Além das Dunas Brancas escrita por Shalashaska


Capítulo 1
O Rapaz, a Velha e o Mapa


Notas iniciais do capítulo

É a minha primeira fic que postada, embora não seja o meu primeiro texto de fantasia. Estou criando coragem para compartilhá-los XD Espero que gostem!



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As diversas varetas de incenso de sândalo inflamavam mistério por todo o recinto, trazendo ás narinas do cliente todo o aconchego necessário para se sentir próximo ás artes antigas e deuses ancestrais. Á meia luz de um entardecer quente, o pó e a fumaça contra a luz opaca formavam uma atmosfera única, fingindo um jogo de sombras com a silhueta do jovem que acabara de adentrar. Seus passos mal ecoavam pelo ricos tapetes, e em seu silêncio, ele prestava atenção nos produtos e decorações dessa loja remota do mercado. Muitas garrafas de formatos e cores variados, assim como os livros cobertos de pó, tecidos e joias baratas. Quinquilharias ao olhar do inocente e do desavisado, mas ele sabia que muitos dos objetos ali se tratavam de magia: Feitiços brancos, de amizade, amor à si e à família. Feitiços poderosos de proteção e banimento. E feitiços negros, à moda do freguês.
Depois de localizar alguns itens de certo valor e descartar outros que a velha de certo ofereceria, mas que era inúteis, ele se aproximou mais depressa do balcão de madeira escura, quase coberto por papeis cheios de símbolos e desenhos da lua. Não demorou para que uma figura esbelta e de cabelos negros viesse sorrir para ele, mas logo ele a dispensou com certa rudeza. Estava sem tempo e sem paciência para lidar com aprendizes inexperientes, e ordenou que chamasse a anciã de uma vez. Era um negócio que ela, e somente ela, poderia tratar.

E com toda a certeza que o jovem poderia ter, ela aceitaria.

Por fim, a velha atravessou a cortina de miçangas cor de âmbar e veio ter com o rapaz grosseiro e imprudente. Ela, com todas as rugas e marcas que tinha sobre o corpo, estava tão furiosa pelo desacato que parecia ter envelhecido mais e, não bastasse a sua figura, cogitava em assustá-lo com palavras ásperas em seu dialeto. Homens covardes se apavoravam com a língua dos enigmas. De maneira teatral, ela puxou o manto preto do rosto e exibiu sua face torcida em cólera.

O jovem sorriu.

Com a postura despreocupada, ele também levou o seu capuz marrom para trás, exibindo um rosto novo e transbordando malícia infantil. Parecia ter sido honrado com todo o ouro do mais rico sultão, mas não era mais do que uma criança abandonada e arrogante. Ela ficou tentada em lhe rogar uma praga e manda-lo embora dali, porém havia uma tentação mais forte do que estes dois impulsos: o que ele teria vindo buscar nesse fim de mundo? Queria apenas lhe importunar?

– Se acalme, velha. – O riso dele se abriu como uma lua crescente no breu que aos poucos se instalava na loja. A aprendiz, ainda acanhada e rápida feito um rato, apressou-se em seguir as ordens de sua mestra, acendendo uma a uma, velas em torno deles. Não parava de lançar olhares assustados e receosos aos dois, buscando respostas silenciosas em sua mentora. Ao invés disso, recebeu uma piscada insinuante dele.

“Se elas querem me atrasar em joguinhos estúpidos, que assim seja.” Ele riu por causa da queimadura acidental da moça, tamanho fora seu espanto e distração.

– Farah, nos deixe. – A afirmação veio tão grave que a deixou petrificada. – Imediatamente.

A moça correu para dentro, atravessando a mesma cortina de miçangas pela qual a velha passara. Os dois não podiam ver, mas em seu pequeno quarto ela agarrou-se à seu amuleto e postou-se a orar às novas forças que aos poucos conhecia. Orou com tanta fé que lágrimas desciam pelas suas bochechas, lágrimas doloridas que clamavam pela proteção de sua nova casa. Não queria que nada de mal acontecesse a sua mestre, tão boa e firme como uma mãe poderia ser, mesmo que não fosse. Talvez significasse mais um de seus desesperos injustificados, talvez fosse apenas mais um dos clientes vingativos e inconvenientes. Mas por todas as estrelas no céu e toda a areia no deserto, ela sentia. Sentia não só em seu coração, e sim por todo o seu corpo que a idosa conversava não com um homem. Conversava com um demônio.

– É um assunto importante, pelo modo que a tratou. – Os dedos dela alcançaram as contas do colar, forçando-se a ser natural embora seu rosto e sua expressão não movessem um milímetro fora da carranca. Com um pouco mais de deboche nas artérias, ela obrigou-se a sorrir. – Procura uma especialista talvez? Proteção? Leituras de borra do café? Problemas com impotência? Diga-me o que quer.

Ele não se ofendeu, pelo contrário: inclinou-se mais para perto e apoiou-se com os cotovelos no balcão.

–Não vai me oferecer tâmaras? - O viajante achou uma graça a velha afrontá-lo, e ficou feliz por tudo sair como o planejado. Contudo, decidiu recuar as palavras pretensiosas e a zombaria. Pressioná-la muito faria o oposto do que queria. - Confesso que suas propostas são muito interessantes, mas não tenho tempo para isso. Hoje, - Endireitou-se e assumiu uma pose profissional e agradável - você é a cliente.

A anciã preferiu limitar suas palavras face à proposta ridícula e sua única resposta foi um riso curto e incrédulo. Junto disto, o ar entrou por uma das janelas e apagou algumas velas. Ela sabia que bom sinal aquilo não era.
O rapaz não estava mais sorrindo, e a velha desejou que estivesse mais próxima de sua adaga.

– Eu vim aqui no horário de menor movimento para que faças pouco caso de minhas palavras? Não, é claro que não.

– Diga-me o que quer. – Ela repetiu. Tinha consciência de que o anoitecer esvaziara quase por completo o bazar, e gritar não traria ninguém até lá. Gritos no meio da noite geralmente não atraem ajuda, só deixam os outros mais alertas para não serem as próximas vítimas.

– Não é o que eu quero, é o que você quer, Aziz. – Os olhos da velha arregalaram-se em meio as rugas de sua pele cor de bronze. Ele sabia seu nome. Ele sabia seu nome verdadeiro. “Aziz” ainda ecoava em seus ouvidos, mas ele não tinha terminado.

De uma tira de couro escuro, cheia de bolsos e atravessada ao seu corpo, o jovem retirou uma pequena esfera feita de um fino vidro transparente. Dentro, jazia uma flor que outrora fora branca e cheia de perfume, e mesmo agora, seca e amarelada, fascinava os olhos quase cegos da velha. Firme, no entanto delicado, ele colocou o globo bem a frente do nariz dela, mas não deixou-a tocar.

– Não tão rápido minha senhora. Negócios devem ser tratados com muita cautela, como você bem sabe.

Nunca permitira-se demonstrar emoções muito fortes; construíra uma personalidade e uma fama duras feito rochas do desfiladeiro e, apesar de tudo isso, não se aguentou: sua boca abrira-se em surpresa e deslumbre, ainda que suas veias gastas bombeassem espanto e medo. Se não enxergasse com seus próprios olhos, olhos que já viram de tudo, duvidaria que a Flor das Nove Pétalas fosse real. Se abria como uma torrente violenta de água brotando do chão, suas pontas guardavam a suavidade das espumas do longínquo mar e do seu miolo, pequenas hastes exibiam pólen prateado. De todas as suas fantásticas características, porém, a mais impressionante era o tom furta-cor que refletia a cálida luz das velas.

A tentação era tanta que demorou mais do que breves minutos para ela saísse de seu transe e se lembrasse de outras questões importantes. Balbuciando, perguntou:

– Como sabe meu nome?

Ele piscou com ternura.

–Eu poderia ser um pouco mais rude e lhe dizer para adivinhar nas borras do café, mas serei franco com você. – O jovem se afastou suspirando, enquanto lançava mais um rápido olhar sobre o resto da loja. Talvez tivesse mais algo que lhe chamasse a atenção ou que fosse necessário no futuro. – É difícil não ouvir o seu nome, Aziz, e bem pode suspeitar que viajei bastante.

A mentira gelou o pobre coração da velha, quase o descompassando o ritmo. Sua respiração ficou forçada, e ela se culpou pela própria velhice e pela própria vulnerabilidade. Ele, por sua vez, não sentia pena da figura pequena e amassada feito uma fruta seca. Tinha que ser do jeito que era para conseguir o que desejava.

– Não possuo nada que compre a Flor, à menos que leve a minha loja inteira e minha vida. – Confessou, mesmo ardendo de ansiedade pôr ter em mãos a esfera de vidro.

Era uma oportunidade única: a Flor das Nove Pétalas tinha propriedades além da compreensão, e seus poderes eram mencionados apenas em lendas dos antigos. Dizia-se que era capaz de trazer os mortos de volta dos portões do submundo; que renovava a pele como se décadas regressassem na ampulheta da vida, e principalmente: que somente três de todas as pétalas realizavam quaisquer desejos. Bastava descobrir as pétalas certas.

– Dona, eu não me vejo como um mercador e muito menos sou um assassino. Não quero suas coisas ou a sua vida.

–Então não tenho nada a lhe oferecer. – Sibilou antes que fosse tarde demais e aceitasse aquele acordo maldito. Embora a Flor pudesse inundar o mundo de maravilhas, ela também era banhada em sangue. Muitas mortes e perigos a acompanhavam e Aziz já tinha a sua cota de maldades cheia.

Caso uma garrafa antiga não estivesse devidamente amarrada em uma bolsa de couro em sua cintura, o jovem teria aceitado a resposta da velha e ido encontrar o seu caminho junto ao vento noturno. Mas, a garrafa decorada com arabescos de ouro fosco estava ali, e seu vidro denso e púrpura esquentou até que ele sentisse arder na pele.
Era um sinal, um sinal de que Aziz também era afiada para mentir.

Ele passou a língua pelos lábios e tentou ser o mais paciente o possível:

– Eu não gosto quando tentam me enganar, Aziz. – Toda vez que repetia seu nome, a velha tremia e ele sabia disso. – Você tem sim algo que me interessa. Aliás, duas coisas para ser mais específico. Eu quero o Cantil Infindável.

O pedido era insolente e fácil de corromper a velha. Ela se remoeu por dentro e por fora, espremeu seus lábios murchos em desgosto, mas por fim ordenou que Farah lhe trouxesse “o” baú. A aprendiz veio com os olhos ainda vermelhos, e por mais que Aziz se condoesse de ternura, teve vergonha por ela não ser mais forte. A moça apoiou o objeto na bancada e deixou o aposento sem precisar de um único sinal de sua mestra.
A fechadura da arca, assim como sua dona, estava corroída pelo tempo e ambas guardavam magia e sabedoria através de sua casca. Com somente um toque das unhas compridas de Aziz, o baú se abriu, revelando papéis amarelados, vidros pequenos, ervas e outros tesouros, dentre eles, um pequeno cantil com desenhos em prata.

– Aqui. – Ela pegou o objeto com suas mãos naturalmente trêmulas e colocou-o com muito cuidado nas mãos do rapaz. – Não é o cantil que é enfeitiçado, é a água. Lembre-se de tomar até a última gota, caso o contrário a água tornará-se comum novamente e você morrerá de sede.

Ele assentiu com a cabeça de maneira distraída e desinteressada, colocando o cantil perto da luz para examiná-lo melhor. Gostava do que via, pois a aparência era simples e gasta o suficiente para que ninguém puxasse encrenca para roubá-lo; mas ainda guardava uma certa aura de poder. O jovem sabia das regras para beber desta água encantada, afinal, não conseguira informações de seu paradeiro do nada e sim de algumas conversas de outros e alguns mercadores. Dizia-se que havia uma senhora capaz de tornar a água eterna, porém que só o fazia com algo em troca de algo equivalente.

E um viajante bem sabe como uma gota d’água pode ser valiosa.

O rapaz sorriu e colocou o cantil em sua cintura, do lado oposto à garrafa púrpura, consciente do olhar pesado da velha sobre si. Ela só podia supor o que aquele pequeno diabo estava tramando, e apenas por lhe trazer a Flor e pedir o Cantil, sabia que nada de bom podia sair dali. Tinha um pressentimento sobre ele.

– Agora, Aziz... vem o meu segundo item, e se você ficar bem quietinha sobre ele para as outras pessoas, pode até levar um outro presente meu. – De maneira planejada, ele retirou um pacote de veludo negro de seu cinto, balançando-o de como alguém sacode carne na frente de um cão, tentando-o. Se a anciã fosse mesmo uma cadela e o veludo um aperitivo, já estaria salivando. – Ouvi que está procurando uma pedra de jade.

Ela quis manter o mínimo de dignidade, contudo compreendia que aos poucos daria tudo o que o homem queria, até mesmo Farah se este a desejasse. Ele tinha a Flor, e só isto lhe atiçava todas as fraquezas e vícios que um humano pode ter.

Aziz teve vergonha de si.

– Não uma jade qualquer.

– Não, é claro que não. Você não é uma senhora de coisas quaisquer. Você é uma senhora de artefatos únicos, especiais. Foi por isso que vim aqui. E é por isso... – Ele pegou o veludo pela base e o agitou para que o que quer que estivesse dentro rolasse para fora. -... Que acho que aceitará a Jade Negra.

Desde seus quinze anos, quando suas visões afloraram e seus poderes ficaram nitidamente mais fortes, Aziz ansiava por uma jade negra. Era rara, encontrada somente de vez em quando no extremo Oriente, e nunca chegava até as terras áridas onde morava. Com ela, seus dons da necromancia se fortaleceriam e ela poderia não só escutar, como falar, enxergar e interagir com os mortos. Nunca pensou que realmente chegaria a encontrar a Jade. Agora que a própria Morte lhe queria, a joia era esfregada em seu rosto.

– Aqui. – Ela pegou o baú e o empurrou na direção dele. – Leve tudo.

Mas ele franziu a testa e o empurrou de volta para a velha.

– Minha nossa, Aziz. Não sou um camelo para ficar zanzando pra cima e pra baixo com um baú nas costas. Nem sei se o que tem aí me serve! – O rapaz balançou a cabeça, afastando tal ideia ridícula de si, e por fim voltou seus olhos para a mestra. – Eu quero um pedaço de mapa. Eu quero saber o que tem além das Dunas Brancas.

Aziz não soube distinguir se era fruto de sua mente ou se o cômodo realmente escurecera. Por um momento, ela não sentiu nada, não pensou em nada, nem mesmo ouviu os sussurros dos mortos que estavam sempre a fazer barulho. Ela estava vazia. E enquanto processava o que estava acontecendo, ele observou desconfiado a velha que dera um salto para trás,num encontro violento com a estante. “Mulher maluca”, pensou.

– Você não sobreviverá. – Sua voz rouca saiu da garganta igual a um oráculo apodrecido, embora suas íris escuras brilhassem em puro espanto. Temia pela vida dele, mesmo que fosse rude e presunçoso, pois parecia-lhe ainda uma criança mimada.

A garrafa púrpura amornou-se na cintura dele. Aziz então não estava mentindo, mas também não lhe contara a verdade inteira.

– Pegue de volta sua Flor e a jade. Aqui, pegue e vá embora. – Ela empurrou os pequenos pacotes para longe de si, em cima do balcão, afastando o mau agouro que traziam. – Não serei responsável pelo fim da sua vida. Não quero mais um espírito para me atormentar. Pegue logo as suas coisas e suma daqui, procure a morte em outro lado.

– Não me venha ter moral agora, velha. – Com isso, ele conseguiu a atenção dela, que congelara no mesmo instante. – Você sabe onde essa Flor cresce, sabe que passei o diabo para colhê-la e vivi para contar história, mas não viu problema em aceitá-la. Não estou pedindo comiseração sua, quero o mapa. E algo me diz que você conhece as Dunas Brancas.

A mentora de Farah suspirou exasperada. O rapaz estava certo: ela não era uma pessoa atrelada à ética, nunca fora. Por mais que desejasse fazer o melhor para reparar seus erros, não resistiu mais. Puxou a esfera de vidro e a pedra negra para si e virou-se para a estante. No canto mais empoeirado e esquecido, com diversos pergaminhos amontoados, ela tirou um rolo curto e puído.

– Não sei o que procura nas Dunas, mas a decisão suicida é sua, não minha. – Ela estendeu o pergaminho. – Você está entrando num terreno perigoso, rapaz. Caso saia inteiro de lá, volte para a minha loja para acertar a sua cabeça. Ela provavelmente estará uma sopa.

– Deixe de ser uma ave agourenta, Aziz. – Disse ele, guardando o pergaminho. – Mais alguma recomendação agradável? Útil também, de preferência.

– Não. O máximo que há desenhado nesse mapa é um marco de ruínas; a metade do caminho. Ninguém voltou depois disso, e você ficará por conta própria.

Ele ficou atento ao mínimo calor na garrafa na cintura, no entanto ela permaneceu com sua temperatura usual.

– Bem, então será como todas as minhas outras andanças. – Respondeu com descaso, e então ele próprio fechou o baú velho e lançou um último sorriso à Aziz. – Eu sabia que você poderia me ajudar, e eu agradeço a colaboração. Adeus, Aziz. – Então falou mais alto, virando-se para a cortina de miçangas. - Adeus Farah!

O jovem deu as costas para a anciã e rumou até a saída. No caminho, pegou um tecido dobrado, um pacote de chás e um conjunto de incensos e velas. Coisa pouca e sem peso, para sua próxima viagem. A mestra não protestou e permitiria que pegasse mais, sabendo que só aquilo não o traria de volta. Ela o analisou com pena até que saísse, para então virar-se para dentro com seus novos artefatos. Chamou Farah, e as duas puseram-se a limpar as energias negativas da loja. Secretamente, Aziz orou pela alma dele.


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Notas finais do capítulo

Gostaram?Por favor, reviews com suas opiniões, leitores lindos! Me corrijam, caso haja algum erro de ortografia - sou péssima para pontuar crase - e não se acanhem!♥