Dois Quartos de Vinho escrita por Ninguém


Capítulo 40
Outono, época de meia estação


Notas iniciais do capítulo

Olá, querido leitor. Seja bem vindo! Puxe uma cadeira ou deite no sofá, tome um chá ou coma uma pipoca. Enfim, sinta-se a vontade e tenha uma ótima leitura.



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Outono, época de meia estação. Do alto, apreciavam a amarga beleza da queda das folhas e do clima cinza. Enquanto conversavam na sacada do apartamento, o vento matinal fazia dançar os pijamas de algodão das duas.

— Não consigo entender como existem pessoas que não amam o outono, é uma estação tão linda - Aline segurava uma xícara de chá, os curtos cabelos claros dançavam junto a seu pijama.

— Talvez, elas se sintam mal por verem seu interior refletido perante seus olhos. Pessoas de alma cinza - com a pele arrepiada e uma caneca com um pouco de café nas mãos, Lia fitava o horizonte.

— Vi a foto que o Daniel postou com você. Leu os comentário?

— Achei melhor não...

— As sannaticas não ficaram nada felizes de ver o Elídio abraçado com uma mulher. Inclusive já estão falando sobre o possível namoro dos dois, algumas até falaram da foto dele na balada com a "morena misteriosa do macacão vermelho".

— Ah, se elas soubessem a verdade... algumas meninas me mandaram mensagens perguntando se era eu na foto.

— E o que respondeu?

— Na verdade, não respondi.

— Boatos correm, logo chegaram até você.

— Que cheguem com a certeza da verdade, então. Não quero que me apedrejem sem eu ter nada com ele.

— Ele é famoso, Lia, não tem como terem alguma coisa sem ninguém saber.

— O problema é que não temos nada.

A outra não disse nada, não acreditava que sua amiga, sempre tão esperta, não percebia o que estava bem na sua frente, nos seus olhos. Por que negar a existência de algo tão lindo quanto o que nascera nos últimos meses. Não era capaz de entender o medo que a amiga tinha de amar.

— Hoje vamos num barzinho na Augusta - a morena comentou virando-se para a amiga.

— Só os dois?

— Não, alguns amigos dele vão, humoristas. - demorou alguns segundos para continuar - O Marco vai.

— Ih...

Ela havia contado sobre a noite do aniversário de Sanna, sobre a conversa que teve com o moreno e as palavras que disse ao propor o brinde. Lamentou tudo aquilo surpresa, justo aquele com o qual não tinha tentado nada queria tudo.

— Ele disse que o Elídio só queria me comer. Bem, não foi exatamente com essas palavras, mas disse.

— Pois então ele errou. Se fosse verdade já era pra ele ter caído fora, não acha?

— Não me permito achar mais nada.

— E o que você vai fazer?

— Eu? Vou fingir não saber de nada. Se ele não foi homem suficiente pra chegar em mim e contar tudo, então não me merece.

— Então vai continuar convivendo com ele como se não tivesse acontecido nada, mesmo sabendo que ele ainda gosta de você?

— Exato!

— Você é má!

— Mas, posso ser pior - retrucou com um sorriso malicioso.

 

A tarde no escritório passou rápido, ela conseguiu concluir todas as tarefas que estavam pendentes e se sentiu aliviada por perceber que teria o fim de semana livre.

Tudo correria como o planejado, se seu metrô não tivesse quebrado no meio do caminho, fazendo-a esperar mais 40 minutos pelo próximo, igualmente lotado.

Quando chegou em seu prédio, se deparou com Elídio Sanna logo a frente, apoiado em seu carro. Ele usava uma camiseta branca e um jeans claro, seu cabelo estava como de costume e sua barba por fazer.

— Onde estava? - ele perguntou assim que a viu - Faz tempo que tô tentando te ligar e você não atende, já ia embora.

— Só tive um imprevisto, nada demais. Vamos? - ela perguntou apontando para a portaria.

— Subir?

— Descer não dá, né?! - respondeu rindo e puxou ele porta adentro.

Pegaram o elevador juntos à uma mulher. Ela aparentava aproximadamente 30 anos de idade, seus cabelos eram longos e castanhos, usava um grande óculos de sol e tinha as mãos cheias de sacolas. Não desviou os olhos de Elídio nem por um segundo sequer, ato que não passou despercebido pela jovem abraçada ao humorista. Não sabia se ela o reconheceu ou se só estava tentando um flerte, mas de qualquer forma não gostou do que viu.

— Quer alguma coisa? - ela perguntou depois que entraram.

— Não, tô bem. Obrigado.

— Tá, eu vou tomar banho. Pode ficar no meu quarto se quiser.

Quando voltou do banheiro, Elídio a aguardava sentado em sua cama. Ela mexeu em seu guarda roupa até encontrar o que vestir e estão deixou a toalha cair no chão. Assim que percebeu, o homem engasgou com sua própria saliva e começou a tossir.

— Tá tudo bem?

— Sim... sim... - respondeu em meio a tosse - quer que eu espere na sala?

— Por quê?

Ele a encarou por um momento, sem graça.

— Ai Elídio por favor, né? Já me viu sem nada antes, qual o problema de ver agora? - retrucou, virando-se novamente para o guarda roupa.

O homem sorriu. Ficava admirado com a praticidade com a qual levava a vida, com a confiança que tinha em si mesma, seu amor próprio. Se vista de longe, sua autoconfiança poderia ser, facilmente, confundida com soberba.

Elídio ficou de escanteio, quieto, assistindo aos espontâneos e delicados movimentos da morena. Admirando as sutis ondas de seus cabelos balançando, sentiu inveja da lingerie que, ao contrário dele, estava tão agarrada a seu corpo e com um sorriso bobo nos lábios, mal percebeu que ela o encarava.

— Tá tudo bem? - ela perguntou rindo.

— Você é linda, sabia?

A outra sorriu, envergonhada.

O humorista, ainda sentado, puxou-a para seu colo. Respirações quentes, corpos rentes, olhos fixos um ao outro, bocas tremulas, milimetricamente separadas.

— Não digo assim só por fora. Claro, você tem um corpo maravilhoso e um sorriso que me enfeitiçou assim que te vi, mas não é só isso. Seu jeito, sua voz, o modo com que você anda e me olha... não entendo Lia, não entendo. Só sei que...

Ficou quieto. Com a ponta dos dedos, pegou as primeiras mechas dos cabelos da outra e as colocou atrás de suas orelhas, descansou a cabeça entre seu pescoço e ombro para poder sentir seu doce perfume. Ficou assim por alguns segundos.

— Que..?

— Que você me enlouquece cada vez mais.

Quando chegaram ao bar, todos já estavam sentados na mesa reservada. Nela estavam: Marco Gonçalves, Andrei Moscheto, Eduardo Nunes, Anderson Bizzocchi e Guilherme Tomé. Cumprimentaram todos e se juntaram a eles.

— Uau, como você tá bonita Lia - Tomé observou com sua simpatia natural.

— Sempre está - Elídio completou, deixando-a sem graça. Ela sorriu e agradeceu.

— Achei que tinham desistido de vir - Andrei se dirigiu a Elídio.

— E por que desistiríamos? - o outro perguntou.

— Talvez tivessem achado algo melhor para fazer a sós - Marco intrometeu-se no dialogo como quem não queria nada, mas todos ali sabiam onde queria chegar.

— Isso a gente faz mais tarde - a única mulher à mesa retrucou rapidamente.

Pela expressão que carregava, Elídio pareceu surpreso com as palavras da jovem, mas, assim como os demais, entendeu o recado. Percebeu quão incomodo era a chegada deles para Marco e lamentou pelo amigo, que ainda trazia o rancor consigo.

O que quer que significasse as grosserias do homem, Lia não pretendia escutar calada. Não entendia o porque de tal revolta só agora, mas nada justificava ser destratada por tal.

Uma hora depois, a barriga da jovem doía, mas ela não foi capaz de saber se era de fome ou de tanto rir de todos à mesa. Mal falou, o único som que vinha dela era de suas altas risadas, acompanhadas de bochechas vermelhas.

Ela não percebeu, porém estava sendo observada. Elídio Sanna não prestava atenção dos amigos, não sabia do assunto falado e nem do motivo da diversão da mulher a sua frente, fazia tempo que lançava olhares para ela.

Em um desses momentos ela se virou e puderam trocar olhares. Sorriu e voltou a prestar atenção no que diziam, mas achando graça voltou a olhar para Elídio que ainda a encarava e sorriu envergonhada. O que queria ele com aquele olhar intimidador?

Sussurrou um tímido "O que quer?" sem que ninguém, além dele, percebesse e obteve como resposta, também como sussurro "Você", seguido de um sorriso. Sorriu de volta e, imitando belas personagens de Hollywood, por baixo da mesa passou seu pé entre as pernas do outro e começou a subir. Elídio sorriu, interessado.

— O que acha, Lia? - Edu perguntou de repente.

— Oi? - ela se assustou e, por baixo da mesa, voltou os pés no chão.

— Que tipo de cara as mulheres mais gostam? - Edu continuou.

— Ah meninos, isso depende de cada uma, né?

— Então fala por você - ele respondeu.

— Qual o seu tipo, Lia? - Anderson perguntou.

— Eu gosto dos engraçados - respondeu lançando um olhar indiscreto para Elídio.

— Então, você acha que o amor da sua vida é um cara engraçado?

— Na verdade, eu não acredito nisso.

— Nisso o que?

— Que o amor da minha vida esteja por aí - respondeu séria.

— Ah, até parece que nunca amou ninguém - Tomé duvidou.

— Nunca mesmo.

Todos a olharam confusos.

— Isso está me cheirando a alguém que sofreu uma desilusão amorosa... - Andrei observou.

— Mas já se apaixonou alguma vez? - a pergunta veio de Tomé.

— Acredito ser uma eterna e constante apaixonada, não só por pessoas, mas sim por tudo na vida. E talvez por isso eu não consiga me prender a alguém.

— Mesmo que estejam há muito tempo juntos? - Andrei questionou.

— Se não tiver um pedido oficial, então é só diversão. E se é só diversão eu não crio esse laço.

— Mas e se for muito tempo mesmo?

— Independentemente. Eu posso passar anos com alguém, se não houve uma conversa sobre o assunto, eu não consigo criar esse vinculo e me prender à pessoa.

— Mas, qual a necessidade de pedir se já estão há tanto tempo juntos? - Elídio insistiu.

— Eu conheci vários casais que passaram por situações muito desagradáveis quanto a isso. Porque, quando alguém perguntava há quanto tempo estavam namorando, a garota respondia alguns meses e o cara falava que não tinha namoro nenhum. Não gosto de duvidas, gosto de pessoas diretas que deixem tudo claro, por isso o pedido.

— Mas, as vezes as coisas estão tão óbvias, que não precisam de explicação... - Elídio disse timidamente.

Pouco mais de meia hora se passou, os homens da mesa se perderam em um assunto particular deles, até Elídio se esqueceu por um momento da mulher à mesa. À essa altura o bar estava cheio, as vozes e risadas altas e a circulação de garçons com bandejas de cervejas estava cada vez maior. Em meio à tudo isso um grito:

— Puta que pariu! Que porra que esse merda acabou de fazer? - Lia se levantou abruptamente da mesa e bateu, com os punhos fechados, sobre ela.

Não seria exagero algum dizer que todos os presentes no bar, voltaram seus olhares de surpresa à ela. Principalmente, aqueles que partilhavam da mesma mesa que a mulher.

— Você não viu nada, - um homem gritou dos fundos do local - há semanas que esse aí não acerta um cruzamento.

Ele era forte, tinha os braços cobertos por tatuagens, usava uma regata preta com o emblema de uma banda de heavy metal, sua voz era grossa e apesar da aparência grosseira, ria feito criança.

— Como isso? Era só cruzar de direita pro número nove, que ele já tava na cara do gol. Ganha 300 mil pra errar uma besteira dessas... - continuou de pé.

— Viu o jogo do final de semana? - ele segurava uma asa de frango entre os dedos carregados de óleo.

— Lamentável. Sobre isso é melhor nem comentar - finalizou se sentando.

O homem riu e logo todos voltaram a seus respectivos assuntos.

Os homens sentados à mesa a encararam confusos. Após alguns segundos de completo silêncio, a jovem deu um sorriso tímido, constrangida pelo momento em que se deixou levar por suas emoções.

Quando Branca anunciou sua segunda gravidez, Leonardo pôs-se a comemorar. Ficou eufórico só em pensar na possibilidade de ter um irmão, de poderem brincar juntos, jogarem futebol até tarde e vídeo game nos dias de chuva. Toda essa expectativa foi por água abaixo no quinto mês de gestação, quando sua mãe chegou em casa revelando o gênero do bebê. Uma menina.

Mesmo assim decidiu continuar com seu plano e fazer de sua futura irmã, um menininho e funcionou. Até o inicio de sua adolescência Lia se vestia e falava como o irmão, vivia coberta de hematomas, lembretes dos jogos junto aos meninos da rua, jogava e entendia de praticamente todos os esportes, principalmente de futebol, o preferido de seu irmão, e tinha os cabelos tão curtos quanto os dele.

Com isso, vieram os maldosos comentários dos familiares. Reclamavam da maneiras da garota e de seu jeito masculino. Foi então que Leonardo percebeu que além de irmão, ele deveria ser o protetor da pequena. Iria protege-la das más línguas e de todos os males que viriam a acontecer.

Mas, a garotinha que Leonardo protegia cresceu e se tornou uma mulher. Mulher essa capaz de tirar o chão e o sono dos homens que por sua vida passaram. Assim como Elídio, um pobre marinheiro que caiu nos encantos de uma ardilosa sereia.

 


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Notas finais do capítulo

Abraços e até o próximo capítulo!



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