondeu.

Antes se sentindo culpado, logo se impacientou. Com o maxilar travado, com receio de que a lealdade dela tivesse se esvaído, Raed fez algo que Alethia o proibira: tentou abrir a tampa da garrafa. A única consequência foi o vidro esquentar e queimar as pontas de seus dedos: uma dor intensa que lhe trouxe alívio.

Ainda está aí.

O ladrão torcia para que a gênia percebesse a gradual aflição de seu amo, e que seu orgulho não a impedisse de auxiliá-lo de alguma forma. Com os ouvidos sensíveis ao menor zumbido, ele só desejava que Kadar parasse de resmungar tanto.

– Na verdade, - Continuou, com um leve toque de arrogância na língua. – pensei nisso quando perguntou o que eu fiz do cavalo velho.

Raed virou-se com um tranco de fazer Amit urrar.

– Kadar. – Afirmou exasperado. – Isso foi há dez minutos.

– De qualquer forma, não interessa! – Ele fez Malah trotar mais rápido, para ficar cara a cara com seu amigo. – Será que não dá pra explicar direito aonde vamos e porque raios não voltamos mais a Noroeste? Não tem mais nada ao Sul.

A atitude do mercador parecia infantil, mas suas indagações eram coerentes e carregadas pela frustração de uma manhã inteira sendo praticamente ignorado. Sentia que seu amigo o subestimava em certos aspectos, e tal fato trazia a imagem de seu patrão com aquele sorriso maldoso nos lábios.
Aceitava ser pisoteado pela Corcova Azul, não tinha escolha. Era filho de uma mulher solteira. Mas por Raed? Encontrá-lo após anos pensando ter visto o amigo morrer pelas mãos do padrasto e agora ser tratado assim?
Aquilo não estava certo, ele não permitiria.

No entanto, não podia estar mais errado. Sua percepção estava nublada por suas próprias emoções e pela mudança que o tempo fizera aos dois. Não era presunção que ele via no rosto de Raed, era uma máscara. Uma máscara ocultando o puro medo.

Com o olhar cansado de tudo no mundo, Raed encarou-o fundo ao dizer:

– Tem algo sim ao Sul.

– O quê? – A cabeça dele inclinou-se para trás, espantado. – Você não está pensando –

– Em Nirav? – O caçador de recompensas riu em escárnio. – Que seremos recebidos de braços abertos? Kadar! Sou insano, mas nem tanto. Jamais cogitaria ir à Nirav.

O ressentimento do aprendiz de mercador cedeu lugar à curiosidade. A sede do Império por qual Crina Curta, Corcova Azul e muitas outras cidades se curvavam em obediência, inclusive a falida Sundara, possuía o decreto final de diversas questões dentro de seu imenso território e era o único ponto de civilização no meio de quilômetros de deserto, além dos oásis e parcas vilas. No entanto, a lenda do palácio paradisíaco permitia a entrada somente dos melhores, e não abrigariam dois miseráveis procurados.

Se não cometeriam a estupidez de ir até lá, o principal ponto entre mares de areia, para onde iriam? Foi o que de novo Kadar indagou, desta vez com calma restaurada ao corpo. Lentamente voltava enxergar o seu irmão, a perceber a aura que tremulava sobre seu corpo.

Raed lutou para contar o que testemunhara.

– De madrugada eu vi luzes. Tochas e um bando de camelos. Poderia ser uma caravana qualquer se... – Ele não acreditava no tamanho de seu azar. – Se não fosse o maldito azul das bandeiras.

Por isso despertou no começo da madrugada, procurou por Alethia, deu o pontapé aflito em Kadar e se irritou até a alma com a barulheira dele. Não conseguia crer que seu amigo estivesse certo e de fato um bando de velhos estivesse perseguindo-os.

“Por causa de dois dromedários, sendo um fêmea, e um traidor e um ladrão, sim. Eles virão até nós.”

Raed irritou-se consigo por estar enganado.

– Você estava certo desde o início. – Admitiu, passando a mão novamente na garrafa. Por um segundo sentiu o olhar de seu amigo questioná-lo, e tentou disfarçar o hábito de maneira forçada. – Eles estão perto, Kadar.

O aprendiz ponderou um pouco sobre a misteriosa garrafa púrpura dele, mas não por muito tempo. A visão do rosto de Tamir o perturbava, trazendo imagens enervantes de ultimatos de um dia atrás. Ele sabia que raramente os discursos de seu patrão eram vazios, e que as ameaças eram promessas.

Os olhos escuros do líder da Corcova Azul possuíam um brilho determinado, uma aura firme que fazia dele respeitado no primeiro momento e temido por suas atitudes quando insatisfeito. Não havia quem o questionasse, até porque suas ações mantiveram o seu povo de pé mesmo nos tempos mais difíceis entre os reinos. Agora criavam cavalos e disputavam com a Crina Curta, um avanço enorme em poucos anos.
Mas estes olhos também eram do mercador ganancioso e amoral, e suas íris ainda refletiam afiadas toda a frieza de seu interior, embora a maioria confundisse esta particular característica com liderança nata.

Confuso e temeroso, Kadar parecia diminuir conforme o fogo crescia em torno de seu padrasto, a raiva dele subindo crepitante aos céus. Deixara bem claro que somente não matara Kadar ali mesmo no pátio por testemunho de outros vendedores, principalmente de alguns que insistiram que o suposto vizir comprasse algo. Outras pessoas viram aquele nobre e interferiram quando Tamir desembainhara sua adaga.

Kadar não era louco nem ladrão.

– Se livre logo desse cavalo e volte em meia hora. – Ordenou rangendo os dentes, encarando de tempos em tempos o animal cansado sem acreditar no tamanho do problema que seu enteado criara. Em resposta, o cavalo só piscava em pura apatia. – Estamos partindo.

O grupo inteiro soltou um engasgo.

– Partindo? Chegamos hoje cedo, nem bem descansamos ou vendemos... – Um deles protestou, recebendo então a expressão mais distorcida que seu líder poderia lhe dar.

– Será que o Sol derreteu essa sua cabeça estúpida? –Já nem se importava com a atenção que os outros mercadores e clientes lhe davam por causa do tom de sua voz, muito menos com os inúmeros cochichos alarmados. – Sabe quanto vale aquele bicho? Acabei de reservá-lo para um dos senhores mais ricos dessa cidade e ele não hesitará um segundo sequer em nos punir se eu não entregá-lo.

Kadar não pode deixar de notar que ele usara o plural quando mencionara a punição, porém o singular quando se tratava de lidar com ricos e outras missões cheias de pompa. Típico.

– Nós vamos atrás do ladrão, ele não pode estar tão longe. – Reafirmou, mirando os portões como se o visse a apenas alguns metros e pudesse queimá-lo com a força do pensamento.

Outro corcovano gritou ao longe, ajeitando suas vestes brancas e azuis enquanto corria com afobação.

– Mestre Tamir! – Sem uma montaria, deslizou mais fácil pela multidão e pôde interrogar algumas pessoas pela cidade, no entanto isso demorou mais que o esperado e consumiu bem a sua energia. Quando afinal se aproximou, foram necessários alguns minutos para que recuperasse o fôlego para então dizer o que descobrira. – Disseram-me que alguém usou a saída Sul, com um dromedário tosado.

Todos prenderam a respiração inclusive o jovem, por mais que ninguém fosse tolo o bastante para reclamar de novo. Era o dromedário. Silenciosamente cada um dos corcovanos rezou para que seu mestre fosse razoável e por fim mudasse de ideia, pois o Portão Sul emoldurava o abrasivo deserto. Poucos ainda usavam aquela rota, tamanho o calor que a cada dia parecia se intensificar.

Dizia-se que o próprio Sol desce à terra para beijar a areia e queimar as pragas que circulam nas dunas.

–Todos peguem suas coisas e vão direto para lá. – Tamir encarou o grupo em plena quietude e repetiu com o peito inflado de raiva pela insubordinação. – Todos peguem suas coisas e vão direto para lá.

O aprendiz de mercador olhou para o céu e desejou derreter logo para não ser obrigado a enfrentar seu patrão e seus parceiros, os quais lhe encaravam com ódio ardente. Não o perdoariam por esse erro patético, já que nem o perdoavam por meramente existir.
Kadar, no entanto, arquitetou rapidamente um plano que envolvia aquelas oito moedas de ouro na bolsa pequena: poderia fugir com o dinheiro e o cavalo ao teoricamente sair de vista para abandonar o animal. Talvez seus colegas morressem nessa viagem insana enquanto ele rumava para um novo vilarejo e começava sua vida do zero; um pensamento feliz que o encheu de satisfação.

O broto verde de esperança no seu peito foi esmagado quando Tamir se virou.

– Esqueça o que disse, leve o cavalo também. Servirá-nos de alimento na viagem. – O arrepio que formou-se em sua espinha e verbalizou uma breve objeção nem conseguiu sair completamente da garganta, pois o padrasto aproximou-se ainda mais, e não de um jeito gentil. – Se eu não encontrar esse maldito e arrebentá-lo, vou fazer você desejar ter morrido junto ao rato do seu amigo em Sundara.

Kadar sorriu. Não precisava que Tamir se esforçasse tanto para desejasse voltar no tempo e morrer durante a Queda do reino. Já pensava nisso demais, principalmente depois que sua mãe se fora.

Quando se afastara da formação do bando para vigiar a retaguarda, por ordens de Tamir, ficou sozinho como de costume, mas ao menos desta vez isso era agradável e possuía algo para se distrair: as moedas. Discretamente as observava em seu brilho dourado, imaginando o que compraria e se talvez conseguiria fugiria após tanto tempo. Foi nessa ocasião que percebera as palavras grafadas e finalmente entendera que toda a situação era um chamado, um chamado de alguém do passado. De alguém que deveria estar morto.

Um fantasma. Uma assombração.

Com consciência do que sua decisão representava e das consequências terríveis que lhe aguardavam, pela primeira vez Kadar teve real coragem. Não disse uma única palavra do rastro que notou, e esperava que as lendas fossem verdadeiras ao murmurar: “Que o Sol desça e queima as pragas que circulam nas dunas.”

Olhou pela última vez o grupo que o atormentava e trotou em direção ao destino incerto, mas ao destino que escolhera.

Agora, lembrava-se das ameaças e das armas que seus parceiros corcovanos carregavam: adagas, boleadeiras, facas de arremesso. Instrumentos para usar contra ladrões.

Instrumentos que seriam usados contra ele e Raed.

E se isso não bastasse, Kadar tinha certeza de que seu patrão estaria mais alucinado do que já vira, pois fora roubado e traído pelo aprendiz mais tolo, uma humilhação sem tamanho.

– Mais um motivo para ir à Noroeste. – Tentava raciocinar rápido. – Há uma vila que podemos-

Raed estava encarando atentamente os olhos do amigo, que parecia ter um oceano de amargas memórias que justificavam seu visível desespero. Refletiu sobre isso até que por fim sentiu sua cintura ferver numa dor que jamais vira. Não reprimiu um grunhido alto e não respondeu as perguntas preocupadas de Kadar. Algo estava errado. Perscrutou suas pupilas de falcão no cenário inteiro com angústia, torcendo para que sua queimadura não passasse de uma brincadeira sádica de Alethia.

– Não Kadar, - desviou-se das tentativas do outro jovem ajudá-lo. – Agora corremos.

Ao longe, sete homens os observavam trajados em azul e branco. Três deles possuíam cavalos.

Os dromedários eram perfeitos para longas viagens no deserto, porém lentos, ainda mais cansados como estavam após uma caminhada de ao menos três horas, já os inimigos estavam em maior número e em montarias mais rápidas. Em outras palavras era uma fuga perdida, embora isso não tenha impedido Raed de esporear com força Amit e gritar para que Kadar escapasse.

Eles os alcançaram logo.

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Se surraram Kadar a ponto de deixá-lo inconsciente e cheio de hematomas roxos e amarelos por toda a pele, com Raed o tratamento fora ainda pior: os corcovanos valeram-se lâminas para enfrentá-lo, e por mais que fosse ágil como um gato e pudesse aparar a maioria dos golpes, não demorou para que fosse vencido pelo número de oponentes. Cortes sangravam pingo a pingo, seu orgulho estava terrivelmente ferido. Os tornozelos doíam por causa da boleadeira que lhe lançaram quando tentou correr por alguns metros para pensar em alguma saída, e agora jazia ajoelhado na areia com os punhos amarrados nas costas.

E o Sol não demonstrava compaixão.

Cansado e entorpecido, foi capaz de levantar o queixo encostado no peito algumas vezes para checar o estado de seu amigo no outro lado, e felizmente seu coração aquietou-se ao perceber que ele estava bem, dentro do possível. Só remexia se um pouco, um sinal de vida desajeitado e reconfortante. Numa destas ocasiões, viu bando bisbilhotar os seus pertences, retirando objetos que lhe parecessem atraentes e espalhando-os no chão com descuido notável. Um deles ficou particularmente interessado em uma antiga garrafa púrpura, a qual de certo valeria alguns trocados no mercado devido aos belos arabescos.

Respirar era difícil, porém o ladrão foi capaz de soltar um suspiro agonizante.

Alethia. Kadar. Não foi assim que planejara as coisas.

– Então a ratazana vive, hein? – Tamir veio ter com ele, contente por vê-lo ajoelhado aos seus pés. Jamais esperava encontrá-lo de novo, mas como tal fato veio a acontecer em circunstâncias extraordinárias, foi bom que o rapaz estivesse em seu devido lugar: no chão. Como quem conversa com uma criança travessa, o líder da Corcova Azul agachou-se e levantou o rosto do ladrão, apreciando sua face ferida e a cicatriz em sua testa. – Sobreviveu à pedra, à Falência de Sundara, à Purmânia e a mais onze anos neste mundo. – Estava de fato impressionado. Não dava mais três minutos de vida àquela criança franzina, mas lá estava ele, forte e ainda com ares de importante. – Você é realmente um demônio.

Raed deu um sorriso maliciosamente doce.

– Minha mãe não se deitaria com uma criatura como você.

Tamir retirou um punhal decorado de uma faixa na cintura e brincou com a peça na frente do nariz de sua vítima recente, gargalhando por causa do insulto.

– Mantém o espírito. Bom, bom... Melhor que meu enteado, que se deixa abalar com alguns pequenos – A lâmina abriu um novo corte na bochecha de Raed, tão veloz que ele só teve tempo de arregalar os olhos. – machucados. Mas verdade seja dita, sua mãe era do harém e foi usada por homens muito piores do que eu, acredite.

As veias do ladrão subitamente tornaram-se iguais ao vidro da gênia, entrando em ebulição mais rápido do que poderia-se imaginar. A despeito disso, sentiu a pele gelar e optou por continuar a exibir expressões ora impassíveis, ora divertidas. A corda que o prendia pareceu mais apertada quando Tamir inclinou-se para mais perto e pôs-se a sussurrar:

– Sempre me deram trabalho. – Ele bufou, limpando o sangue de Raed na faca em sua bata. – Eu deveria ter acabado com vocês naquele dia, e ter me certificado bem disso. Neriah estava desesperada o suficiente para ainda se casar comigo mesmo que seu filho morresse, e talvez me desse o maldito herdeiro que nunca veio, por mais que eu tentasse. – Com a boca cheia de veneno, ele completou: - Vocês só trazem desgraças a este mundo.

O ladrão perdeu o ânimo de brincar com seu velho inimigo. Sua cabeça pendeu outra vez para baixo e ele observou o gotejar de sangue na areia por um longo e tedioso tempo. Tentava pensar em algo que o tirasse dali, mas tudo era muito arriscado. Tinha de pensar na gênia e em Kadar. Então, ao ver que Tamir não saía de sua frente, ele começou a raciocinar.

Ah.

Você não vai nos matar hoje. – O mestre ouviu o ladrão dizer, cabisbaixo. Ficou divido entre estapeá-lo pela insolência e ouvir o resto. – Se quisesse, e você quer, já estaríamos degolados. Mas a questão é... – Ele levantou o queixo numa postura relaxada e soberba, como se o destino de todos estivesse na palma de suas mãos. – Você não pode. Seus homens aceitam torturas e todo o tipo de crueldade, menos a morte. Seria retirado da liderança e sentenciado ao exílio.

Essa era a razão de Neriah não ter sido executada pelo desgosto do pai. Essa era a razão por qual Kadar ainda estava vivo.

– Ardiloso feito uma serpente, pena que não fará diferença. – Chacoalhou os ombros, embora visivelmente afetado pelo discurso de Raed. –Não mato, mas posso criar condições para isso, não se preocupe. Nós os deixaremos aqui sem nada. Sem um pingo d’água.

Os animais estavam a poucos metros à sua direita, enquanto os homens se divertiam com a bagagem a uma distância boa atrás de Tamir. Alguns, o rapaz podia ver, observavam de longe o diálogo.

Raed e Tamir sorriram por motivos bem diferentes.

O ladrão juntou todas as forças que tinha, todo sentimento que encontrava em seu corpo debilitado, fosse ódio, ressentimento ou amor, e concentrou-se no único movimento de impulsionar-se para frente. Depois disso, só os astros poderiam dizer como a cena se desenrolaria e ele não tinha certeza de mais nada.

A testa de Raed chocou-se com um baque ruidoso contra a cabeça de velho, fazendo-o gritar e cair na areia, por fim largando aquele símbolo de esperança que o trapaceiro tanto cobiçara: a faca. Juntou-a mais rápido que pôde com as mãos atrás das costas, e apressou-se em cortar as amarras de modo tosco enquanto punha os pés com força sobre a garganta de Tamir. Ele tinha por volta dos cinquenta anos, mas estava bem conservado e era forte, lutou com avidez contra as pernas do rapaz.

Achando incrível a sorte de os outros homens do bando não virem ajudar, e logo em seguida recriminando-se por pensar nisso num momento tão desesperador, ele conseguiu cortar a corda, ainda que tivesse aberto um rasgo na própria pele. Levantou-se de maneira débil e correu da cena de luta, dando passadas atrapalhadas na areia até chegar aos dromedários.

“Amit!” Gritou mentalmente, torcendo para que os animais não se assustassem com a figura desfigurada e cambaleante que se aproximava. Ficou feliz pelos bichos não terem esse tipo de preconceito. Avistou a pelagem bege e tosada em ricos padrões de tapete e rumou para lá, enquanto ouvia gritos dos homens que afinal perceberam a situação.

“Otários.”

Chegou onde queria e acariciou o pelo de Amit brevemente antes de encostar a faca em seu pescoço dourado, fato que o animal pareceu não se importar. Já os corcovanos pararam horrorizados na mesma hora, inclusive Tamir, que o encarava pulsando raiva, com as vestes amassadas e sujas de sangue.

– Sobrevivi tudo àquilo e vou sobreviver à isto também. – Raed gritou com um tom maníaco. – Talvez eu realmente seja um demônio.


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Notas finais do capítulo

Gostaram? Sugestões? Correções? Repetições de palavras? É só comentar, galera. Caso algo não esteja fazendo muito sentido, me dá um toque porque é falta de atenção ~~ to com soninho ~~ Enfim, agradeço à quem está acompanhando



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