Além das Dunas Brancas escrita por Shalashaska


Capítulo 11
Ruínas


Notas iniciais do capítulo

EU VOLTEI!!!
Galera, peço perdão pela demora, sério!! Levei um bom tempo para escrever este capítulo porque comecei a trabalhar "de verdade" e isso me deixou tensa e completamente fora do ar pra escrever... e também porque TINHA de ser bem escrito, não podia ser qualquer coisa só pra enrolar vocês. O próximo virá sem atrasos, mas o capítulo 13 - que é mais denso - talvez demore um pouco mais ^^' Repito que NÃO abandonarei a fic, mas as atualizações serão a cada 15, 20 dias em média. Espero que entendam isso, povo.
Como vocês irão perceber, o tom da história vai mudar um pouco, o que também justifica a razão de meu cuidado com a narrativa e etc.
Agradeço todos que acompanham a história, comentando ou não, e mando um beijo todo especial para as leitoras que fizeram contato comigo através dos reviews! Vocês são incríveis, e eu adoro pensar em vocês quando digito minhas ideias, fico imaginando a reação de cada uma e sempre tenho um certo medo de decepcioná-las. Vocês são incríveis, e se tivesse tempo, escreveria durante horas sem parar só pra vocês.
Minha nossa, acho que chega de enrolação! Aqui vai meu presentão de 4 mil e poucas palavras. Luv u all



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/585514/chapter/11

Passando as pontas dos dedos pela superfície das paredes, o ladrão sentiu na pele sua textura áspera e sombria, inteira desgastada pelo tempo e pelo vento. Devagar, andou mais um pouco pelo grande oval das Ruínas, tateando o lugar igual a um cego, em busca de respostas claras aos seus olhos que só enxergavam a escuridão. Enquanto caminhava, nutria o seguinte pensamento:

Isto também acontecia com as pessoas? Seu povo também era consumido pelo tempo e pelo vento? Seria ele apenas uma ruína do que um dia fora?

Com um breve aceno da cabeça, ele concordava com todas as questões, mas ignorou-as após certo tempo. Seria inútil sustentá-las.

As pedras do chão faziam uma sequência de anéis e adornos até o centro, onde jazia um pedestal monolítico brotando do solo. Lá era o ponto principal deste altar há tanto esquecido pelo mundo, mas ele não se direcionaria até seu destino sem absorver todos os detalhes dali. Talvez fosse a sua última memória antes de pular conscientemente para a morte, e ele desejava que a lembrança fosse completa; cheiros, visão, tato, até mesmo o gosto amargo da boca, a sede que também sentia. Cada centímetro do espaço corroído lhe dava uma ansiedade fúnebre na boca do estômago, uma urgência sobrenatural de sair dali, no entanto quando saísse seria para não voltar.

Kadar respirou fundo ao subir os sete degraus que separavam a antiga construção da areia, e precisou muito mais ar do que realmente necessitaria para tal movimento. Seus pelos de detrás do pescoço eriçaram-se quando adentrou o oval, circundado por colunas quebradas, seus pedaços ainda perto da base. Sua atenção demorou-se mais sobre as flores brancas que resistiam ao clima, ascendendo com seus caules escuros pelos destroços. Ele só pôde imaginar qual seria a sua espécie e como sobrevivia em lugar tal inóspito, e em seguida seus olhos viajaram novamente. A arquitetura lhe pareceu estranha, nem o pouco que viajara em sua vida foi capaz de lhe responder qual cultura havia desenhado os ornamentos esculpidos, embora já meio apagados, ou o curioso e único arco que emoldurava o nada. Ele admirou a visão de mais dunas à frente e então começou a se desesperar: o que faziam ali?
Pousou seus olhos, cada vez mais ávidos por respostas, em cima da figura de Raed e engoliu seco. De fato, ele não conhecia aquele homem. Não poderia enxergar a criança travessa na imagem do rapaz abatido. Com as botas fazendo barulho pela camada de areia e cascalhos, o aprendiz aproximou-se de seu irmão e se pôs a observar o que este tanto encarava.

Era uma mesa, a segunda dali, feita da mesma pedra cinza; uma estava ao lado direito do portal pontiagudo, a outra estava à esquerda. Ambas possuíam objetos virados, cobertos de pó, dentre eles haviam castiçais com velas derretidas ou pela metade, cálices de bronze, livros ilegíveis de tão carcomidos e outros instrumentos de prata que eles não souberam especificar a finalidade. Qualquer ritual que tenha sido exercido neste altar, pela estranha e ancestral cultura que seja, jamais foi concluído... e pelas manchas escuras, que haviam de ser sangue derramado com violência ao chão, tal cerimônia não teve um feliz desfecho.

O arrepio contínuo na espinha de Kadar então alastrou-se como um raio por todo o seu corpo, ramificando-se por sua pele inteira e evocando um espasmo incontrolado de medo. A aura do lugar o sufocava e ele perguntou-se se Raed sentia aquilo, se estava incomodado tanto quanto ele. Engoliu seco novamente.

Quando viu Alethia pela primeira vez, fato que ocorrera há apenas um dia, Kadar temeu pela própria vida, porém seu coração pulsou em ondas de entusiasmo e surpresa no momento. A criatura lendária era intimidadora devido ao seu poder, reputação e de seu raciocínio diferente dos humanos; no entanto, por mais que esta pudesse quebrar sua alma, ele não sentiu o que sentia nas Ruínas.

A gênio, por sua vez, permaneceu bem quieta dentro de sua garrafa e sentia o que viria a seguir pela simples vibração do ar, embora não fosse preciso ser de sua raça fantástica para perceber tal fato. Seus olhos observavam atentos as figuras pintadas de roxo através do vidro.

– O que viemos procurar, Raed? – A voz dele preencheu o silêncio, saindo ligeiramente trêmula para o seu desgosto. Juntou coragem mais uma vez e prosseguiu. - Não há nada interessante para um ladrão nestas ruínas!

Raed abriu um esboço de um sorriso, achando graça de seu amigo querer dar um toque de humor a atmosfera, mesmo com o tom de voz saindo meio esganiçado de nervoso. O sorriso então tornou-se triste.
Sentira-se mal por não contar nada à ele e este sentimento de culpa só aumentava quando pensava nos motivos que o levavam a evitar a mínima revelação: No fundo, concordava com Alethia. Concordava que ele poderia se deslumbrar com o poder da gênio e traí-lo; concordava que poderia sim matá-lo ao saber para onde iam. Se questionava a todo momento: Por que trouxera Kadar, afinal? Por que fizera tanto esforço com a maldita ilusão nas moedas, que causaram somente problemas e atrasos? E por que Kadar não o enfrentava de uma vez? Por que não discutia com ele?

O ladrão queria que Alethia brigasse com ele de novo, para poder se defender e dizer que era uma pessoa boa; mas ao mesmo tempo desejava que Kadar fizesse isto, pois Raed achava que merecia ouvir todas as suas injúrias.

Somos seres vis e peçonhentos, completamente insignificantes... Eu te aprisiono.”

Suas palavras na discussão com sua serva bateram em seus ouvidos, obrigando-o a admitir que descrevera a si próprio. Aprisionara a gênio e seu irmão. Então, por que não conseguira deixá-lo em paz? Por que, de maneira ou de outra, o fez segui-lo se isto era prejudicial a ambos?

De seu usual cinto, ele retirou um fino e curto tubo de uma das tiras de couro e abriu-o, fazendo cair um pergaminho puído em suas mãos sujas de pó. Era um mapa antigo, com o nome das terras de Nirav e alguns reinos vizinhos, exibindo duas marcações recentes de tinta preta: uma ao norte da capital, a cidadela perto de um rio de onde saíram, e uma ao sul: Ruínas, a ponte para as Dunas Brancas.
Kadar aproximou seu rosto do papel amarelado e por fim pegou-o com as duas mãos, sem acreditar o quanto percorreram em tão pouco tempo. Encarou o desenho e, naquele movimento passageiro e insignificante, Raed viu a face de uma criança de onze anos.

Na lembrança, os olhos mel de Kadar estavam tingidos pela luz do fogo, parecendo acesos por dentro quando aproximava-se dos livros para observar as figuras e palavras rebuscadas que nem sabia o significado. Depois, ele continuou a narrar sua viagem fantástica com sua mãe, Neriah. Ele se empolgava, tropeçava nas próprias vestes ao gesticular de forma expansiva, para então cair no tapete macio e cheio de padrões geométricos ricamente tecidos. Seus dedos contornavam os arabescos enquanto sua mente viajava com memórias vívidas de tão coloridas, e distraidamente sua boca jorrava descrições da paisagem e das pessoas.

Chovia pesado lá fora.

Embora Sundara fosse subordinado a Nirav e compartilhasse boa parte de sua cultura e costumes, o clima não era o mesmo. Localizava-se entre mares, um estreito estratégico para o comércio, tendo, portanto dois portos: o Oeste e o Leste. Ao Norte havia regiões mais frias e montanhesas, de difícil acesso para os outros reinos que queriam comunicar-se com os do lado oposto; já ao Sul vigorava Nirav, com suas belas dunas e calor, comandando pequenos estados ao alcance de suas mãos. Com toda a sua arquitetura característica, Sundara desfrutava de maior diversidade de temperaturas e plantas, além da abundante oferta de água e consequente prosperidade.

Tão cinzas quanto o tempo lá fora, os olhos de Raed contemplavam as nuvens e a cada relâmpago violeta ou azulado, as pupilas dele também faiscavam em puro reflexo.

– Ei! – Kadar exclamou, não ofendido de fato. – Você não está prestando atenção.

O ladrãozinho de cozinha recebeu o impacto de uma almofada bordada no rosto, e somente assim despertou de seu transe ao admirar a janela, a única sem estar tapada por uma cortina escura. Ao invés de revidar de maneira bruta, Raed puxou a almofada para si e abraçou-a contra o peito. No mesmo instante Kadar franziu a testa, percebendo algo diferente, aproximou-se e puxou os cobertores que haviam jogado no chão.

– O que é? A história era chata? – Perguntou preocupado. – Cansou-se dos livros que pegamos na biblioteca?

– Não... – Ele encarou o chão à frente, coberto por exemplares de folclores de diversas partes do mundo, de narrativas épicas de guerras e valentia, de terras perdidas além-mar e criaturas esquecidas do deserto. Naquela mesma sala fechada e cheirando a incenso de âmbar, os meninos podiam explorar mil e um lugares diferentes, imaginar outros tantos a seu bel-prazer. – É que... Você não acha que está demorando muito?

–Ah. – Kadar entendeu a dor do amigo, refletida pelo engasgo em sua voz. – Você sabe que é assim mesmo, nossas mães demoram muito no trabalho delas; ainda mais com o evento real acontecendo! Você viu toda a comitiva da Rainha?

– Vi, vi sim...

Os trovões preencheram o silêncio por eles, ambos encarando a sucessão de livros abertos ou empilhados pelo cômodo, além dos pratos vazios de comida; algo que tiraria muitas críticas amargas das criadas velhas. O filho de Neriah suspirou triste por não tê-lo animado, mas o outro não colocava um pingo de culpa em seu irmão.

Raed só conseguia pensar nos forasteiros chegando ao palácio, com suas vestes escuras, estranhas e cheias de peles grossas; seus rostos austeros e posturas impecáveis. Pareciam ter trazido a chuva e a melancolia junto deles.

Eram todos da terra natal da Rainha e vinham para dar a notícia da junção estabelecida nos reinos a Nordeste dali, atrás do oceano. A Leônia e a Pumária uniram-se, dando origem a Purmânia, e este novo Estado desejava oficializar o feito com as bênçãos de sua princesa, hoje Rainha de Sundara e elo de tão distintas culturas.
O menino de onze anos viu cheio de surpresa a carruagem aproximar-se, sendo puxada por cavalos imensos e de pelos longos nos joelhos, e perguntou-se como eles entendiam uns aos outros naquela língua engraçada.
Quis contar a sua mãe a grande novidade, mas ela já parecia saber quando encontrou-o no quarto. Com a respiração afobada, ela o segurou pelos ombros e encarou-o fundo nos olhos, para logo abraçá-lo com força. Jamais vira sua mãe ter tanto medo, e enquanto respirava do perfume refrescante que ela usava, prometeu a si próprio que a protegeria de tudo; mesmo daqueles homens. Mesmo da Rainha e do Rei.
Ela forçou um sorriso e disse que Kadar faria companhia para ele enquanto estivesse fora, e o fez jurar que não sairia para procurá-la por motivo que fosse, não importasse quanto tempo fizesse desde sua ausência.

– Um dos serventes me falou hoje que... – Raed respirou fundo, com os olhos ardendo. – Que machucam o corpo da minha mãe no trabalho dela, mas que ela fere a alma dos outros em troca.

Alguns segundos se passaram para que seu amigo esboçasse uma reação.

– Quem te falou isso?! Um dos jardineiros, aquele velho? – Ele meneou a cabeça, concordando. Em resposta, Kadar levantou-se numa pose triunfante: - Ah, ele só diz isso porque tem inveja! Enquanto tem de cuidar de todas aquelas plantas e aprendizes, sua mãe participa de reuniões com os estrangeiros. Isso sim é cargo importante!

Raed conseguiu abrir um leve sorriso agradecido, ação que o outro retribuiu todo satisfeito.

Eles não sabiam. Dois anos se passariam até Sundara não existir mais, e aquelas duas crianças ainda não iriam saber o que exatamente acontecia dentro do palácio.

– Raed... – Kadar voltou a se enrolar no cobertor e jogou seu corpo contra uma poltrona que estava ali perto. – Sua mãe deve decidir o destino do reino inteiro. Não fique brava com ela por levar tanto tempo.

– Eu só queria não ser mandado esperar quieto, enfurnado num quarto toda vez que ela sai. – Tentou se explicar, com a ponta fria de inveja lhe assolando o peito. Neriah, quando cuidava deles, vinha de tempos em tempos verificar como estavam, trazia comida e ás vezes contava alguma lenda que os dois nunca escutaram ou leram em lugar algum. Parecia ininterruptamente preocupada e tinha linhas na testa para comprovar tal fato, porém sempre estava . – Eu só queria ir numa viagem com você e sua mãe.

Para ele, aquilo era uma revelação extraída de modo bruto de seu peito, no entanto Kadar só chacoalhou os ombros.

– Quem disse que você não vai? Você vai sair daqui algum dia, e pode ser mais cedo do que imagina. Vamos viajar juntos!

– É... – Murmurou ele, já recuperado de seus pensamentos negativos. – Quem sabe?

Todos os seus questionamentos e dúvidas resumiram-se a uma única sentença devido à lembrança, uma única verdade mais simples e crua do que poderia aceitar: Raed queria a companhia de seu amigo; alguém que não estava ao seu lado por necessidade, convivência forçada, conveniência ou dever; mas sim por livre arbítrio. No tempo presente, Raed apertou os punhos ao pensar: “Que maneira engraçada o Universo tem em realizar nossos desejos...”

– O que... – O outro chacoalhou a cabeça, largando o papel. – O que você quer com tudo isso? Nem sabemos o que tem mais depois dessas ruínas agourentas!

O ladrão suspirou e desviou seus olhos para o arco, em específico na figura além dele. Chegara a hora de ser transparente.

– O que tem lá... Pode mudar nossas vidas. Mudar para melhor. – Ele disse com a voz carregada, voltando-se para encará-lo. – Nunca teríamos de ter passado por tudo que passamos. Não seríamos mais estes restos, estes cacos que hoje somos. – Fez-se uma pausa, onde o ladrão encheu o peito de ar para prosseguir: - O que tem lá... pode apagar nossos erros. Os piores deles. E então... As desgraças as quais vivemos seriam apagadas para sempre.

O olhar de ambos era intenso, arranhavam um ao outro até saírem faíscas, enquanto respiravam pesadamente daquela atmosfera fúnebre das Ruínas. O cheiro incomodava, deixava a garganta áspera e com vontade de tossir, no entanto nenhum deles deu atenção. Somente se encaravam.

– Não. – Kadar respondeu. – Você busca o que eu não desejo para mim. Nossas vidas foram miseráveis desde a Queda, mas foi assim que eu me tornei a pessoa que sou. E por mais que... – Ele riu, sem achar graça alguma. – E por mais que seja um órfão bastardo, sem lar e sem destino, posso me tornar algo mais, algo maior e melhor. Eu sinto isso, Raed. Sinto que agora posso escolher o que fazer da minha vida, pois você me ajudou a ser livre. Por que eu mudaria o que fui?

Os dentes de Raed rasparam um nos outros, e foi aí que ele percebeu que seu maxilar doía de tão tenso que estava. Engoliu os sentimentos que entalavam sua garganta e tentou não se desviar por instinto quando seu irmão pousou a mão em seu ombro.

– A vida não se trata de apagar os erros, Raed. – Ainda era caloroso, porém firme como o ladrão jamais vira. – Se trata de superá-los. Você não precisa disso.

– Eu tomei minha decisão.

O aprendiz baixou os olhos, com receio de afrontá-lo de volta e ver que não havia mais saída. Quando levantou-os, seu pulmão respirava cheio daqueles cacos que Raed mencionara.

– Vai morrer. – Afirmou, apertando o ombro dele.

– Eu sei.

O ladrão afastou-se e foi em direção ao pedestal, ao centro das Ruínas. Estendeu a mão esquerda, a qual o braço fora ferido durante a fuga de Tamir, sobre uma marcação redonda da pedra e logo pousou seus dedos nela. O movimento foi natural, instintivo, nem bem Raed raciocinou o porque, apenas lhe pareceu correto como uma das etapas para atravessar as Dunas Brancas. Assim que sua pele encostou na aspereza da rocha, uma luz se abriu no ambiente igual o estrondoso nascer de uma estrela no céu mais escuro, e junto com tal repentino brilho veio a dor.
Os joelhos dele falharam, levando-o ao chão com uma pancada abafada pelo som de seu grito. Cada veia de seu braço queimava até seu coração, o qual batia arritmado em ondas de puro fogo. Tentou arrancar seus dedos dali, puxando e arranhando sua pele com a outra mão, no entanto permaneceu fixado à pedra no feitiço ancestral.

As Ruínas então se acenderam.

Cada entalhe esculpido, cada arabesco e forma gravada e já gasta preencheram-se de um estranho lume ciano, enquanto o vento varria o local. Formou-se um tornado e o oval de pedra era o olho do furacão.

Kadar estava paralisado, a face torcida e pálida de choque. Não conseguia se mover, por mais que forçasse suas pernas a avançarem para ajudar seu irmão. Apenas respirava enquanto mais luzes surgiam do pedestal e dos altares esquecidos.
Eram inscrições, letras formando palavras numa língua desconhecida, que aos poucos reagruparam-se e mudaram sua forma para adequarem-se aos viajantes. Assim que podiam entender o que aquilo significava, o vento cessou e Raed foi capaz de retirar sua mão da marca.

Não acreditou no que sentira. Continuou a encarar a própria mão, agora em cima de seu colo, e seus olhos arregalaram-se ao ver a uma cicatriz desenhar-se gradativamente como uma tatuagem de brasa em sua palma.

O breve momento de calmaria, porém, foi cortado por um conjunto de vozes, sem rostos ou gêneros, o qual ecoou soberano pelas Ruínas.

– À direita, aqueles que foram. – A luz disse, indicando inúmeras inscrições escarlates dos nomes de viajantes que passaram pelo mesmo ritual e ousaram atravessar as Dunas Brancas. Nomes de terras distantes e épocas longínquas, e agora um novo se juntava aos demais: Raed. – À esquerda, aqueles que voltaram.

Raed não conteve um espasmo no corpo ao mirar uma lista com apenas meia dúzia de nomes.

Ó, vós que entrais... – As vozes continuaram. – Abandonai toda esperança e cinzas da alma, pois aqui não há sombras ou sonhos.

Com estas palavras, as luzes se foram tão de súbito quanto vieram; sobrando apenas os dois homens nas Ruínas. O ladrão caído levantou-se com o último sopro de energia que tinha e então virou-se para enxergar Kadar.

Aproximaram-se, naquele olhar confidente que compartilhavam há tempos.

O aprendiz engasgou ao vê-lo cambalear e sentiu como se ele próprio tivesse partido-se em lascas quando seu irmão buscou apoio em seus ombros. Não foi assim que ele imaginou o término da viagem, a qual escurecia seus tons a cada minuto rumo ao destino sombrio que somente Raed compreendia. Agora, vendo que o folclore continha certa verdade, temeu por seu amigo e pelo o que ele tentava desesperadamente alcançar.
Sustentando parcela do peso do outro, ele perguntou:

– Não há nada que eu possa dizer para fazê-lo mudar de ideia?

– Não. – Os lábios dele desenharam um sorriso murcho, enquanto o ladrão começou a firmar seus pés no solo. – Você já colocou essa dúvida por tempo o suficiente.

Kadar inconscientemente pressionou mais seus dedos nele, apertando-o.

– Por que não pode me dizer com todas as palavras o que está procurando? O que quer tanto provar?!

Raed soltou-se do abraço agressivo e encarou o chão. Não conseguiu sentir raiva de seu amigo por este exibir agonia, no entanto ainda era aquele menino travesso que não contava a verdade; por mais que se remoesse por dentro.

–Porque pareceria ridículo até para mim. – Ele mirou fundo nos olhos do outro, observando aquela porta aberta e convidativa fechando-se; a tal mão estendida afastando-se por fim. – Porque se eu não for, não sei mais o que fazer. Você pode ter descoberto quem é e o que pode se tornar com a minha ajuda. – Raed cuspiu a palavra “minha” em profundo desprezo. – Mas eu não.

A brisa soprou o silêncio e areia sobre eles, acostumados com essa sensação no corpo. Kadar ergueu o braço lentamente, sentindo o fino véu de pó lhe acariciar as mãos. Não escondia o vazio dentro de si, não escondia a estranha apatia que se apoderou de seu ser por não saber mais como reagir, o que fazer ou o que pensar.

– Tudo o que nós somos... – Balbuciou. – É pó ao vento. Tudo muda e não deixamos marcas.

Alguns minutos escorreram junto ao ar, percorrendo a atmosfera para nunca mais volver àquelas Ruínas sem vida.

– Kadar, eu... – Ele suspirou, puxando um item de seu cinto. – Eu não o deixarei desamparado. Aqui, tome o Cantil e jamais desperdice uma única gota. Leve Safir também, pois é sua chance de voltar em segurança.

O ex-comerciante notou seu peitoral subir e descer, respirando com força. Não conseguia acreditar que ele estava tão determinado a seguir com toda esta loucura. Antes que pudesse tentar dissuadi-lo mais uma vez, a conhecida névoa púrpura saiu de sua garrafa, falando com uma voz macia, amável.

– Kadar, eu o saúdo. – A fumaça aproximou-se. – És um mortal que tenho muita estima e assim como meu amo, não o abandonarei neste deserto só e sem recursos. Peço que leve algumas flores das Ruínas, pois elas servirão de Agulha no portal que abrirei. Não irá longe, já lhe aviso, no entanto irá à luz. Ficarás seguro.

Ele assentiu e em seguida agachou-se para juntar as diminutas flores alvas, e enquanto fazia isto, Raed desceu meio trôpego os sete degraus para puxar o cavalo negro pelas rédeas, que relinchou ao beirar tal território amaldiçoado. Esperou então até que seu amigo viesse ao seu encontro, onde entregou o seu precioso cantil.

Os céus trouxeram uma tempestade etérea de raios azuis e violetas, abrindo a realidade num largo vão por onde o aprendiz e seu cavalo atravessariam. O zunido, ecos e estilhaços vieram como da primeira vez.

Kadar não subira em sua montaria ainda e pôs-se a encarar o seu irmão.

– Eu não direi adeus. – Afirmou, sentindo alívio por gritar para ser ouvido através do barulho. Ele viu Raed sorrir ao responder:

– Nem eu.

Abraçaram-se. Foi breve, uma vez que Alethia ainda não se recuperara completamente do feitiço anterior e não podia sustentar o novo por muito tempo. Kadar logo subiu no cavalo e o fez trotar, virando uma miragem distante. E então, a porta aberta refletida em seu olhar fechou-se, e não com um estrondo. Foi uma batida leve, mas Raed ouvira o som agudo da tranca.

“Irmãos não dizem isso...” Pensou ele, engolindo em seco. “Que o acaso nos uma de novo.”

–••–••–••–••–••–••–••–••–••–••–••–••–••–••–••–••–••–••–••–••

Kadar se forçava a guiar Safir continuamente em frente, atravessando o túnel conjurado pela gênio, com as flores pálidas enroladas nas mãos, junto das rédeas. Tinha consciência do barulho intenso dos rasgos ástreos e o perigo dos efeitos colaterais do tempo, no entanto já não sentia medo. Não sentia nada.
Apenas cavalgava, controlando o impulso de olhar para trás e voltar. Desconhecia as implicações que tal ação teria caso de fato retornasse, e também não acreditava que fosse mudar toda a situação. Quando percebeu, a tempestade criada por Alethia se fora e ele estava sozinho no deserto dourado.

De novo.

Ele abriu as mãos lentamente, soltando o pó de aroma doce que as flores viraram de tão secas e envelhecidas pelo feitiço. Kadar observou suas palmas esvaziarem com o vento e sentiu seus olhos arderem.

Quando mais novo, pouco tempo após a Queda, costumava lembrar-se de Raed como alguém com quem pudesse conversar nos momentos de solidão, alguém que o escutasse atentamente, embora fosse mudo e invisível. Alguém que o ajudava das maneiras mais inconvenientes, mesmo não estando lá.

Um fantasma. Uma assombração de sua culpa. Um espírito.

E seu irmão.

Agora se questionava se estes dias que correram na viagem foram apenas fruto agridoce de sua imaginação alimentada com altas doses de folclore, um surto de loucura para aliviar-se da tensão de viver sob a sufocante vigilância de Tamir. Sempre fora sonhador, então não achava que faltava muito para a insanidade total.

Não se importou com o destino da cavalgada, pois talvez nem sobrevivesse até lá.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Correções e críticas construtivas são bem-vindas! Ah, vocês devem ter percebido que não escrevo mais "a gênia", pois a leitora Gabi Lords gentilmente me alertou que gênio é comum de dois gêneros, portanto escrevo agora "a gênio". Obrigada de novo, Lords!
E aí? O que acharam?
Alguém sacou a referência à Divina Comédia, de Dante Alighieri, na fala das luzes? "Ó, vós que entrais, abandonai toda a esperança..." O resto foi invenção minha haiehaie
Também teve uma ligeira referência à Caminho para Eldorado ~~ "Amigos nunca dizem adeus" e a frase "Tudo o que somos é pó ao vento" veio da frase de "Bill e Ted: Uma aventura Fantástica", um filme zoado dos anos 80, e também é refrão da música "Dust in the Wind", do Kansas. Ufa! Acho que as referências acabaram!
Beijos, e até a próxima



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Além das Dunas Brancas" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.