Dois Quartos de Vinho escrita por Ninguém


Capítulo 47
Passava das duas da manhã


Notas iniciais do capítulo

Olá, querido leitor. Seja bem vindo! Puxe uma cadeira ou deite no sofá, tome um chá ou coma uma pipoca. Enfim, sinta-se a vontade e tenha uma ótima leitura.



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Passava das duas da manhã quando o uber de Elídio estacionou em frente a sua casa, o motorista o ajudou com a mala e seguiu para a próxima corrida, deixando o homem sozinho na rua fria, deserta e escura. Voltava do fim de semana em Goiânia e, por mais cansativo que fosse, optou, junto ao grupo, pelo retorno de madrugada para aproveitarem o feriado da segunda-feira. Conhecido como o inimigo do fim, o Barbixa não dispensava nenhuma oportunidade de beber e dançar, por isso convidou os amigos para um churrasco em sua casa com horário de início, mas sem vislumbre algum do final. Já conseguia ouvir o barulho da carne na brasa e o som do pagode no máximo, mas naquele momento a única coisa que queria era dormir.

Acordou pouco depois das dez, escolheu sua melhor playlist de pagode, limpou a casa, lavou a louça, comprou fardos da melhor cerveja e tirou as carnes do freezer. Já estava na terceira latinha quando terminou de se vestir e arrumar o cabelo. Estava mexendo na churrasqueira quando Marco chegou, os dois se cumprimentaram com um abraço forte e seguiram para a cozinha, dançando no ritmo da música que tocava.

— Trouxe o kit completo pra caipirinha perfeita - Marco colocou as sacolas sobre a pia e de dentro tirou cinco garrafas de cachaça e inúmeros limões - Cadê todo mundo?

— Daqui a pouco eles chegam, mas com esse tanto de cachaça acho que ninguém sai dessa casa hoje. - os dois riram juntos enquanto guardavam as garrafas na geladeira – Vem, me ajuda com a churrasqueira.

Logo todos os convidados chegaram, cada um trazendo um prato, e a resenha estava formada nos fundos da casa, para aproveitar o sol da primavera paulista. O céu tinha poucas e disformes nuvens brancas, o vento oscilava e a temperatura subia a cada hora. Espalhadas pelo quintal havia mesas, cadeiras e redes, todas orlando a piscina de azulejos azuis. O quintal de Elídio era seu espaço favorito da casa, passava horas ali sempre que precisava tomar decisões difíceis, refletir sobre a vida, comemorar conquistas e afogar suas mágoas, e receber os amigos naquele local sempre aquecia seu coração.

 

As latinhas e copos vazios iam se acumulando pelas mesas, a segunda leva de carnes estava prestes a ficar pronta e os cinzeiros passavam de mão em mão. Amigos há anos, todos aproveitavam a segunda-feira incomum.

O celular do dono da casa tocou, ele limpou as mãos no pano de prato para pegá-lo e abriu um grande sorriso.

— A mulher mais bonita e sortuda desse país acabou de chegar.

— A mais sortuda do país é exagero, no máximo, forçando muito, a mais sortuda aqui desse bairro e olhe lá - Bella fez todos gargalharem.

— Eu abro pra ela, pode continuar ai - Daniel fez sinal para que o amigo não se afastasse da churrasqueira - aproveito e tento livrar essa pobre coitada do azar que é namorar você.

 

Lia havia dormido mal, acordou cedo, tomou uma grande caneca de café e pôs-se a trabalhar em sua parte do TCC. Queria poder aproveitar a folga para dormir até tarde, mas tinha pouco mais de um mês para se formar e nada podia dar errado. Por volta das 14hrs, desligou o notebook e foi até o quarto da melhor amiga.

— Quer ir num churrasco na casa do Lico? - deitou na cama enquanto a loira fazia as unhas na penteadeira.

A raiz do cabelo de Aline estava grande, seus olhos fundos e há dias sentia uma tímida gastrite chegando. Os últimos meses também foram caóticos para ela, no início de 2020 decidiu que terminaria a faculdade naquele ano, pois já deveria estar formada, e para isso encheu sua grade de tantas matérias que mal tinha tempo para dormir e comer. Em meio a correria do segundo semestre, foi obrigada a abdicar de qualquer autocuidado e aquele foi o primeiro momento em que conseguiu parar para fazer algo tão banal quanto pintar as unhas.

— Você só pode ser minha fada madrinha que chegou pra me livrar do feriado mais sem sal da história.

Lia mexeu uma das mãos como se manuseasse uma varinha de condão.

Com as duas em período de entregas finais, mal paravam em casa e pouco se viam. Quando estavam no apartamento, passavam o dia trancadas em seus quartos fazendo trabalhos, sentiriam como se morassem sozinhas, se não fosse pela presença de Rumpel. Essa seria a primeira oportunidade em muito tempo de saírem juntas e relaxarem.

— Quem vai tá lá?

— A cúpula do improviso, certamente.

— Não tenho nem roupa pra um evento desse. Na casa do Elídio ainda por cima?! Já to nervosa.

— Compreensível, no início eu sentia minhas mãos suarem e as pernas ficarem fracas, mas relaxa, eles são super tranquilos. Saímos em uma hora, beleza?

Tentaram estacionar em frente a casa, mas a calçada estava repleta de carros de diversas marcas e cores, deram a volta no quarteirão e foram a pé até o portão de entrada. Aline se mostrava nervosa e agitada, a situação podia ter se naturalizado para a amiga, mas ela sempre acharia estranho sentar à mesa e conversar bobagens com artistas. Ainda pensava nisso quando Daniel Nascimento abriu a porta e seguiu em sua direção, ela arregalou os olhos e paralisou.

— Tenho a impressão que já tivemos essa conversa, mas insisto em dizer que não sou tão feio assim. - ele abriu o portão e abraçou as duas - Achei que não viriam mais.

Passaram alguns minutos conversando na calçada até que entraram. Era a primeira vez que a estudante de gastronomia visitava a casa de Elídio e ela não parecia nem um pouco com o que havia imaginado, estranhou a falta de cores e o excesso de organização, mas assim que chegaram ao quintal se surpreendeu com o tamanho do espaço, com a piscina e a churrasqueira de tijolos.

Foram recepcionadas com uma salva de palmas e gritos do público, como se fossem celebridades, Daniel, que estava junto das meninas, respondeu com um “Ai gente para” fingindo vergonha. Lia apresentou a amiga para todos os presentes e a deixou em meio aos humoristas, indo em direção ao namorado.

— Uau! Um homem sem camisa e de avental, eu devo estar no paraíso - ela o abraçou por trás e beijou seu ombro.

— Gostou? Me arrumei especialmente pra você - Ele se virou para beijá-la.

Passaram horas intercalando entre conversas, bebidas, churrasco e risadas. Aline nunca sentirá sua barriga e maxilar doerem tanto, mal se recuperava de uma piada e em seguida ouvia outra, sentia como se estivesse assistindo a um show de improviso particular, tentava ingressar na conversa mas lhe faltava fôlego. Viu quando a amiga se levantou e entrou na casa, mas estava ocupada demais se contorcendo na grama do jardim.

Deitada no sofá, Lia olhava para o teto da sala com as mãos sobre a testa, passou minutos em silêncio imersa em pensamentos até que Daniel se aproximou e deitou ao seu lado.

— Nossa que alto astral e energia contagiante eu to sentindo aqui.

— Gostou? Essa é a aura de uma universitária a ponto de se formar que não sabe o que fazer.

— Hum… qual o problema exatamente?

— Algo me diz que esse é o momento definitivo pra decidir o que quero da vida, mas quanto mais penso nisso menos certeza tenho do que fazer.

— Certo. Acho que posso te ajudar, vamos fazer um De frente com Gabi - a jovem riu imediatamente – O que? Só não espere pela voz da Marilia, essa eu não sei imitar - ela não parava de rir, mas afirmou com a cabeça - Muito bem, vamos lá. Eu vou fazer umas perguntas e você responde com a primeira coisa que vier na cabeça.

Eles não se olhavam, seus olhares se perdiam pelo teto como se vissem as estrelas.

— Você quer ser advogada?

— Não.

— Quer trabalhar num escritório e ganhar muito?

— Também não.

— O que quer fazer ano que vem?

— Pedir demissão, voltar a estudar atuação e entrar num grupo teatral.

— O que te impede de fazer isso?

— Bom, pra começar eu sou pobre - deu uma risada desafinada - não posso largar meu emprego do nada.

— Perfeito! Tudo resolvido.

— Como assim resolvido?

— Você quer sair do emprego, mas pra isso precisa de um segurança financeira. Estipula quanto você precisa e quanto tempo vai ter pra juntar, enquanto isso é só voltar pras aulas de teatro, mas sugiro que foque em algo específico, atuar você já sabe. Se quiser, posso te passar alguns contatos.

— Simples assim? Eu largo a única coisa que me traz segurança e me jogo num futuro totalmente incerto com grandes chances de dar errado?

Ele se virou para olhá-la nos olhos.

— Teve um momento lá atrás em que eu tive que escolher entre um trabalho de carteira assinada e um espetáculo sem roteiro com dois caras que conheci no colégio. Foi assim que cheguei aqui. Pode ser sua única chance.

— O pior é que no fundo eu sei disso, só não sei se to pronta.

— O princípio básico do improviso é a Arte do Sim, o Ballas frisa muito isso, os improvisadores têm sempre que abraçar o que o outro propor sem saber se vai dar certo. É clichê, mas gosto de levar pra vida. Vamos fazer o seguinte: apresenta seu TCC, termina sua faculdade e tira umas férias, ano que vem a gente volta a conversar.

— Honestamente eu não sei porque você é sempre tão incrível comigo, mas obrigada.

Eles se abraçaram em silêncio, pouco tempo depois Marco entrou na cozinha para fazer mais uma caipirinha.

— Dani, cê me dá uma licença, por favor? Tenho uma pendência pra resolver.

Ela se levantou e foi em direção a cozinha, parando quando chegou ao balcão. Talvez fosse o nível de álcool em seu sangue ou a conversa encorajadora com o Daniel, só sabia que assim que viu Marco sentiu um grande impulso para falar com ele e dessa vez não deixaria a oportunidade passar.

— Podemos conversar, Senhor Marco Gonçalves?

— É.. sim? Quer dizer, sim, claro! Sobre o que? - foi pego de surpresa e estava nitidamente desconfortável.

— Você sabe sobre o que é e vou ser o mais clara e direta possível. Quero entender o que te dá o direito de me tratar mal e ficar estranho comigo sem que eu tenha feito nada pra você. Quer dizer, eu não lembro de ter sido filha da puta contigo, não lembro de ter te reduzido a qualquer coisa ou qualquer um, diferente de você. Não nego que houve sim um flerte inicial e certo interesse da minha parte, mas nem cheguei perto de algo que pudesse ser interpretado como manipulação.

Essa era a primeira conversa verdadeira que tinham desde a quarta-feira em que ela foi assisti-lo meses atrás.

— Lia, eu peço desculpas pelo meu comportamento, fui infantil e mesquinho descontando em você frustrações que não eram sua culpa. Acho que naquele momento me deixei levar e acabei sendo piegas e egoísta demais, sei que fui injusto.

— Olha, não sei o que viu em mim pra mexer tanto contigo, mas seja lá o que for, em que mundo o melhor a se fazer é desaparecer sem dizer nada e depois surgir sendo um completo cuzão?

— Eu fiz o que eu e o Lico acordamos.

— O que? Como é que é? - sua voz estava exaltada, se não fosse a música alta no quintal todos ouviriam – Então os dois entraram num acordo do que fazer comigo?

— Não, não é isso. Eu segui seu conselho do parque, fui até a casa do Lico e contei tudo pra ele, disse que deixaria o caminho livre pra vocês e… achei melhor me afastar pra não alimentar falsas esperanças.

— E agora? O que sente por mim?

— Eu… nada, você é namorada do meu amigo e, de verdade, fico muito feliz pelos dois.

— E você acha que algum dia vamos conseguir ficar perto um do outro sem esse clima estranho? Acha que ainda podemos ser amigos?

— Espera, você quer ser minha amiga? - ele franziu o cenho e inclinou a cabeça para o lado.

— Claro! Que pergunta.

— Sei lá, achei que você me detestasse.

— Confesso que é uma situação bem estranha pra mim, mas você é um dos melhores amigos do Elídio e eu acompanho e gosto do seu trabalho há muitos anos. Acho que vale o esforço pra que isso não estrague nosso convívio. O que acha? Podemos decretar o fim de desaparecimentos repentinos e distanciamentos desnecessários? - perguntou estendendo a mão.

— Você é incrível mesmo - Marco apertou sua mão enquanto sorria.

— Marcão, cadê essa caipirinha que não sa.. - Elídio entrou na cozinha no momento em que estavam terminando um abraço de reconciliação – tô atrapalhando?

— Não, relaxa. Eu já tava levando, vou deixar lá na mesa - o gaúcho saiu rapidamente.

— Tá tudo bem? - Elídio perguntou se aproximando da namorada.

— Sim, ele só tava me contando sobre os acordos que vocês costumam fazer.

O homem empalideceu no mesmo momento, arregalou os olhos e pressionou os lábios.

— Lia, olha, eu sei…

— Não precisa se dar ao trabalho - retrucou interrompendo a fala do outro -, não estou brava. Não ligo pras coisas que disse ou fez antes de estarmos juntos, garanto que fiz coisas bem piores - concluiu a frase dando um beijo no namorado e seguindo para o quintal, deixando ele ali sozinho e chocado.

 

Já era noite quando os últimos convidados foram embora, restando na casa apenas o casal e a bagunça que teriam que arrumar. Organizaram o quintal sem parar de beber e dançar, estavam tão ébrios que quase caíram na piscina inúmeras vezes. Quando terminaram, ele a puxou para dançarem juntos, mas a dança não durou muito, Lia acabou por enroscar seus pés com o do namorado e os dois foram ao chão rindo.

— Olha, você é boa em muitas coisas, meu amor, mas dançar definitivamente não é uma delas - ele a abraçou e beijou seu rosto enquanto ela ria.

— Senti falta do Andy hoje, por que ele não veio?

— Levou a Julia pra um parque aquático. Aparentemente a filha é mais importante que os amigos. Onde já se viu uma coisa dessas? - fingiu indignação.

Passaram alguns minutos em silêncio olhando o céu.

— Não tinha reparado como seu quintal é bonito. Você tem uma vista linda das estrelas, se eu pudesse dormiria olhando pro céu.

— Podemos fazer isso hoje.

— Como assim?

— A gente desce o colchão e o cobertor e dorme aqui, só espero que não chova. O que acha?

O primeiro impulso da jovem seria rir e recusar a oferta, mas lembrou de Daniel falando sobre a arte do sim e resolveu se tornar uma adepta naquele momento.

— Acho que vai ser perfeito.

Com certa dificuldade, desceram o colchão, os travesseiros e uma coberta, organizaram a nova cama no jardim e deitaram em frente a piscina.

— Quando você soube que estava apaixonado por mim?

— Eu diria que tive certeza no dia que acordei sozinho num prédio abandonado e fui incapaz de ficar bravo contigo. E você?

— Por volta de cinco anos atrás mais ou menos.

— Essa conta não vale, a gente não se conhecia naquela época.

— Bom, teoricamente eu já te conhecia, sim. Talvez pareça estranho pra você, mas sabia o suficiente pra me apaixonar naquela época, os últimos meses serviram apenas pra validar o que já sentia.

— É engraçado como a vida funciona. Nós nos encontramos tantas vezes no mesmo lugar, mas só agora estamos aqui, é como se não pudesse ter acontecido antes e nem depois.

Lia não era de acreditar em destino ou predestinação, mas naquele momento, deitada no jardim de Elídio admirando o céu, foi tomada por um pensamento que surgiu nas últimas semanas. Talvez a fatídica primeira quinta feira de março não fora para colocar ele em seu caminho, mas sim Daniel, e se soubesse o que 2021 lhe guardava, sua dúvida se tornaria uma certeza.


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Notas finais do capítulo

Agradeço a todos que estão acompanhando o retorno da DQDV!

Abraços e até o próximo capítulo!



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