Além das Dunas Brancas escrita por Shalashaska


Capítulo 14
Despertar


Notas iniciais do capítulo

Minhas lindas *0* Que saudades de vocês, minhas musas!
Foram os exatos (!!!) vinte dias mais loucos do ano pra mim: consegui pagar o cursinho, fico por volta de 14h fora de casa - contando estudos+trabalho+trânsito - fiquei doente, fui no SUS ontem e tirei um belo atestado de 3 dias, o qual aproveitei para escrever!!
Há muitas coisas que planejei, há outras que simplesmente vieram (alguém disse "Farah"?), e ainda por cima o final é meio "cortado" porque não queria me estender muito nesta parte, e sim dosar mais descrições no próximo capítulo.
Novamente, quero dizer que não vou abandonar a fic. Não consigo nem imaginar ficar sem escrever, é sério. Tenho muitos focos já planejados, porém que escrevê-los com muito cuidado e dedicação, coisa que leva tempo... e tempo, infelizmente, é algo que não possuo muito nessa minha fase da vida. Talvez eu demore, mas eu volto.
Enfim, tirando tudo isso, espero que gostem! As coisas estão esquentando, e os novos cenários e personagens estão prestes a chegar *0* estou muitíssimo animada!

Quero agradecer todos que ainda acompanham minha humilde história e deixo um convite àqueles que ainda não se manifestaram. Para as leitoras que sempre comentam mando um beijo todo especial, embalado em carinho e gratidão, pois meus dias ficam muito mais alegres com suas palavras.

Preparadas? Então vamos lá....



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A pequena loja abarrotada de estranhos produtos e escondida no bazar, ignorada por muitos e visitada apenas pelos necessitados, hoje atraía os olhares das pessoas que estavam somente de passagem na rua. O feitiço era invisível e impalpável, encantando apenas os ouvidos, porém logo mexia com todos os sensos do corpo e fisgava pontos do coração. Junto ao aroma de incenso, saía um aéreo cântico pelas janelas abertas, uma bela voz escorrendo através do barulho mundano do mercado.

Não era uma língua conhecida e seu ritmo trazia paz, faiscando curiosidade no povo, nas crianças que brincavam e nos velhos que tanto resmungavam. Eles vinham descobrir que ave do paraíso gorjeava, se uma das distantes sereias havia criado pernas ou que outra criatura murmurava aquela suave canção de ninar, baixa e doce. A maioria apenas contemplava pela porta escancarada, mirando a figura feminina trabalhando em seus afazeres particulares; outros chegaram a entrar para então depararem-se com um sorriso caloroso de uma garota, um sorriso ardente demais.

Um sorriso abrasivo.

Após estes breves contratempos, onde ela só precisava mostrar o brilho de seus caninos e as estrelas em seus olhos escuros, a menina voltava sua atenção as suas tarefas diárias. Já havia limpado o ambiente e finalmente organizado aquela absurda disposição dos objetos, que eram rigorosamente ordenados pela mestra Aziz. A velha repousava no cômodo atrás das cortinas de miçangas cor de âmbar, deixando a loja e os clientes sob os cuidados da moça.

Farah cantarolava no balcão, sendo iluminada delicadamente pelo Sol. Não incomodara-se com ardor da luz na pele, na verdade nem o sentira. Seu coração era pura leveza e sua mente também vagueava pela felicidade de ver as novas encomendas encaixadas nos lugares que desejava. Inspirou o ar infestado com o aroma do incenso de arruda e com o perfume das flores que comprara para alegrar o ambiente, geralmente escuro e empoeirado, tirando as noites de magia que acarretava a necessidade de limpeza total. Ela sorriu outra vez para o nada.

Naquela manhã, assim como todas as manhãs do sétimo dia do mês, encomendas chegaram à loja, trazidos pelos viajantes e até mesmo clientes que resgatavam tesouros em troca de algum produto ou serviço da loja, fato até comum. Recebera com gosto os novos livros e os colocara em seus devidos lugares, na organização inovadora que tanto se empenhara em fazer por vontade própria. Havia títulos excelentes, certas raridades e novos catálogos de ervas e cristais, métodos modernos para curas e maldições. De tempos em tempos, Farah lançava seus olhos sobre a prateleira e abria os dentes no formato de uma conhecida lua minguante, mal acreditando no que aprenderia nas próximas horas vagas.

Apesar de Zahir não ter voltado ainda, ele não demoraria a chegar. Dentro de alguns dias, aí sim a vida de Farah ficaria interessante.

A aprendiz pegou cerimoniosa a última peça dos cristais que recebera e que já mergulhara num vidro com água e sal grosso por um dia e uma noite inteira. Secou-o com um tecido escuro, e então soprou a fumaça bruxuleante do incenso sobre a pedra três vezes, para certificar-se de que estava puro e pronto para ser energizado para quaisquer fins. Com uma última olhadela cheia de carinho e certo orgulho, ela o pôs junto aos outros em uma mesa exposta ao público no meio da loja, decorada com uma fina toalha violeta. Aziz a reprenderia, isso era certo, mas ela ouvira os cristais e sabia que eles preferiam o ar livre à escuridão dos caixotes cheios de pó. Livrara-se também das joias baratas e outros objetos que não lhe fariam falta, afinal, aquela era uma loja mística e não uma simples tenda no bazar a céu aberto.

Novas ervas, cristais, livros e instrumentos; ela sempre amara o sétimo dia do mês.

De repente, seu sorriso presunçoso murchou e suas pálpebras desceram levemente, trazendo uma aura sombria a seu rosto pleno e alegre há tão pouco. Ela tateou o rosto, sentindo as marcações que a pedra estilhaçada deixara na pele e então seu coração obscureceu como um súbito eclipse solar. Engoliu em seco e voltou para o balcão, com as mãos trêmulas ao alcançar o pacote de ervas pontiagudas e o almofariz. Jogou as diminutas folhas dentro do recipiente e começou a amassá-las, tentando se distrair.

A loja estava clara e convidativa, mas Farah já não cantava mais.

Triturando a planta, a neófita também remoía lembranças tão secas e pontiagudas quanto a erva que serviria de chá. Ela viu cinzas e areia, sangue e corpos; ouviu gritos e reviveu o terror. Ela lembrou-se de sua vida antes de ser resgatada por Adail.

Nirav podia ser dona de todo o deserto de Ravel e comandar reinos além dele, como a grande e depois falida Sundara e outros pequenos palácios desimportantes; no entanto sua tradição e cultura não era únicas em seu vasto território. A aridez do solo era um espaço deveras fértil para tantas outras lendas e costumes, e nem todas as diferentes tribos e clãs dispunham da mesma opinião quanto algumas criaturas e fatos, dentre elas as raras sibilas.
Eram mulheres comuns, crianças que cresciam com uma inocência admirável e sensibilidade, até que começavam a murmurar frases sobre um futuro acontecimento mundano e sussurram profecias em seu sono. Eram únicas. Eram poderosas. E eram também disputadas a unhas e dentes pelos líderes dos diversos bandos do deserto.

A menina tivera o azar de nascer numa família pobre, embora amável, afastada de grandes cidades. Ela tinha três irmãos mais velhos, um pai e uma mãe que a adoravam, e em resumo uma vida calma até a seca ser mais cruel no vilarejo e seus poderes se manifestarem. O mais novo dos irmãos, com onze anos a mais do que a caçula, disfarçava os olhos brancos e luminosos que ás vezes tomavam o lugar das íris escuras da irmã; desconversava suas falas estranhas rindo e caçoando como se não passassem de baboseiras infantis, a confortava quando tinha pesadelos fortes e os chamava de visões. Ele sabia o que aconteceria com ela caso o líder soubesse, sabia que seria usada como arma em jogos de poder e sangue, sabia que seu destino não seria puro quanto o coração da pequena Farah.

Karim fazia aniversário no sétimo dia do mês que estavam.

A aprendiz bateu com mais força do almofariz, mas o impacto também se deu na estrutura da loja. As paredes estremeceram junto ao soluço mal contido em seu peito, abalando os livros ordenados e outros produtos enquanto ela via a imagem de seu irmão na fuga arquitetada por ele.

Ela seria vendida para acalmar a fome a miséria que se abatera na vila; sua existência renderia um pagamento quinzenal para alimentar as bocas que fofocaram sobre a filha mais nova do casebre mais pobre. Com apenas nove anos, Farah não tinha um pingo de controle sobre suas habilidades, no entanto insistiu para que Karim não a levasse no dia combinado, que a levasse ao menos alguns dias antes ou depois. Ele afirmou que não faria mal se perdessem a comemoração de seu aniversário de vinte anos, empacotou pouca comida e mudas de roupa e por fim lhe disse que nada de mal aconteceria dali a três dias.

Farah ainda ouvia as palavras dele de sua resposta ao seu questionar sobre desistir da família: “Eles fizeram sua escolha e nós fizemos a nossa; cada um terá de lidar com as devidas consequências.”

Fugiram, atravessaram quilômetros e quilômetros por dias sem olhar para trás. Chegaram a Sundara a tempo de enfrentarem a Grande Queda.

A aprendiz sorveu de todos os detalhes que vinham a mente por estas lembranças, os cheiros e sons, as batidas arritmadas de seu coração. Naquele dia, naquele grande dia, seu irmão avistara outra criança, esta caída ao chão e com um ferimento grave na cabeça. Era um menino pouco mais velho do que Farah, talvez três ou cinco anos, e Karim não pôde deixá-lo ali. Levou-o até um abrigo onde escondera-se com sua irmã, onde tomou conta dos dois com todo o carinho e desespero que seus vinte anos podiam lhe dar.

Eles ainda estavam ali quando os purmânios chegaram, furtando para sobreviver e cuidando uns dos outros. Karim fora abatido no massacre e o menino não se recuperara totalmente; os três sofreram para encontrar um novo refúgio junto a todos os sundarianos que conseguiram escapar, estes sem mais o seu orgulho. Lá, entre os corpos moribundos e feridas que tentava curar, menina tomou consciência do que era e qual perigo atraía.

Entre a cura e o veneno, a diferença está na dose e Farah compreendeu para qual lado pendia.

Correu de seu irmão e do menino; correu dos sundarianos que tentaram impedi-la; correu da pólvora e flechas que quase a alcançaram, para então perceber que jamais conseguiria correr de si mesma. Novamente no deserto, uma estranha mulher trajada com mantos de puro breu a resgatou.

Sempre pensara que aquele fora o seu despertar, o dia que vira o mundo sem os olhos de criança ou o véu da fantasia; quando finalmente vira que o bem e a gentileza eram sufocados por garras sombrias. Mas ela estava errada.

Durante os dez anos que se passaram, Farah buscava cada minucioso conhecimento que a mestra poderia lhe dar entre palavras ásperas e raros momentos doces. Ela leu e leu páginas e mais páginas até que seus olhos estivessem cansados e sua mente estivesse transbordando termos e conceitos, gotejando informações que tentava guardar bem a fundo na cabeça. Praticou cada lição a ponto de sua energia desgastar-se por completo e a única coisa que poderia fazer seria descansar, embora sua responsabilidade gritasse para tomar conta da anciã, da loja e de todos que pretendia oferecer auxílio. O único destino que conseguia pensar para si era continuar na loja esquecida, ajudando apaixonadamente cada alma afligida que ali adentrava. Seu único objetivo era, de alguma forma, compensar os erros que cometera para o resto da vida; honrando sua mãe, seu pai, seus irmãos, mestra e principalmente Karim.
Entre suas lágrimas ingênuas, orava cheia de fé para que todos ficassem em paz, em harmonia; para que o rastro de sangue que deixara em suas fugas se transformasse num encantado caminho de flores em pleno solo árido.

Ela parou. A erva já havia se tornado pó, e a moça, portanto, colocou-a junto às outras plantas secas para preparar o chá. Quando a água quente soprou uma baforada sobre seu rosto, Farah inspirou profundamente. Precisava se acalmar.

Mesmo com toda a sua devoção e sede pela sabedoria; mesmo com seu respeito imensurável pela mestra, cada vez mais sentia que havia uma barreira imposta pela senhora, algo sólido e com certa textura farpada. A jovem obedecia todas suas ordens e não questionava o passado dela, no entanto seus olhos percebiam o sutil sorriso de deboche, o tom de sua voz rouca quando lhe pedia demais...

Jogos de poder e sangue. Manipulação. Morte.

Quando a pêndulo se estilhaçou em mil e um fragmentos e cortou sua carne, ela viu. Viu e passou a enxergar. A neófita fugira para não trazer mais desgraças àqueles que estavam a sua volta, a Karim, no entanto ainda jazia aprisionada numa gaiola de ganância.

Antes seu canto era um chilrar alegre e bobo, de uma menina tola e cega. Agora, cantarolava baixo como um corvo que sabe demais. Passou as mãos pelo cabelo negro igual as penas da própria ave, em seguida se pôs a crocitar os mistérios do mundo.

Não seria mais sua serva. Não iria descobrir quais eram as pétalas certas da Flor de Nove Pétalas, não preveria mais acontecimentos só porque Adail pedira; nem a chamaria mais pela alcunha, pois não era o seu nome.

Este sim era o seu despertar.

Farah terminou de preparar a bebida e a despejou em uma xícara larga, arranjando tudo carinhosamente sobre uma bandeja de prata, com ramos de pequenas flores de um lado e delicados doces no outro. Ela sorriu, pensou no seu irmão, e atravessou a cortina de miçangas, levando o desjejum do final da tarde para a velha que já levantava.

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Ele não conseguia ver através da neblina.

Estava deitado sobre a água, ou ao menos sentia que sim, e ondas incessantes lambiam seu corpo lavando seus pensamentos. Quando formulava uma ideia, um simples fragmento de memória ou apenas breves e débeis palavras, a água vinha e levava tudo embora. Poderia ter se frustrado, porém também não havia sentimento que conseguisse brotar em seu peito. Flutuava sem rumo.

O seu interior chacoalhou em soluços salgados do mar, gotas escorreram por seu rosto. Seriam lágrimas? Ele não pensou nisso por muito tempo, logo voltando para a sensação livre, sem peso, sem consciência. Sentia os cílios encontrarem uns aos outros em curtas piscadas, sabia que respirava e que seu corpo vez ou outra se mexia de acordo com a correnteza, apenas... não era capaz de responder estímulo algum. Estava inerte no meio do oceano sem cor, observando o céu ainda mais pálido.

Se o tempo ainda existisse para ele, se ainda fosse aquela criatura maldita que tanto lhe escapava das mãos e depois vinha lhe morder os tornozelos, muito teria se passado navegando sem princípio e sem final.

E então, começando com um breve gotejar e derramando-se igual uma nascente, vozes fantasmagóricas preencheram seus ouvidos com a mais onírica canção dos mares. Gradualmente puxavam-lhe para mais e mais perto, através da quebra dos arcos d’água e mãos de espuma. Agarravam-lhe delicadamente a carne e embalavam- lhe no cântico agridoce, o qual intensificava-se a cada nota, a cada voz acrescentada no arranjo. Ele não pensou.
Mesmo sem ser capaz de discernir um tolo pensamento que fosse, percebeu seu corpo desmontar-se sobre si, impulsionando-se para cima e para fora d’água. A gravidade alterara-se de súbito, a linha do horizonte não existia mais devido ao manto espesso e impalpável da névoa morta. Sua boca abriu em uma perdida exclamação de surpresa quando um imenso par de luzes acendeu-se no céu.

Eram olhos; dois orbes cor de jade leitosa, que lhe encaravam através das ondulações de bruma, atentos a cada subir e descer da respiração do mortal. Ele encarou de volta, tomado por intensa melancolia que se agitava no pulmão igual a água que engolira. O que aqueles olhos esperavam dele? Por que pareciam tão tristes? O rapaz não soube dizer, mas queria afirmar àquela criatura eterna e colossal que tudo terminaria bem, por mais que não previsse o futuro ou sequer tivesse certeza disto. Os olhos piscaram no além e pareceram lacrimejar, fato que torceu as entranhas do jovem.

“Não chore.” Afinal sussurrou, infeliz. “Por favor, não chore.”

A criatura intensificou o seu olhar, emitindo uma luz tão forte, tão densa e grandiosa que o jovem mercador de camelos imaginou que seria destruído até a alma. Não demonstrou nada mais do que singela conformidade, concordando que sua vida se fora do corpo e seu espírito não possuía mais um lar. Em seguida, os olhos cianos piscaram novamente, condoendo-se pelo frágil humano que ali se apresentara. As luzes apagaram-se.

Muito se passou até algo mais acontecesse, e por fim ouviu outras vozes. Não eram belas e sinceras quanto as que lhe trouxeram à entidade, porém foi por elas que aos poucos sentia o peso novamente da consciência.

– Ele deveria estar morto. – Uma mulher afirmou, suspirando impaciente. – Eu preferia que estivesse morto.

Uma risada fresca soprou na atmosfera, afastando parte do nevoeiro cinza.

– Já tivemos de lidar com o outro corpo; deixe o pobre coitado viver.

O homem respondeu com um tom brando, querendo acalmá-la e simpatizando com o rapaz retesado sobre o confortável colchão. Seus ferimentos foram limpos e tratados, a hipotermia estabilizada prontamente, no entanto não abrira os olhos desde que o encontraram dias atrás.

Havia também outro som, alguma ave piando de tempos em tempos.

– Sinais vitais normais. – Ela ignorou a afirmação dele e pareceu entretida com os próprios pensamentos, embora a contragosto. Estalou a língua e bateu o pé no piso, som que fisgou de súbito a mente do corpo estendido. – Não há mínima alteração nele senão a maldita inconsciência!

– Te incomoda tanto assim?

– Ora! – A mulher riu em escárnio, fato que somente serviu para tirar a atenção de ambos quanto a mão do enfermo, a qual mexera-se brevemente. Suas pálpebras tremeram parecendo portais de chumbo, porém ninguém percebeu. – E não incomoda você? Se não bastasse o cavalo, ainda devemos descobrir o porquê dele ainda estar vivo.

Alguns minutos se passaram, e desta vez o rapaz distinguiu bem a respiração dos dois que conversavam e o pio da ave. Já a imaginava pequena e colorida, cor de rosa talvez, inflando o corpo inteiro a cada gorjeio estridente.

– O fato é que... – Ela suspirou, derrotada. – Seria mais fácil se ele estivesse morto igual aquele velho. Daria-nos menos a que pensar. Menos a que justificar. – Falando baixo, mais consigo mesma do que com o homem, a mulher continuou a raciocinar: - Ninguém deveria sobreviver naquelas condições por tanto tempo, ferido, cansado e com um frio inumano. Ninguém. Ele só faz o meu trabalho parecer coisa de criança birrenta, fantasia infantil.

– Bom, - Ele riu. – Você está sendo uma criança birrenta.

O rapaz sentiu seus devaneios voltarem aos limites do crânio, sua mente dispersa sendo sugada aos poucos para dentro do cérebro. Doía, mas ao menos ele achou graça do gracejo tolo do outro homem e também quis rir como ele, ainda mais quando escutou um bafejo irritado dela e o som de um tapa ardido. Seus lábios repuxaram um pouco para cima, num murcho sorriso.

– E você? O que o senhor tem a dizer sobre ele? – A mulher frisou o pronome de tratamento de forma irônica, num misto de deboche e respeito. Tais discussões entre ambos repentinamente pareceram comuns aos tímpanos do jovem. – O que vossa astúcia abrangente e insuperável pode nos informar?

– Silêncio. – Cortou-a, impedindo-a de murmurar maiores impropérios e ardiloso sarcasmo, mas a voz dele apontava uma alegria infame. – Ele está pensando.

O enfermo demorou a concluir que o homem indistinto falava sobre ele, pois mais se achava uma criatura amorfa e invisível que existia apenas para ouvir. Aquilo o confundiu.

– Você havia dito que não conseguia sentir nada sobre ele. Que não existia atividade mental.

– Sim. – Ele estava se cansando daquele debate. – E seus aparelhos confirmaram cada palavra que proferi. Algo não me permitia lê-lo... mas agora não há mais uma única nuvem, nenhuma interferência que seja. Curioso, não?

O pio preencheu o silêncio. Deitado e ciente da camada sensível de pele que lhe recobria a carne dos músculos e o fino manto de gordura, ele incomodou-se com o casal observando-o dormir, ou não dormir, já nem sabia ao certo. Não era como as orbes verdes, longe disso, aqueles dois pares de pupilas pareciam perfurá-lo bem lentamente por cada centímetro de si, por cada poro da tez. O que tanto queriam saber? Por que sobreviver era tão surpreendente assim?

E que ave era aquela que não parava um minuto sequer?

– Ele vai acordar? – A moça questionou, entre o receio e a expectativa. Ansiava por tal evento há dias e por todo o período da espera dividiu-se em querer ouvi-lo ou matá-lo.

– Sim.

Com uma puxada súbita de ar pela boca, Kadar despertou.

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Os olhos cinzentos se abriram lentamente.

Raed ficou a mirar o teto acima de sua cabeça, sem reparar bem a arquitetura estranha e escura ou pensar sobre o que havia acontecido. Era como se voltasse aos poucos de um pesadelo indistinto, o qual deveria vasculhar a fundo na mente para resgatar o que sonhara, socorrer imagens que vira e sentimentos que o perfuraram. Ele piscou e piscou, banhando-se aos poucos nas memórias.

Memórias.

Quis levantar de uma só vez, porém o tronco não lhe obedeceu, ou ao menos não sem lançar um raio de dor por todo o seu corpo. Ficou sentado, com as pernas esticadas e gemendo pela eletricidade que lhe rasgou os nervos. A despeito de sua respiração repentinamente acelerada e das gotas de suor quente que lhe escorriam pela têmpora, um tecido úmido caiu delicado em cima de seu colo, despontando de sua testa. O ladrão encarou aquilo e tentou colocar a cabeça no lugar. Passou uma das mãos pelos cabelos, o qual percebeu também estarem ligeiramente molhados, e em seguida sentiu uma brisa gelar seu corpo. Por que estava somente com uma camisa fina, e não com seus mantos de costume?

Ele encarou um ponto fixo, acalmando o inspirar e expirar de seu nariz e boca. Repetia para si mesmo que deveria lembrar-se das coisas gradualmente, senão aquelas marteladas no cérebro não passariam jamais. Colocou o rosto entre as mãos e aliviou-se em sentir sua carne intacta, não a textura amorfa de areia. Tateou as pernas, os tornozelos ainda marcados pela boleadeira, e por fim os ombros. Suspirou.

Estava inteiro.

Seus olhos perscrutaram tão leves quanto borboletas as paredes de fundas gravuras, as quais eram preenchidas por trepadeiras e pequeninas folhas de intensa clorofila. Havia alguns galhos intrusos que vinham lá de fora, invadindo o recinto à meia luz com seus veios castanhos e flores escarlates. A árvore, entre o mundo externo e interno, balançou com o vento e rangeu suas garras contra a pedra; os brotos de frutos vermelhos dançaram como penduricalhos de um móbile de criança numa intrigante canção de ninar. Um grande pomo carmim atraiu as pupilas dilatadas do ladrão, o qual passou a sorrir abaixo de dúzias e mais dúzias de orbes cor de sangue, bailando suavemente seus corpos de diversos tamanhos pela gélida brisa. Com a água da chuva somada aos últimos raios do Sol, as frutas reluziam saborosas:

Frescas e bailarinas romãs.

Os lábios de Raed repuxaram-se e ele riu, riu um riso fraco e rouco, sem bem acreditar no que via. Contudo uma sombra logo transpassou seu coração, emudecendo-o. Abraçou a própria carcaça, encolhendo-se devido ao sopro frio que adentrava pelo ambiente. Sua pele estava bem morna e salpicada de suor, de modo que estremeceu frente ao mínimo vento que embalou seu tronco. Engoliu em seco, sentindo-se pequeno e frágil.

Andara por tantas ruínas, por tantos restos e escuridão sem quebrar-se por dentro. Qual era a razão que fazia seu peito resfolegar em tantos cacos?

Cacos...

Por algum motivo ainda anuviado, aquele termo em específico lhe deu palpitações nervosas no coração, entretanto não achou que deveria dar importância para uma palavra tão insignificante. Estilhaços o lembravam do quê? Cenas violetas pincelaram seu torpor, apenas para deixá-lo mais frustrado e confuso. Bufou, querendo recordar-se logo do que acontecera.

Havia uma lamparina resistindo a brisa a pouca distância de si, um ponto vivo e alaranjado no cômodo abandonado, iluminando bruxuleante o chão antigo e cheio de pó, de pedras lisas e largas. Ele virou seu pescoço devagar, observando o espaço que o rodeava: o lugar era grande, sustentado por colunas inteiras trabalhadas e de finos capitéis, segurando arcos quebrados iguais àquele quase destruído nas Ruínas. A eletricidade das sinapses, junto aos raios da suave garoa, fez o cérebro de Raed começar a funcionar.

Alethia.

O som de sua garrafa partido-se pareceu explodir de súbito em seus ouvidos, inundando seus tímpanos com o grito craquelado da gênio. O vidro fora arremessado contra um rochedo, num baque bruto e sem volta, para então todos os seus fragmentos cor de ametista serem cobertos pelo manto branco da areia. O ladrão piscou uma dúzia de vezes, afirmando em voz baixa que aquilo era mais uma alucinação. Precisava ser. Outro arrepio retumbou sua coluna, desta vez nada relacionada à brisa: recordara-se como havia imaginado tal cena com gosto há dias na cidadela; como visualizara abandonando-a no deserto apenas porque ela não o deixara em paz com o assunto da garrafa. Com a garganta apertada, repetiu o mantra até que o peso deixasse seu corpo, mesmo que momentaneamente. Primeiro tinha de pensar, tinha de saber onde estava especificamente para em seguida procurá-la, caso contrário não seria mais do que um corpo trôpego e infeliz perambulando por terras desconhecidas; atitude que a própria serva o recriminaria de forma austera.

Apertando as pálpebras, o ladrão torceu para que raça de Alethia de fato fosse imortal.

Sua noção de espaço voltara e ele se viu ladeado pelos entalhes cinzentos, sob um teto alto e curioso. Sua cabeça pendeu para sorver dos detalhes das abóbadas em cruzaria, daquele incrível desenho que parecia levar seus olhos mais e mais para os céus. Seus devaneios tempestuosos flutuaram pelo verticalismo do recinto, seguindo a direção nítida das setas apontadas pelos arcos ogivais, notando que aquele palácio esquecido fora tomado por uma aura misteriosa e por plantas escuras, que se agarravam junto ás pedras. Os ramos espalharam-se como veias de um corpo fantasmagórico, trincando peças e buscando a luz, tapando os vitrais e infestando o local.

De onde vinha o vento?

Ele esfregou os olhos e permitiu-se concentrar nos detalhes que vinham aos seus sentidos que não a visão. Havia uma corrente de ar passando por ele, algo que vinha do lado escuro e distante do salão e escorria até metros a frente de si. Abriu as pálpebras, para então enxergar algo a mais do que as arcadas quebradas que emolduravam o mundo externo, algo mais do que o dourado do entardecer e as estrelas frias que chegavam: alguém. Uma figura encapuzada, coberta de qualquer forma por trapos sujos o encarava em puro silêncio.

Ele não pôde ver os olhos, mas tinha certeza de que a criatura vira os seus.

A garganta seca de Raed foi incapaz de gritar, e ele somente arrastou seu corpo dolorido para trás e juntou o primeiro objeto que podia para arremessar contra a silhueta. A luz amorfa da lamparina atravessou o ar vagarosamente como se a gravidade não a puxasse, fazendo um caminho âmbar de fulgor e alumiando pouco a pouco as figuras de mármore; por fim beijou o corpo de véus. Ou quase.

Em um lampejo dourado o objeto atravessou o ombro da criatura como se esta fosse feita de ar, e em um sorrateiro movimento ela deu um passo a mais para salvar o delicado farol com as garras de seu braço direito. Neste exato momento, o ladrão soube que além de perdido e doente, logo seria torturado vivo pela entidade sombria. Provavelmente merecia tudo aquilo. Procurara as Dunas Brancas afinal, e tinha de enfrentar as consequências de sua insanidade. Ele piscou sem procurar pensar, sem querer carregar mais arrependimentos.

A criatura aproximou-se rápida e silenciosa, como se seus pés mal tocassem o chão.

– Não posso sair um segundo que arma este disparate todo? Que já tenta me matar? – A voz era ríspida, porém familiar... Caso houvesse um eco sobrenatural acompanhando-a, seria facilmente reconhecida. – Quase destruiu o único item útil que encontrei... Seu moleque problemático. – Disse ela, apontando a lamparina. - Não tens vergonha?

Raed balbuciou frases débeis e incompletas antes de finalmente arriscar a pergunta:

– ...Alethia?

O ambiente se encheu com o som da risada amarga dela, algo que o ladrão suspirou ao escutar.

– Em carne e osso. – Continuou a gênio, num tom azedo. Agachou-se de joelhos, colocando o lampião antigo de um lado e um recipiente médio no outro, cheio d’água fresca da chuva, o qual o ladrão não vira até então. Ela não descobrira o manto da cabeça e não fazia menção disto, apenas parecia entretida em organizar os parcos objetos que ali repousavam, colocando-os prontos para utilizá-los e resmungando o tempo inteiro. Retirou o pano úmido do colo de Raed de modo despreocupado, relando os dedos magros sobre sua coxa, e em seguida o mergulhou na bacia. Torceu o tecido e o pôs sobre a testa dele; e nesta breve ação seus braços estremeceram e deixaram o pano escapar. Um segundo de silêncio os recobriu, e ela sussurrou: – Em maldita carne e osso.

Raed, já inclinado para trás e querendo deitar-se para Alethia prosseguir com o tratamento, de súbito voltou a ficar sentado e segurou a mão que a gênio insistira em recolher. Sua pele lilás, caso a luz fraca não o confundisse, estava tão glacial quanto a uma pedra de gelo que o rapaz bem reconhecia pelos finos doces importados da Purmânia, ainda no palácio. No entanto, aquela temperatura não o agradou como os mimos da cozinha de Sundara.

– Você parece cadáver! – Ele arregalou os olhos, indignado, mas não pôde esquentar as mãos dela com as suas, pois a serva puxou seu braço para si e enrodilhou-se mais nos trapos. Ainda assim, tremeu.

– Fato preferível à possuir esta forma. – Raed não controlou um leve sorriso ao ouvir sua voz esganiçada, suas palavras transbordando um veneno infantil e inócuo. – Vez ou outra consigo me desmaterializar, como fiz agora quando me lançou a lamparina, mas não consigo voltar completamente ao que eu era... Odeio este corpo, odeio o que ele me faz sentir.

Seu amo era humano e estava acostumado aos limites de sua espécie e sensações confusas que seus órgãos captavam: Cheiros, visões, tato e paladar... Possuía tudo isso como gênia e até mesmo um pouco além, por exemplo, a habilidade de enxergar a verdade, porém sua nova carcaça trouxera arrepios estranhos, dores e emoções muito mais fortes do que julgava serem capazes de existir. Com tal inesperada transformação, o mundo era outro, um mundo novo e admirável... Embora demasiado assustador.

O jovem pendeu a cabeça para um lado, mirando a curta fumaça que saía da respiração dela. Uma fumaça normal, e isto lhe era tão estranho... Ele ajeitou-se no lugar, sentou-se mais firme, e olhou mais uma vez para a figura encapuzada ao seu lado.

Os trapos eram seus trapos; os mantos arrancados pelos lobos de vento durante a tempestade de areia nas Dunas Brancas. Ela o colocara sobre seus ombros, pusera o capuz e o fechara na frente, mas suas pernas ficavam expostas na altura um pouco abaixo do joelho, onde sua pele também jazia fria e levemente arranhada. Talvez caminhara pela mata lá fora e encontrara arbustos de espinhos, o que justificava os ferimentos e as marcas de terra no pé, porém ele não encontrou maiores explicações sobre como ela resgatara a vestimenta, se vestia apenas isto, ou como exatamente vieram parar neste lugar. E por qual razão não notara as pernas dela antes, quando imaginara estar a frente de uma criatura das sombras? Havia tantas questões para se resolver e o ladrão teve receio de todas as respostas.
Por mais que Alethia tivesse extrema cautela a quem se revelar, por mais que declarasse seus rígidos critérios e profundo desgosto quanto a raça humana, Raed encarou as sombras do rosto dela com curiosidade de ver sua face. Nunca havia visto mais do que fumaça roxa ou uma silhueta disforme contra a brisa. Nunca, e jamais pensou que a veria em outra forma. Ela suspirou outra vez.

– Como está se sentindo? – Perguntou, recordando-se repentinamente de que seu amo estava febril e suando frio. Tentara cuidar dele o máximo que podia, mas era difícil com poucos recursos. Encontrara apenas água, algumas ervas e romã, o que a fazia questionar: “Por que sempre romãs?” Ela ignorou o ronco de sua barriga e levantou mais o rosto.

“Desintegrado. Estilhaçado. Fraturado. Inexistente. Reduzido a pó”, pensou, mas apenas consentira o esboço de um sorriso surgir nos lábios e respondeu com o mais delicado eufemismo:

– Leve. – A voz dele ronronou. - Me sinto leve; aéreo.

Foi o suficiente para arrancar outro riso sarcástico dela.

– É simplesmente encantador o quanto eu me sinto o oposto: pesada e sólida.

O vento trouxe mais arrepios a ambos, por razões diferentes e iguais ao mesmo tempo. De qualquer forma, os dois praguejaram mentalmente.

– Conseguimos? – Raed passou as mãos de novo sobre as têmporas, agora mais aliviado por ao menos algo estar dentro do planejado: Alethia estava bem, e mesmo que não fosse da maneira que esperavam, por ora era tudo o que importava.

– Sim, - O capuz se inclinou em direção às arcadas da construção, e seus devaneios a levaram por metros e metros frios além da porta. Vira pouquíssimo dali, Raed menos ainda, entretanto ela sabia que havia muito mais o que se explorar. Muito mais ao que se enfrentar. – E esta foi a parte mais fácil.


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Notas finais do capítulo

Não sei se vocês perceberam, mas há partes que utilizo muitos "e", metade de forma proposital e metade não. Fica mal escrito assim? Por favor, caso dê para melhorar algo ou caso haja algum erro de gramática ou coerência, me digam.

Gostaram?? Três personagens, todos despertando em circunstâncias diferentes... mas ao menos a Farah me deu uma justificativa para suas ações. Thank u, darling :3

Beijos e até a próxima!



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