Além das Dunas Brancas escrita por Shalashaska


Capítulo 15
Além


Notas iniciais do capítulo

Gente, demorei pra caramba. Nem vou tentar me explicar de novo porque os motivos são os mesmos, mas de qualquer forma peço perdão.

Não ficou do jeito que eu queria, pois quis deixá-lo mais longo e completo, porém se fosse pra ser assim, a demora seria maior ainda.
Quero agradecer a todos que acompanham e mando um beijão todo especial para a Auri, Gabi Lords, Amanda Abreu, Julia Rabelo e Livs; vocês são uns amores. AHHH, e sabiam que recebi minha primeira recomendação?? Gente, foi lindo demais. Até chorei :')



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Naquele curioso entardecer de outro mundo, não foi difícil para que o manto estrelado da noite também trouxesse o véu escuro dos sonhos. Após acalmar-se do assombro que a gênia pregara-lhe e também tranquilizar seu o coração por saber que não estava sozinho na jornada, o sono chegou lentamente às pálpebras de Raed e de Alethia. Ambos dormiram sem preocuparem-se com o conforto, sentiram que o piso duro e frio era o mais aconchegante colchão e a brisa um cobertor macio. A febre e a letargia da travessia das Dunas colocaram-no para dormir, por mais que o rapaz lutasse para permanecer alerta e cuidar para que nenhum ser estranho viesse perturbar-lhes. Gradualmente notou que isso era improvável.

O lugar era abandonado até mesmo pelas almas mais errantes.

Entre sons e imagens forjadas pela sua mente, entre memórias e ilusões, o ladrão adormeceu encarando a luz da pequena chama.

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Com o aroma fresco e diferente da atmosfera, o peitoral de Raed inflou repleto da mistura sinestésica de notas herbais e amadeiradas; cheiros somente acentuados pelo Sol dourado e o orvalho da manhã sobre as plantas. Com as narinas dilatadas pelo esforço físico e certa empolgação nas veias, o ladrão inspirou fundo cada sutil fragrância daquele novo mundo, dando mais alguns passos abaixo pelos degraus de pedras úmidas e ancestrais.

A escadaria à céu aberto não era tão íngreme, mas o declive era nítido: o jovem e a gênio caminhavam há vários minutos por ali, cercados pelo verde intenso da grama e gotículas de suor cobrindo-lhes a testa. Raed não demonstrara mais um indício sequer de cansaço ou traços da febre da noite anterior, enquanto a criatura encapuzada parava de tempos em tempos para recuperar o fôlego. Quando ele acordara com a fraca luz alva do Sol, retomou sua consciência depressa e não demorou a levantar o corpo ou pensar em suas prioridades no momento, dentre elas comida e utensílios. Já dispunham da lamparina, uma pequena fonte de iluminação e calor, porém precisavam de muito mais do que isso.
Esfregou os olhos com os nós dos dedos, afirmando mentalmente de que também necessitavam de álcool.

– Vamos logo! – O ladrão exclamou, com a respiração entrecortada devido ao impulso que dera no ritmo dos pés e também por causa dos breves risos que não suprimia nos lábios rachados. Seu par de botas gastas e sujas, que felizmente não foram levadas pelo vento na travessia, pisaram firmes três degraus abaixo em apenas uma passada.

Ao perceber que não obteve resposta, olhou para trás por cima dos ombros.

Distraído com suas próprias constatações, soltou apenas um murmúrio qualquer sem sentido algum, num resmungo impaciente. Ela também não respondeu e os dois desfrutaram de mais um momento de silêncio de falas, preenchido pelo farfalhar do vento nas árvores ligeiramente afastadas e o gotejar incessante dos restos d’água da chuva.

– Não consigo. – Por fim a voz de Alethia saiu límpida do capuz, contrastando com as sombras sujas dos trapos que lhe adornavam o corpo, o qual o ladrão reparava agora na clareza do dia que não era tão pequeno quanto imaginara. Só era pouco mais baixa do que ele de pé e ereta.

“Por que não?” O trapaceiro franziu o cenho e ficou a observar a figura, desfrutando da longíqua canção das aves até compreender o sentido de suas palavras.

– Alethia?

Um líquido vermelho e denso saía de um dos seus pés, maculando sua pele e a gramínea pura no chão. O jovem pulou os degraus e agachou-se sobre um dos joelhos para ver o quão grave era o ferimento da gênia. Ela não gritara nem reclamara quando ele pediu para que caminhassem até outro bloco perdido de pedra sobre o campo inclinado, onde a moça se sentou enquanto Raed examinava o corte.

Não era fundo, ainda bem, porém precisava de cuidados: desinfetar, tratar e enfaixar. O rapaz maltrapilho bufou, pois além de poder fazer apenas a última etapa, vira que a lesão não era nova como de imediato e a pele envolta já estava vermelha, podendo infeccionar caso não tratada logo.

De fato, agora precisavam de álcool.

Ainda segurando o seu pé esquerdo e de pálida tez roxa, ele borbulhou em raiva. Encarou-a de baixo, querendo enxergar bem os olhos dela que ainda não vira, para que a mulher notasse em sua expressão furiosa o quanto fora tola; mas não havia nada mais do que escuridão.

– Está doendo... - Ele abriu um sorriso irônico sem achar graça alguma, frente a afirmação infantil da criatura milenar. Como não estaria? Tal frase lhe ardeu os ouvidos por ser tão estúpida. – Mas não era para doer. – O manto escuro chacoalhou brevemente, num soluço incontido. – Não era pra isso acontecer... Eu não sou humana!

Raed não conseguiu lançar os dardos da acusação, não com aquelas declarações. Rasgou um pedaço da túnica que vestia, o tecido mais limpo que possuía ali, e delicadamente cobriu em diversas voltas o pé dela. Ajudou-a levantar-se do assento rochoso e reduziu o ritmo da caminhada para um suave passeio pelo Além, afinal, não havia mais pressa.

Conduzindo-a pela escadaria com das mãos em suas costas, de onde apontavam omoplatas frágeis como asas de um filhote de ave, ele deteve-se ao suspirar:

– É... – Ponderou, aguardando que a gênio esticasse seu outro pé para alcançar a pedra no nível abaixo enquanto olhava o horizonte. – Precisamos de sapatos novos também.

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Havia linhas e linhas serpenteando toda a superfície lilás de sua pele feito pétala e ela encarava tais marcas de intenso roxo na sua palma aberta para cima, absorvendo a luz do Sol da manhã. Lembrou-se de certas mulheres que liam o destino dos outros mortais por aqueles veios nas mãos; lembrou-se das jovens do deserto com luas brancas no lugar dos olhos e mil e um encantos nos lábios. O que diriam elas sobre sua mão?
Alethia desejou ver a si mesma naquelas curvas e ramificações púrpuras, porém não enxergou nada... E aquilo fora uma resposta mais do que suficiente.

A gênio virou as palmas para baixo e deixou um longo suspiro escapar-lhe pelas narinas; fato que muito lhe surpreendeu, uma vez que não esperava expressar-se tão espontaneamente igual à uma humana. Engoliu em seco, e ao perceber que o capuz descia sobre a cabeça, o puxou depressa, ocultando sua face da luz. Estava sentada em outro rochedo, em outro pedaço de ruínas enquanto seu amo vasculhava o imenso local em busca de seus suprimentos perdidos.
Fechou as pálpebras, sentindo os cílios superiores tocarem delicados contra os inferiores, e tentou dissolver sua concentração no ar para que não se perdesse na mistura de sensações do corpo. Logo sua testa se franziu e um arquejo quase escapou-lhe da garganta, pois o sangue circulando em cada minúscula veia não a permitia meditar. Aquele líquido denso e rubro era quente por debaixo de sua derme; corria feito louco e era bombeado por aquele músculo tão estimado pelos mortais, o coração. Batia constantemente, num compasso calmo e repetido que reverberava pelo peito da gênio. Ela o ouvia. Ela o sentia.

E somente este pequeno e insignificante fato foi capaz de disparar afoito o seu coração, martelando-lhe no peito mais e mais golpes que jamais cogitara sentir.

“Outra coisa.” Ela raciocinou entre o som perturbador e incessante do pulsar orgânico, apertando a barra rôta do manto: “Tenho de pensar em outra coisa.”
Alethia pousou a mão sobre o busto e ficou a ponderar sobre a solidez de sua ansiedade. Qual era o problema de sua nova forma? Por qual maldita razão não conseguiu retornar à sua leveza intangível? E como haveria de se acostumar com as sensações aguçadas, misturadas e confusas?

Uma dor a rapinou de suas amargas dúvidas, obrigando-a a encarar as pernas suspensas na pedra, quase tocando a grama cor de jade com as pontas dos dedos. Inclinou-se para sorver a visão de sua carne pincelada por finos arranhões e também seu pé direito enfaixado, sangrando mais uma vez. A atadura era improvisada, já queria desenrolar-se por completo do tornozelo, mas não foi aquilo que lhe ferveu a pele, nem mesmo o puro fato de ter se ferido.
Era respeitada como gênio. Temida. Entretanto, agora como mortal, como mulher, sabia que não seria tratada do mesmo modo, tanto é que Raed bem se assombrara quando Alethia afirmou que o carregara escadaria acima, até a estranha construção onde passaram a noite. Mas aquilo não fora nada. Ela não estava fadada aos limites humanos, à fraqueza e ao tempo. Ela não era uma mortal; não completamente.

Não ainda.

Seu rosto abrigado da luz, entrecortado por densas sombras e certa melancolia, ficou a observar os próprios pés, imóvel no resto do corpo. Se alguém pudesse ver seus olhos, se alguém vislumbrasse as chamas por detrás de suas íris, este alguém enxergaria lembranças em brasa e fagulhas de fúria. Já havia se transformado muitos anos antes... Fora doloroso, ela recordava-se, mas não desta maneira. Engoliu em seco e notou o quanto as memórias lhe pareciam mais vívidas no novo corpo.

Como? Como humanos podiam sobreviver assim, enclausurados nesta carne limitada aos seus sonhos mundanos e martírio auto-infligido? Ela se sentiu a gravidade lhe puxar mais intensamente para baixo, num peso descomunal.

“Não...” Murmurou mentalmente, injetada pelo pânico de ouvir seu coração acelerar mais uma vez. “Não, não, não, não;

Não!”

O tecido enrolado em seu pé caiu por inteiro ao chão, pois não havia mais matéria que o segurasse a bandagem; e a carne das pernas da gênio se desfez por alguns segundos, sobrando apenas o espectro púrpura de seu contorno. Veio o alivio para sua súplica silenciosa: Fora por pouco tempo, mas ela voltara às brumas roxas que tanto adorava ser; incorpórea e distante.
Em seguida seus pés reconstituíram-se lentamente, começando das pontas das unhas e subindo primeiro aos tornozelos; depois aos joelhos. A derme lilás formigou conforme aparecia, trazendo a visão nada agradável de ossos e veias surgindo e serpenteando, então músculos e por fim a pele. Os lábios dela repuxaram-se num sorriso instintivo.

Seus ferimentos já não estavam mais lá.

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Havia um rapaz em frente à larga e alta construção; um mísero ponto desgastado encarando a imponência da pedra esculpida. Este jovem era Raed, que inclinava seu pescoço para tentar enxergar a ponta do pináculo, há muitos metros acima de sua cabeça. Estreitou os olhos, tanto pela luz quanto pela distância, e viu a silhueta negra e pontiaguda ferir os céus, quase fazendo-o sangrar gotas rubras de chuva.

Seus olhos então voltaram a figura de Alethia, longe de seu alcance. Mesmo quando imaterial e dentro de sua garrafa improvisada, ela sempre fora uma âncora para sua tendência de se deixar levar na correnteza, nas marés tempestuosas de seus vícios. Ainda assim, estavam ali. Estavam naquele lugar sem nome, no Além, em busca de ferozes quimeras.
Um bafejo escapou de si misturando-se com o clima. Nada era como antes para a gênio e seu amo; e Raed sabia que deveria prosseguir sem se prender à lugar algum para, ironicamente, voltar ao único ponto de sua vida que sempre o acorrentara: o passado. Hesitante, ele cortou as cordas que sentia em seu corpo e retirou seus olhos sobre a gênia.

No final, nada mais importaria. Talvez nem fossem se conhecer.

Circundou os breves degraus do lugar sem ousar subi-los ainda, encarando a grama e as trepadeiras que se alastravam pelos contrafortes adornados do templo, por onde pequeninas flores alvas desabrochavam como nuvens brotando em pleno solo. Os ramos esmeraldas faziam espirais pelas paredes; desenhos que levaram sua consciência há quilômetros e quilômetros de através das Dunas. Eram as mesmas flores que Kadar notara nas Ruínas, as mesmas que carregara consigo para poder atravessar o portal que Alethia abrira, sabe-se lá para qual destino.
Ele sacudiu a cabeça de leve tentando afastar as visões do passado, pois já vira mais do que suficiente durante a travessia. Esperava apenas que seu irmão estivesse bem, melhorando da tortura que fora acompanhá-lo por Ravel inteira para depois chegar ao seu limite, tanto no sentido literal quanto no conotativo. Mas, se tudo desse certo ao fim da jornada, então Kadar não teria sofrido um terço do que sofrera ao longo destes onze anos sob os cuidados de Tamir, na Corcova Azul. Se tudo desse certo, Raed não teria de ser salvo por aquele rapaz na Queda e ele não teria se ferido, e nem sua irmã fugido para além da pólvora purmânia. Se tudo desse certo ao término de seu plano, todos ficariam muito melhor do que estão hoje.

Por um curto momento, ele sentiu a mesma coisa que sentia quando mais novo, ao admirar a grandeza de Sundara em relação a sua insignificância.

O ladrão suspirou e voltou seus olhos ao chão, buscando a pouca bagagem que trouxera, uma vez que compartilhara seus pertences com os corcovanos e com Kadar. Se Alethia conseguira resgatar seu manto, o qual foi rapinado pelo vento na viagem, por quê não haveria de ter a mínima sorte de encontrar mais algo seu? Tinha certa esperança de encontrar ao menos algum tecido, algo que aliviasse melhor o frio da noite. Também seria bom encontrar suas facas, ou somente a bolsa.
Após o discorrer de vários minutos procurando em vão, Raed queria qualquer coisa, até mesmo o pacote de grãos babados por Safir.

“Cavalo estúpido.” Pensou, já andando duro pela gramínea. “Dunas malditas. Vida desgraçada.”

Ele rodou e rodou a construção sentindo sua pele formigar e os pelos de sua nuca eriçarem-se num arrepio agourento, mas a verdade é que cada vez mais se impacientava por dividir-se emoções conflitantes; ondas de entusiasmo e pessimismo o atacavam simultaneamente. Havia um desejo insano dentro de si para adentrar aquela templo, mas também havia o receio. Seu braço esquerdo parecia mais pesado, o ferimento de sua fuga de Tamir latejava, e a tatuagem de brasa parecia arder como nova na palma de sua mão, atraída pelo outro pedestal no centro do círculo de pedra.

Sim, ele quis ir até ali na tentativa de recuperar algum pertence seu, mas esta não era a única razão que o motivara descer toda a escadaria de pedra. Havia algo mais... Algo que também não compreendia, mas que exercia uma força magnética intensa o bastante para que Raed não questionasse.

Sua garganta subiu e desceu num engolir vazio e nervoso, enquanto seus pés fizeram-no se aproximar do litoral de areia branca. Ele observou o vasto mar de dunas e mais dunas albinas, com o vento deformando a crista das ondas e embaralhando o pó de memórias que ali soprava. Na travessia, Raed sentiu cada centímetro de seu corpo ser fragmentado e agora, banhado pelas lembranças de Kadar, suas palavras então pareceram proféticas:

– Tudo o que nós somos... – O ladrão repetiu, fechando as pálpebras. - É pó ao vento. Tudo muda e não deixamos marcas.

Havia calmaria no ar, pois o vento trazia em suas lufadas a sinfonia das folhas, as quais também coloriam o cenário atrás de si como um mosaico amarelo e alaranjado. Raed estava no meio do deságue de três rios, três mares: Do ar, da areia e de seu destino.

Com a respiração vacilante, saiu do pedaço do vívido gramado para adentrar no começo da areia macia. O som de seus passos contra a aridez do chão se assemelhava com o mastigar de algo, e ele imaginou que a terra bem tentava devorá-lo. Contornou o templo e por fim chegou até seu começo:

O Arco-Quebrado.

A construção por inteiro remetia às Ruínas antes das Dunas, entretanto era melhor trabalhada, como se quem tivesse feito o projeto houvesse gasto seu tempo mais com esta versão do que com a outra, edificada ás pressas. Assim como fizera na ida, ele perscrutou o local com atenção, sorvendo da riqueza de detalhes da arquitetura ancestral. Encarou as camadas da moldura do arco de mármore, entalhes grossos e profundos, e então perguntou-se como algo aquilo ainda se mantinha em pé quando certamente atravessara os anos e sofrera as mais diversas intempéries do clima.
O templo pareceu encará-lo de volta como uma entidade viva, irradiando uma aura estranha dos cogulhos pontiagudos, das cúspides e dos entalhes verticais. Parecia questioná-lo de volta. O ladrão logo decidiu subir os curiosos sete degraus que o separavam da sequência de arcos ogivais, sustentando junto aos botaréis aquele teto fechado e aberto ao mesmo tempo.

A visão da abóbada em leque, dos suntuosos tramos vindos das paredes internas dos arcos, simplesmente roubaram o ar do caçador de recompensas de uma só vez. A luz entrava delicada pelas aberturas do teto, tocando os frisos de folhas de acanto e flores das mais variadas espécies como se fossem plantas de verdade a serem regadas pela torrente do Sol, e tais desenhos esculpidos de fato pareciam exalar uma agradável fragrância herbal.
As botas de Raed ecoaram contra a sequência de anéis no chão, sem poeira ou cascalhos das outras Ruínas, mas isto não lhe soou certo; o couro gasto e meio enlameado pela caminhada maculava o piso sagrado em que percorria, embora soubesse que não havia nada demais nisso. Repetiu a si mesmo que não importavam as divindades, pois continuava a existir como um amontoado de pedras para louvar deuses que os esqueceram.

Quanto mais adentrou o templo, mais sentiu seus pés pesarem e sua consciência também: era um belo amontoado de pedras.

No meio da circunferência havia outro pedestal, felizmente desacompanhado de altares e rastros de rituais malsucedidas. Era um pouco mais alto, mais alvo e com a superfície polida para bem representar a pureza que se desejava transmitir, e acima dele havia o pingente central da abóboda, também entalhado e com pontos cintilantes de onde apontavam minúsculas pedras incrustados. Sua mão esquerda formigou, ardeu e se incendiou com um facho incandescente azul, igual a brilho em forma de águia que o norteara durante parte da marcha entre as Dunas.

Não gritou desta vez, nem mesmo quando o uivo do ar rasgou o ambiente e mais um tornado nasceu, traçando uma densa muralha de vento prateado. Ele soube que deveria arrastar-se até o centro e pousar sua mão no pedestal, assim como fizera na primeira vez. Segurando o próprio braço, no qual queimavam a carne e veias, dirigiu-se trôpego até lá para então sua mão ser puxada num tranco magnético até a pedra.
Fez-se outro clarão, uma estrela viva e pulsante surgiu da fina ponta do pingente e brilhou seu fulgor cerúleo até cegar o jovem.

Alethia vira o céus escurecerem-se, sua luz amena e tranquila ser de súbito sugada pela alva construção de falso agouro. Ela gostaria de ter sido mais rápida, mas há centenas de anos não corria com pernas feitas de carne e nem estava acostumada com o terreno gramíneo e liso pelo orvalho. Desequilibrou-se e tropeçou um punhado de vezes antes de poder chegar até a barreira de prata que a separava de seu amo: um furacão violento e rasgado por relâmpagos.
O coração parecia querer subir seu esôfago e escapar-lhe da boca, mas a despeito de seus joelhos bambos e ferimentos das quedas, a gênio sentiu as mãos solidificarem-se além da maciez frágil humana. Seus dedos tomaram forma de garras pontiagudas e compostas pela mais dura pedra púrpura, a qual reluzia também elétrica frente aos raios que lhe ameaçavam.

Uma. Duas. Três.

Uma dúzia de vezes suas unhas afiadas arranharam o muro de vento, e ela rosnava e gania como uma besta. Seu amo estava lá dentro gritando sem ter consciência disto, enquanto Alethia também agonizava ao permitir seu instinto transformá-la naquela criatura brutal.

Foi a primeira vez que a ela sentiu lágrimas brotarem dos seus incandescentes olhos.

Seus braços cansaram-se, mas sua insistência foi vencida pelo poder da construção antes que a gênio fosse subjugada pela própria fraqueza. As paredes infestadas de pueris entalhes brilharam novamente, para então a corrente de ar quebrar com igual impacto de grilhões de ferro. A muralha rugiu ao se desfazer, levando o corpo exaurido de Alethia ir de encontro com o chão há muitos metros dali.

Haviam vozes naquela cegueira branca, vozes indistintas que sussurravam uma canção melodiosa em um dialeto estranho, e mais estranho ainda foi Raed entender o que elas disseram, ou ao menos os significantes e não os significados. Não ouviu nada a não ser o coro, não enxergou nada sem ser a alva ilusão.

“Eu me pareço com um falcão doente
Preso à terra por causa de sua doença.
Não pertenço mais às pessoas da terra
Nem sou capaz de voar para o céu.

Oh, pobre falcão
Como você pode viver com estes corvos?
Você foi hipócrita
Fechando seus olhos para o amor
Enquanto o fogo brilhava em seu coração
Como você pode esconder o amor quando as lágrimas
Fluem de seu coração como cachoeiras?

Eu sou um rio
Você é o meu Sol
Você é o remédio
Do meu coração ferido
Eu voo ao seu lado, na calmaria.
Eu sou a agulha


Você, o meu magneto”


O ritmo bucólico e misterioso da música prosseguiu por muitas e muitas rimas à despeito de sua tradução à língua mãe de Raed, e ele permaneceu no ondular aconchegante das Vozes até que a cegueira lhe fosse substituída pelas cores do mundo e a canção esvanecesse gradualmente igual a afastar-se do som do mar.
Quando afinal despertou, caído ao lado do pedestal e encarando a cruzaria impressionante do teto, sentiu algo diferente no braço:

A tatuagem em brasa dera a volta na sua mão, saindo da palma e contornando seu dedo polegar. Na palma, o risco da cicatriz desenhava apenas um raio único e encurvado, mas juntando esta forma com os novos traços de agora, a figura resultante era um...

Falcão.


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Notas finais do capítulo

E então? Há explicações, calma ~~ só que mais pra frente.
Por favor, me avisem se há erros ou falta de coerência. Sugestões também são legais, abram seus corações.

Desculpe se também existem erros nas notas inicias e finais - Vou sair agora e tô escrevendo tudo rapidão.

Ahhh, e a música no final é um poema de um poeta persa, Jalal ad-Din Muhammad Rumi. Este poema é longo, e há certas partes dele que pretendo colocar até mesmo como diálogo.

BEIJOS!



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