Dois Quartos de Vinho escrita por Ninguém


Capítulo 38
As cortinas em tom floral


Notas iniciais do capítulo

Olá, querido leitor. Seja bem vindo! Puxe uma cadeira ou deite no sofá, tome um chá ou coma uma pipoca. Enfim, sinta-se a vontade e tenha uma ótima leitura.



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As cortinas, em tom floral, dançavam com o vento que adentrava o quarto, os lençóis, jogados ao chão, começavam a participar da mesma valsa, seguidos das peças de roupa e da toalha de banho deixada sobre uma poltrona de canto. No horizonte se via o sol, logo seu calor se estenderia por toda a cidade, mas por hora apenas o frio se fazia presente.

Uma melodia leve e desprovida de letra começou a tocar, apenas um despertador subordinado a tirar seu dono de um sono profundo. Tão inocente e ao mesmo tempo tão culpado, odiado por todos. Pobre despertador.

Segundos depois o homem acordou, calou o responsável pelo fim de seus sonhos e se virou para o lado. Ela não estava mais lá, como no primeiro amanhecer, após uma madrugada regada a prazer e vinho. Por que era tão má? Ele queria apenas poder acordar ao seu lado, assisti-la dormindo profundamente e desperta-la com um beijo suave. Era pedir muito? Por que não lhe dava a chance de vê-la desarmada, podendo ser facilmente confundida com uma mulher comum?

Não, ela não era comum. Elídio tinha 36 anos e era a primeira vez que conhecia uma mulher assim. Alguém indecifrável, do tipo de pessoa que conhece os poderes que tem e os usa sem pudor algum contra sua vitima, que te deixa nocauteado sem você saber de onde veio o golpe final, uma mulher que acaba com você, te deixa no chão e, estranhamente, você ainda agradece por isso. Será que ir embora antes que ele acorde era uma das regras de seu jogo?

Assim como da primeira vez, não havia nenhum rastro da passagem da jovem por seu quarto. Nenhuma roupa, sapato ou bolsa, não havia ninguém no banheiro, as únicas coisas que denunciavam a presença da mulher ali era seu doce perfume na fronha do travesseiro e a saudade que o homem sentia.

Com sorte a encontraria no restaurante do hotel. Levantou da cama em um salto e apressou-se em se trocar, vestiu a primeira roupa que viu pela frente, calçou seu par de chinelos e correu até o elevador trombando com uma hospede desconhecida. Teve a ligeira impressão de sentir o mesmo doce perfume ali, naqueles 3m² revestidos de aço. Tentou, sem sorte, arrumar os cabelos enquanto caminhava até o restaurante.

Percorreu toda a extensão do local com os olhos, mas não, ela não estava lá. Não conteve uma expressão de desanimo e desapontamento. Como era angustiante dormir com alguém e acordar sem ela. 

Algo chamou sua atenção, em uma grande mesa repleta de pessoas alguém balançava a mão freneticamente. Era Cris, pedindo para que se juntasse a ela e os outros. Caminhou até lá e se juntou a seus amigos. Na mesa estavam: Cris, Anderson, Daniel, Jaque, Motta e Adriano. Os outros, aparentemente, ainda não haviam acordado.

O restaurante era grande, ocupava todo o fundo do hotel, possuía diversas mesas de tamanhos variados, todas cobertas com toalhas brancas e decoradas com pequenos vasos de flores, as cadeiras era de madeira e revestidas com almofadas chocolate nos assentos, ao fundo ficava o buffet e um modesto bar, fechado àquela hora da manhã.

— É...

— Ela já foi - Jaque adiantou-se em responder, interrompendo Elídio.

— Faz tempo?

— Uns dez minutos. - Motta respondeu - Perguntamos se queria carona, mas ela recusou.

— Muito simpática a garota - observou Adriano.

— É, ela é...

— Agora entendemos porque você está de quatro por ela - o barbado acrescentou.

— Não estou de quatro por ela - Elídio respondeu sem muita fé em suas próprias palavras.

— Ah, qual é Elídio? Você chegou e a primeira coisa que fez foi tentar saber dela, não falou bom dia e nem fez uma de suas piadas matinais. Admita, a garota não saí da sua cabeça - Todos concordaram com Anderson.

— É só uma amiga.

— Que amiga cheia de privilégios - Adriano retrucou.

— E como foi a noite?- Bruno Motta foi logo perguntando com seu tom brincalhão.

— Não aconteceu nada, se é isso que querem saber.

—Ih, Elídio não tá dando conta da garota - Anderson riu.

— Mas também, 10 anos mais velho. Mais um pouco e teria idade pra ser pai dela - Cris disse.

— Como sabe a diferença de idade?

— Ah Lico, conversamos por um bom tempo.

— Ela disse alguma coisa sobre mim?

— Disse que prefere o Marco - Daniel respondeu assim que terminou de tomar seu café.

— Não brinque com isso - Elídio respondeu em tom mais sério.

— Tomamos a liberdade de convida-la para assistir nosso treino na quarta-feira - Daniel falou.

— Ah - Jaque só faltou saltar da cadeira - a Lia falou sobre algum presente embaixo da cama.

— Presente? - Elídio questionou confuso.

Pouco mais de uma hora depois ele voltou para seu quarto. Tomou um longo banho de banheira, vestiu uma cueca limpa e deitou na cama. Estava adormecendo quando lembrou do que Jaque tinha dito no restaurante. Não conseguia imaginar o que poderia ser, então, ainda deitado, foi até os pés da cama e levantou os lençóis recém arrumados pelas camareiras. Próximo ao tapete estava um pequeno tecido, ele pegou a peça e riu ao perceber o que era. Lá estava uma calcinha de renda preta.

...

Quarta-feira, 10, um carro preto estacionou logo à frente de um prédio de dois andares. A construção tinha as paredes pintadas de amarelo e um discreto logo da Cia Barbixas de Humor.

A mulher desceu de seu carro e seguiu até entrar no prédio, conversou com uma recepcionista e segundos depois já estava subindo as escadas para o primeiro andar. Ela vestia um jeans claro de cintura alta, uma camisa rubi e saltos discretos, seus cabelos estavam soltos e ondulados como de costume, usava seu óculos e o costumeiro sorriso fácil.

O lugar parecia um escrito de publicidade, com paredes coloridas e bem decoradas, quadros com fotos de vários ensaios e turnês estavam espalhados pelos corredores e as pessoas que por lá estavam pareciam se divertir muito com o que estavam fazendo.

Lia não foi notada e como não avistou ninguém que conhecesse, achou melhor subir mais um lance de escadas. Estava subindo quando viu Jaque vir ao seu encontro. Ela usava um vestido verde-chá até os joelhos, seus cachos estavam presos em um rabo de cavalo e seus pés descalços. Lia achou graça.

— Que bom que chegou! - A produtora se adiantou em descer os poucos degraus e abraçar a recém chegada.

— Eu disse que viria.

— Vem, vamos subir. Os meninos estão treinando.

— É o Tauszig tocando? - Lia perguntou assim que chegaram ao segundo andar, referindo-se ao som que vinha de trás de alguma das portas.

— Incrível, né? Vamos entrar.

— Entrar? Acho melhor não.

— Por quê?

— Não quero atrapalhar.

— Imagina. Você não vai atrapalhar, é nossa convidada.

Passaram por uma cozinha, de onde saía um delicioso cheiro de café, e seguiram até se depararam com uma porta de alumínio e uma grande janela com vidros de correr. A essa altura o som do teclado estava mais alto e nítido, passos firmes eram sentidos no chão e várias vozes podiam ser ouvidas.

As duas se apoiaram no batente da janela e puderam observar a sala, que na verdade era um pequeno auditório. Lá dentro estavam os mesmos jogadores do final de semana passado, algumas pessoas que Lia identificou da equipe técnica e a misteriosa mulher de cabelos avermelhados, que assistia a tudo de pé no canto do modesto palco.

— Quem é ela? - Ela perguntou para Jaque.

— A de cabelo vermelho? - Lia assentiu - É a Letícia, as vezes ela tá nas sessões de fotos. Por quê?

— As vezes tenho a impressão dela não gostar de mim.

Jaque não respondeu, estava pensando no que falar quando ouviram uma voz vinda de dentro da sala.

— Lia, seja bem vinda ao nosso mundo! - Adriano estava agachado ao lado de uma caixa de som.

— Muito obrigada.

Elídio estava no meio de seu treino com Anderson e Motta, mas parou o que estava fazendo para fitar a jovem. Ele sorriu e ela retribuiu o sorriso, começou a caminhar em direção à porta, mas Letícia o repreendeu.

— Ainda não terminou o treino, Elídio.

Ele torceu a boca e voltou para a cena. Jaque e Lia ficaram ali por mais alguns minutos, até que a produtora chamou a jovem para se sentarem em uma escada de madeira, decorada com vasos de pequenas flores amarelas.

— Já já o treino termina e vocês se falam. Não liga pra Letícia, não, aquela lá vive de mal humor.

— Tudo bem. Ela tá certa, eu não deveria atrapalhar.

— Imagina, as quartas isso aqui vira um caos completo, a gente mais ri do que trabalha.

— Deve ser incrível trabalhar com eles, né?

— É fantástico! Os três são uns amores, com certeza os melhores chefes pra se trabalhar. Mas o Elídio, ele se supera, é como se estivesse ligado no 220 o tempo inteiro. Acho que nunca vi ele bravo.

— É, ele é um amor mesmo.

— Tem sorte de estar com ele.

— Jaque, já falei que não estamos juntos.

— Não estão porque você não quer. Já percebi o jeito que ele te olha, como fala de você. Vocês que são dois bobos e ficam negando o óbvio.

A outra achou graça. Por que era tão difícil acreditar que não, ela não estava apaixonada por Elídio Sanna, o humorista arrasador de corações?

Passaram o tempo em silencio assistindo aos jogos.

— Sua família já assistiu alguma de suas apresentações?

— Vão assistir pela primeira vez nessa sexta, para depois poderem falar que não sou tão boa.

As duas caíram na gargalhada juntas.

— À que horas vai ser a peça?

— 23h00.

— É uma pena que os meninos vão estar em turnê, se não eu iria.

— Eu adoraria ter vocês lá, mas entendo.

— E onde vai ser?

— Em São Bernardo no Lauro Gomes.

— Como faz para comprar os ingressos?

— Dá pra comprar por telefone ou indo lá.

— Tá ansiosa?

— Ansiosa? Eu?- A jovem deu uma alta risada sarcástica - Você não faz ideia!

Dentro do auditório o treino chegava a fim, a equipe técnica colocava os aparelhos em seus respectivos lugares, enquanto os jogadores recolhiam suas coisas se preparando para irem embora. Elídio apressou-se em pegar sua mochila, já estava indo em direção à porta quando Letícia segurou em seu braço.

— Não quero mais saber de ninguém atrapalhando nosso trabalho, entendeu? - Ela disse assim que ele se virou.

O homem a encarou por um tempo, se desprendeu dela e respondeu em tom de deboche, fazendo os que estavam na sala conterem o riso.

— Letícia, por favor, quem é você para me dar ordens?

Elídio abriu a porta, largou sua mochila no chão e correu para a escada onde estavam Lia e Jaque. Prendeu a morena em seus braços e beijo-a com vontade.

— Argh! Sai, você tá suado - Lia empurrou ele para trás.

— Tava com saudade.

— Normal, eu causo esse efeito mesmo.

Jaque tossiu ao lado, chamando a atenção dos dois.

— Com licença, não quero atrapalhar o casal - se levantou e desceu as escadas.

O humorista se aproximou mais da jovem, abraçando-a.

— Preciso tomar cuidado se não eles roubam você de mim.

— Impossível.

— Por quê? - Formou-se um brilho nos olhos do homem.

— Porque não sou sua propriedade.

— Você é impossível!

— Mas você gosta.

— Gostei do presente do final de semana.

— Guardou?

— Claro!

— Eu trouxe sua camiseta - ela começou a abrir sua bolsa, mas ele a impediu.

— Não quero que devolva, é pra se lembrar de mim - seu tom foi mais terno que o normal.

— Lembrar de você?

— Sim, espero que algum dia eu seja uma lembrança boa.

— Por que ao invés de pensar em ser uma lembrança futura, não se esforça para ser meu presente?

Ele se aproximou mais, acariciou a face da mulher e beijou seus lábios lentamente.

— É o que eu mais quero.

Lá fora garoava, ventava forte e o transito começava a se formar, centenas de pessoas estressadas e revoltas com o mundo e com todos que os cercavam transitavam pelas ruas, almas barulhentas carregadas de negativismo. Um cenário totalmente contrário ao que se via ali, no segundo andar de um escritório. Onde o silêncio prevalecia em meio a declarações já ditas por duas bocas que clamavam por algo a mais.


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Notas finais do capítulo

Até o próximo capítulo,
Abraços!



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