Além das Dunas Brancas escrita por Shalashaska


Capítulo 20
Paraíso


Notas iniciais do capítulo

Olá!
Espero que todos estejam bem nesse fim de ano e que possam descansar bastante. Minha rotina ficará corrida até a semana que vem, depois disso sossego um pouco e ponho essa história pra andar mais depressa. Há muito que mostrar à vocês *0*
Agradeço a todos que acompanham!

Boa leitura.



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Antes não havia nada, então houve. Antes Dele, não havia ninguém...

Mas Ele não estava sozinho.

A Graça. A Virtude. O início e o fim. O Silêncio.

Em meios às Trevas Ele contemplava Sua solidão. No centro do vazio, Ele tornou-se ciente de Sua existência e, em puro silêncio, cores desataram a germinar”

Escritas com o mais preto nanquim e a mais virtuosa das mãos, tais palavras davam sequência a uma maresia furta-cor, desarrolhando em tonalidades claras de lilás, azul, laranja, rosa... Uma delicada cascata com gotas de luz e espuma de névoas vindas da sombra. Espirais serpenteavam por toda a página, terminando em pontas incandescentes de estrelas, e o seu olhar acompanhava o ritmo fluido daquela dança muda.

“Véus da Vida, flores celestiais; tempestades de risos e nebulosas fantasias. Seu amor traduziu-se em mil e um tons das sete cores, em uma infinidade de fragrâncias e sabores. A Teia do Tempo e Espaço desabrochou nas ondas da Escuridão.”

– Senhor? – O guarda chamou mais uma vez, agora mirando com mais atenção o rosto do sujeito. Ele mexia os lábios brevemente enquanto seus olhos iam e vinham de um lado para o outro sobre o livro; assemelhava-se a uma criança ao ler e, aliás, tratava-se mesmo de um livro infantil. Não era certo. Como alguém com vestes finas até mesmo para os padrões niravos não era bem alfabetizado nesta idade? – Senhor, - repetiu. - Eu preciso checar o seu R.A.

– Ah, sim. Meu Rastro na Areia, digo... A minha identificação. – Respondeu num engasgo, apressado ao vasculhar sua bolsa ao lado de seu quadril. Levando mais tempo do que o necessário, e muito mais do que a paciência da dupla de oficiais permitia, o passageiro entregou o cartão com três cores, em três dunas: dourado, azul ciano e cinza. Era um simples civil, confuso e estranho.

Kadar Ha’ik” . – Uma voz feminina, impessoal e fria ressoou do leitor de dados do oficial, o qual felizmente não notou o arregalar dos olhos do rapaz. – “Nascido em 01/10/0908, Nirav – Capital. Aprendiz em alfaiataria e tintura. Último acesso há uma hora e meia, embarque no Setor de Desenvolvimento, Ala Oeste.”

O guarda passou os dedos pelo bigode negro, chacoalhando levemente o equipamento de mão. O que um moleque estaria fazendo na Ala Oeste, destinada à pesquisa? Talvez o maldito sistema do Cartório estivesse com problemas novamente, registrando Ala Oeste ao invés de Leste. Já havia acontecido uma vez, e claramente o jovem alfaiate tomou tratamento no Centro de Cura Humana, para qualquer mal da cabeça que deveria ter. Ele murmurou alguns xingamentos baixo, em seguida dando o leitor de R.As para o colega.

– Desculpe a inconveniência, senhor. – Inclinou a cabeça num sinal positivo e logo estendeu o cartão de identidade para seu dono em um gesto deveras desinteressado. – Tenha uma boa tarde.

Kadar engoliu em seco e agradeceu o mais rápido que pôde, a fim de evitar que mais palavras saíssem trôpegas de sua língua. Apresentara avanços com os fonoaudiólogos, até porque seu sotaque corcovano não era pesado, e também tivera lá a sua instrução formal vinda direto de Sundara. Vez ou outra a visita de sua mãe à corte coincidia com as aulas de Inaya, rígida Inaya... Mas, de qualquer forma, estava nervoso.

Para todos, o estranho do quarto 214 estava morto. Não resistira, embora tivesse acordado algumas vezes, como uma garota da recepção fez questão de protestar. Ela, com mãos trêmulas e ar infantil; ela, cujo nome ninguém lembrava-se ao certo, foi então realocada para um lugar qualquer, onde não mais incomodaria Ghazal e nem traria mais café amargo demais.

Então, o aprendiz de mercador não poderia ser somente isto: órfão e oficialmente em óbito.

Kadar Brachium, nascido de uma estrela. Todo aquele que não tem pai, é logo filho de uma estrela da constelação vigente no céu; e o rapaz fora acolhido pela luz de Brachium, um dos pontos brilhantes da Balança à noite. Era assim com muitos em todas as terras niravas, todos os bastardos eram adotados pela escura abóbada celeste.

Agora era Kadar Ha’ik, alfaiate e genuinamente niravo. Seus pais, Neriah e Farhan prosperaram com os negócios de tapetes e vestuário, porém Neriah havia morrido por uma doença incurável e Farhan falecera logo em seguida por tristeza da morte da esposa. Uma historieta trágica que pôde ser facilmente forjada em documentos e que não despertaria maiores perguntas de quem mais ouvisse. Nascera de novo, e aprendia mais uma vez como falar, andar, se portar e agora voltava a ler, algo que não fazia com frequência há anos e andava destreinado. “Só falta quererem me ensinar a usar o banheiro...” Pensou com certa ironia, para então lembrar-se desgostoso que realmente as latrinas eram bem diferentes daquelas que conhecia, mesmo no palácio de sua infância. Havia tantos frascos e garrafas para se usar na hora do banho que Alethia sentiria inveja.

Aliás, onde estariam a gênio e seu mestre a uma altura dessas?

Alguém o chamou ao longe, e por reflexo o rapaz estagnou-se no mesmo lugar, petrificado. O guarda. O guarda descobriu. Seus olhos perscrutaram o local em busca de uma saída, sentindo falta da orientação de Raed para encontrar escapatórias e esconderijos; e nesse seu desespero concentrado, Kadar viu o aceno de um estranho.

– Aqui! – A pessoa esticou a mão ainda mais para o alto e movimentou-a mais rápido. – Desça logo desse terminal, seu tolo! Temos pressa!

Karim ria, chamando a atenção do rapazote perdido em meio à multidão. Ghazal discordara quando organizaram a viagem, pois iriam separados devido à especificação do R.A, que separava vagões entre Civis e outras repartições públicas, como as dos dois doutores. Pela demora, Karim até começara a mudar de ideia, no entanto não fora necessária nenhuma intervenção: ele vinha andando a passos rápidos, segurando sua bolsa e seu livro como quem segura a própria dignidade. Em resposta, a doutora somente cruzou os braços e revirou os olhos à distância.

– E então, como foi a sua primeira volta de trem? – O homem abriu mais um de seus calorosos sorrisos, indo de encontro com o rapaz para lhe apertar um dos ombros. Sua roupa cinza tinha o corte reto e bem ajustado ao corpo, de uma maneira formal que contrastava com seus ombros relaxados. Não usava mais o jaleco longo e também cinzento sobre os ombros, decorado com brocados cianos. – Viu o restante dos trilhos pela janela? Hm, se bem que não sei se dá pra notar bem a curvatura do caminho, é grande demais. Deve ter visto mais os campos. Bom, depois podemos tirar à tarde para darmos uma volta...

– Senhor Rouhani, não viemos a passeio. – Ghazal aproximou-se dos dois, apertando a própria carne dos braços. Parecia também fazer uma força descomunal para usar sua polida educação. – Bahadur nos quer em sua base em menos de uma hora, e bem sabe como ele é com horários. – Ela desviou seu olhar para Kadar, impassível. – Nem deveríamos o ter trazido assim, ele está há apenas duas semanas saindo aos poucos do quarto. É desumano obrigá-lo a se adaptar em uma viagem entre a Dobra.

A testa de Karim franziu-se assim como seu tom torceu-se em ironia.

– Senhorita Yazid, meu bem... Você já deixou isto bem claro na última uma hora e meia. Agora se quer nos fazer um favor, ande na frente. Não lembro bem o caminho principal até a Sede da Alvorada.

A mulher estreitou bem as suas pálpebras desenhadas por kajal azul marinho e manteve-se calada, em seguida endireitando-se entre o aglomerado de cidadãos que transitavam entre as divisões de Nirav para cumprir suas rotinas ou em puro entretenimento.

Depois de praticar sua caminhada pela a Ala Oeste e conseguir, na medida do possível, aceitar a ideia de que estava na Capital Paradisíaca, Kadar começou a ser instruído aos poucos. Junto ás sessões com os fonoaudiólogos gêmeos, também aprendia certas regras de etiquetas e fatos básicos sobre a vida nirava:

Primeiro, Nirav não começa e nem termina. A cidade é um círculo, rodeada pelo largo anel d’água que Kadar antes pensara ser o mar, ou como muitos o chamam, o Não-Mar. Trata-se de Lazúli, algo construído pelo homem e com a imponência da criação divina.
Segundo, é organizada em sua parte térrea. A Luz de Nirav fica ao centro, numa torre mais alta do que todos os demais edifícios; o qual ele pôde ver durante todo o percurso através da janela. Sim, vira mais as plantações e fazendas ricas como Karim suspeitara, e lá ao fundo o palácio da Realeza, também anelar, em volta da dita torre. A linha do trem servia justamente como divisória entre o ambiente rural e o urbano, e perpassa a um nível acima e circular pelas divisões remanescentes, conhecida como Dobra: a Alvorada e a Ascensão, que por mais que tenham tais nomes e abriguem os setores correspondentes, são povoados em sua maioria por civis.
Terceiro, aquilo era outro mundo. Era a visão distorcida de um paraíso próximo e...

Humano.

– É, Ghazal não é muito o que sugere o nome... – Desacostumado a ter o gosto de palavras azedas na boca, o doutor fez uma careta e voltou-se ao rapaz, cujos olhos castanhos pareciam perdidos no horizonte. Alternava seu foco entre as pessoas e o lugar em si, até que percebeu que Karim lhe dirigia a palavra. – Sabe, ghazal é...

– Eu sei o que é. – Respondeu com um suspiro, farto de todos julgarem que não sabia de nada, por mais que em Nirav, de fato, não soubesse muito. Mas também não era um completo analfabeto e não podia levar a culpa por desconhecer o que nem sabia o que existia... Por exemplo, edifícios altos e de vidro, muitas vezes ondulados feito uma sequência de dunas imensas; trens e luzes automáticas. – É uma forma de poemas de amor. O que eu não sei, é o porquê mal me deixaram sair direito do meu quarto, para então me colocarem para andar sozinho numa serpente oca de metal. A doutora tem razão, é desumano.

Karim fez menção de dizer algo, mas ao fim desistiu. Estavam logo saindo do amplo saguão iluminado pela abóboda de vidro. Havia bilheterias vendendo passagens para cada um dos quatro pontos existentes na cidade, e também lojas de vitrines cristalinas e recheadas de produtos coloridos. Kadar viu crianças correndo, brincando como qualquer criança daquela idade faria em qualquer lugar, no entanto lhe era estranho ver todas tão bem vestidas. Uma melodia tocava ao fundo, baixa e feita para quase não ser ouvida, porém o ex-comerciante não pôde ver de onde vinha. Não havia músicos por perto. Depois desceram as escadarias, que abriam caminho para uma extensa praça.
Realmente Ghazal ia à frente, com o queixo erguido e seus cabelos negros balançando na altura dos ombros. Seus sapatos de salto baixo faziam barulho, e aquele som ritmado então serviu para acalmar o rapaz. Ela distanciou-se mais, indo até um grupo de homens uniformizados em bege e de bigodes já brancos, de modo que estes pararam de conversar entre si para atendê-la. Um deles meneou a cabeça em concordância, e indicou algum lugar à esquerda com o braço.

– Nosso transporte chega em dez minutos, dentro do esperado. – Resumiu, ao voltar para os dois. – São aproximadamente mais vinte minutos até a Alvorada, e até irmos até a sala de Bahadur, mais uns quinze minutos ou menos, caso ele nos queira na área de treinamento. Estamos adiantados.

Karim recebeu as notícias com indiferença, Kadar com apatia. Assim que decidira traçar seu destino, fora então quase morto por Tamir e agora era adestrado por um par de niravos metódicos e evidentemente com uma curiosa rixa entre si. Tudo ali tinha movimento ordenado, todos pareciam vestir roupas da nobreza. O vento soprou forte, trazendo o aroma fresco das palmeiras da praça e outras plantas verdes que jamais vira.

Será que deveria ter procurado a morte junto à Raed?

– Vamos até um dos bancos. – O mais velho dos três indicou o outro lado da rua estreita, querendo sentar num agradável assento de pedra guardado pela sombra das árvores. Sentia-se fatigado pelo humor da doutora e o nervosismo do paciente, embora ambos tivessem suas respectivas razões para seus sentimentos. Apenas desejava que aquela tarde fosse breve. – Também quero comprar algo gelado para beber, talvez daquela barraca. Alguém quer?

A moça murmurou algo indescritível, mas que indiscutivelmente era uma resposta negativa. Já Kadar deu de ombros, pronto para aceitar qualquer coisa que pudesse tirá-lo daquele torpor mental. Era muito que processar. Enquanto o doutor ia-se naquele seu modo despreocupado, o rapaz apertou mais as bordas do livro infantil.

“O Primordial e Três Irmãos de Nirav - Para Crianças”

Apreciava as figuras da capa e saboreava a ironia de sua vida quando enfim notou que a mulher também encarava o livro. Ela sorriu de maneira melancólica, para em seguida cruzar as pernas e ajeitar suas madeixas sedosas.

– O que foi? – Franziu a testa e buscou as íris escuras dela, fato que Ghazal ardia para ele parasse. Desviou seus olhos para o nada, como se entediada com o dia.

– Você realmente está começando pelo... – Ela soltou um pequeno riso. – Começando pelo começo. Toda criança aprende primeiro o mito da criação, e estes livros têm feito sucesso. Essa edição é de Karim, não é?

– Sim. – Odiava a comparação implícita com uma criança, mas a frase não parecia tão ardilosa a despeito de quem falava. Era mais uma simples constatação feita por uma médica, por mais que ao fundo houvesse certo humor... E também algo que não soube decifrar. Mito? Ouvira a história mil e uma vezes, tanto que para ele e o resto povo aquilo era a Verdade. Eram os velhos costumes, a tradição. Seria mais um modo de falar niravo? – Ele me emprestou alguns livros, e... E bem, confesso que eu optei por pegar o mais simples. E também o mais bonito.

– Só não estrague; Karim tem uma queda pela artista. É por isso que comprou a versão de luxo, com capa dura e tudo, e foi à noite de autógrafos. – Kadar não pôde deixar de notar que o outro riso que saiu de sua garganta fora... Maldoso? – Pobre mulher, deve ter se assustado. Estava tão nervoso que ela mal entendeu o seu nome, mesmo que tenha pedido para repeti-lo uma dúzia de vezes. Veja a primeira página.

Kadar abriu o livro na parte que ignorara, vendo então os nomes dos colaboradores da publicação e a dedicatória:

“Para Darik Uhani,
com muito carinho e gratidão. Espero que sua empolgação contagie os outros ao seu redor.”

Também riu, imaginando a situação.

– Ela até foi bem educada. Mas, - Ele passou a língua nos lábios, com sede e fisgado por súbito interesse. - Por que você também estava lá?

– Boa pergunta. – Ela estralou o pescoço, relaxando os ombros. – Talvez no fundo eu seja masoquista por aguentar tamanhas palhaçadas de Karim; Ou outro autor que eu gosto chegaria à convenção no horário seguinte, não me lembro. Foi o Abbas? É, eu não me lembro mesmo.

Uma noite de autógrafos para autores... Seria semelhante a um bazar, só que as especiarias expostas eram livros? Ele fechou os olhos, visualizando as obras assinadas por grandes mestres e volumes grossos, adornados com tinta dourada e capas tão bem elaboradas quanto os mais finos tapetes.

Então lembrou que nada era como esperava, e que a Cidade Paradisíaca mais parecia um tormento do que qualquer outra coisa.

– Escute... Por que eu estou aqui? Não poderiam ter me deixado no 214, quieto? – Ele não entendeu a razão de seu repentino engasgo na voz. A doutora não era muitos anos mais velha do que ele, mas eram décadas mais sábia. Mais amarga. E tais fatos o faziam crer que haveria também mais compreensão de sua parte. Ghazal, por sua vez, virou seu rosto lentamente ao rapaz, também intrigada com seu tom. - Digo... Eu não gosto de ter que apresentar um cartão pra validar quem eu sou. Tudo aqui é tão... Grande.

Os dedos dela, com unhas curtas e bem cuidadas, foram de encontro com a própria testa, como se ela desejasse assim desanuviar os problemas de sua cabeça. Massageou as próprias têmporas, caçando as palavras certas. Karim ainda estava longe, aguardando em uma fila.

– Céus, eu preciso mesmo de uma longa tragada num narguilé. – Ela suspirou. – O caso é que você deveria estar morto e transformado em cinzas há semanas, mas não. Você sobreviveu á ferimentos e águas frias, o que raramente alguém faz sem carregar alguma sequela grave. Se fosse apenas isto, provavelmente a Tríade o despacharia embora, no entanto... Não é assim tão simples.

Algo no interior de Kadar se revirou. Por mais que estivessem nervosos com a aparição daquele terceiro elemento, Bahadur, os dois já haviam tentado explicar anteriormente a situação. O rapaz não entendera nada.

– Kadar, eu quero que ouça isso com o máximo de compreensão que pode. Se você entrar em pânico, sou plenamente capaz de administrar tranquilizantes que trouxe em minha bolsa.

– Isso não ajuda.

– Não? – Ela riu. – O senhor Rouhani tenta pôr panos quentes em cada mínimo atrito, mas isso não contribui em nada. Veja, por mim você estaria sedado até chegarmos, ou então Bahadur que viesse à Ala Oeste. – Ele sentiu a própria boca secar, piscou várias vezes como se pudesse acordar daquele pesadelo. Lembrou-se da dúzia de mãos segurando seu corpo na maca, enquanto lhe inseriam agulhas no braço para forçá-lo à inconsciência. Afastou-se um pouco dela no banco, mas as íris escuras da doutora finalmente pousavam sobre si. – Karim achou que sedá-lo seria uma violação; Bahadur é irracional quando impaciente. O resultado é o seu estresse desnecessário e a interrupção das minhas medições no Centro. Bom, cá estamos. O cavalo encontrado na borda contigo é justamente o cavalo de batalhas de Bahadur, o comandante de toda a Alvorada.

Ao fundo, quase na esquina, Karim era o próximo a ser atendido. Jogava seu peso de um lado para o outro nos quadris, apoiando-se ora em uma perna, ora em outra. Que sabor pegaria? Havia tantos... Olhou por detrás dos ombros e viu que Ghazal e o rapaz conversavam. Talvez estivesse se entendendo, talvez ele fosse mais parecido com a doutora. Decidiu demorar um pouco mais na escolha entre a água de laranjeira ou de rosas, o que o vendedor ficou feliz em dar amostras para degustação, pois assim celebraria a antiga tradição de barganhas há tanto esquecida entre preços tabelados da cidade.

Kadar ardia para que ele voltasse logo.

– E aquele cavalo... – Inclinou-se mais para frente, tampando a visão que o paciente tinha de Karim. – Foi perdido há mais de vinte anos, na Conquista das Ilhas Nereida.

Seu corpo soltou uma gargalhada assim como animais tem respostas fisiológicas para ameaças, fato que liberou certo alívio em sua corrente sanguínea, mas que também foi rapidamente percebido por ela.

– Há mais de vinte anos? Como um cavalo sobreviveria mais de vinte anos com tal juventude? Para falar a verdade, Safir só tem me dado problemas desde que eu o troquei por um camelo.

A Agulha. O feitiço da gênio.

Suor escorreu da lateral de seu rosto.

– Eu não sei, ninguém mais sabe. – As suas feições impassíveis agora refletiam um brilho astuto. – O animal tem a marca da Alvorada abaixo do tórax; e quantos cavalos Kitalpha você conhece? – A pausa foi preenchida pelo som dos pássaros e da vida urbana da imensa cidade. - Nenhum, pois não existe essa raça fora de Nirav. Estão em extinção. E quem o trocaria por um camelo?

– Eu... – Desejou sumir. Desejou empurrá-la e correr, correr e atravessar o Lazúli à nado. Se podia vir, podia voltar. – Eu não entendo. Sim, eu sobrevivi. Safir pelo jeito tomou água da Fonte da Juventude. – Respondeu em deboche. - Que mais tem nisso? Por que não é simples?

A Alvorada, a Ascensão e a Nobreza. A Tríade de Nirav, a qual regia toda a cidade e por consequência, todo o Império.

– Bahadur o interrogará; farão testes contigo. – A voz dela era calma e baixa, nem hesitava ao assistir a reação em cadeia de terror no paciente: Sudorese, pupilas dilatadas, mãos trêmulas. Provavelmente sentia fortes palpitações no peito. – Cada cidadão aqui tem sua função, e apesar de seu potencial latente, veio sob condições suspeitas. Quem você é de verdade? – Ghazal deu de ombros. – A Alta Cúpula votará se é livre ou não. Quando disse que era preferível estar morto, eu não estava sendo maldosa. Seria mais fácil, mais misericordioso.

Kadar levantou-se com um pulo, permitindo o livro cair de seu colo e os olhos atônitos e fixos na doutora. Suas costas trombaram em alguém, e nessa fração de segundo uma substância fria ensopou sua roupa.

Cubos de gelo esparramaram-se ao chão.

– Ei, ei. – O doutor amparou o movimento súbito dele, embora os copos em suas mãos tivessem deixado escapar um pouco das bebidas em cima de Kadar. Ele deveria mesmo estar sedento e nervoso devido à viagem, tal era o suor e a palidez em seu rosto. Talvez Ghazal estivesse certa na ideia de sedá-lo. – Aqui, tente se acalmar um pouco. Eu sei o quanto pode ser assustadora, mas ela não morde. Ou se morder, já tomou vacina da raiva.

Ninguém sorriu. Vendo que seu paciente não sossegava e que a doutora exibia aquela sua maldita expressão dissimulada, seu coração descompassou. A temperatura de seu corpo igualou-se às águas aromatizadas que trouxe.

– Ghazal. – O tom dele foi duro. – O que você disse a ele?

Ela se levantou, pegando o livro caído ao chão.

– O que ele precisava ouvir: A verdade. – Entregou o objeto à Kadar olhando bem em seus olhos, e andou mais alguns passos à frente, onde uma carruagem larga e sinuosa feito dunas estacionara. O par de dromedários dourados balançava a cabeça e ambos inquietavam-se com a parada brusca. – Vamos, temos vinte minutos do trajeto. Não queremos nos atrasar.


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Notas finais do capítulo

Comentários,sugestões e correções são bem-vindas :D



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