Dois Quartos de Vinho escrita por Ninguém


Capítulo 34
Domingo, final de tarde


Notas iniciais do capítulo

Olá, querido leitor. Seja bem vindo! Puxe uma cadeira ou deite no sofá, tome um chá ou coma uma pipoca. Enfim, sinta-se a vontade e tenha uma ótima leitura.



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Domingo, final de tarde. No céu, tons de rosa e laranja lutavam por espaço antes que fossem sufocadas pelo completo breu. Nuvens se concentravam ao longe e o vento mal se fez presente, coisa incomum em dias de outono.

Numa casinha simples do leste de São Paulo, alguém era tirado de seu delicioso sono por um irritante toque de campainha. Se libertou dos grossos cobertores e foi ao banheiro, localizado no final do corredor do primeiro andar. Se olhou no espelho, rosto magro e marcado, pele levemente vermelha e cachos amassados. Lavou o rosto molhando algumas mechas e aproveitou para urinar, brincando como um garoto de seis anos tentando acertar uma mosca que boiava na água do vaso.

A campainha tocava insistente, ele desceu as escadas lentamente e foi abrir a porta de entrada. Só no quintal reparou que estava sem camisa, usava apenas uma samba canção, não se importou, queria deixar claro para quem quer que fosse o quão incomodo era sua visita.

Assim que abriu o portão não conseguiu conter seu olhar surpreso. Afinal de contas, o que Lia fazia ali, parada diante dele, segurando duas garrafas de vinho branco?

— Bela samba canção.

— Belo decote.

— Imaginei que fosse gostar.

— O que faz aqui?

— Estou te devendo uma comemoração.

— Está? Como sabe meu endereço?

— Esqueceu que passei diversas noite aqui?

— Na minha casa?

— Na sua cama!

— Como eu poderia esquecer?

— Anda, se troca que vamos sair.

— Sair? Tem planos pra essa noite?

— Muitos, um deles é andar por ai bebendo.

— Não acha que vamos parecer loucos andando pelas ruas com garrafas de um litro de álcool?

— Você se importa demais com a opinião alheia. Não vai me convidar para entrar? - ele não respondeu - ótimo, não preciso de sua permissão.

Ela o empurrou para o lado e entrou na casa. Ele trancou o portão e a seguiu, quando entrou na sala viu a jovem sentava no sofá com o controle de seu vídeo game em mãos. Viu a cena e riu, marrenta, folgada e orgulhosa,  não mudou nada, pensou.

— Se demorar demais eu bebo sua garrafa - ela disse sem desviar o olhar.

Riu mais uma vez e pôs-se a subir as escadas indo direto para o banheiro. Tomou um banho rápido e em menos de quatro minutos já estava diante de seu guarda roupa tentando decidir qual roupa agradaria mais a mulher a sua espera.

Lia sorriu ao ver Pedro descendo as escadas. Já estava com saudade de suas roupas folgadas e de aspecto velho, dava a impressão de ter pego um pijama para vestir mesmo sendo uma peça nova em seu guarda roupa.

Todos familiarizados na área sabiam que as escolas de teatro eram lugares que reuniam os mais diversos e incomuns estilos pessoais. Os cabelos dos homens eram mais compridos do que os das mulheres e as roupas das mulheres mais largas que as dos homens. Os ensaios da Tropeços mais pareciam passeatas hippies do que aulas de verdade.

— Tá ganhando? - ele perguntou sentando ao lado dela no sofá felpudo e azul.

Lia aproveitou para deitar no colo do homem. Era apenas o que ela queria, colo.

— Como sempre.

— Lembra quando a gente passava toda tarde aqui? Jogados no sofá jogando video game...

— Claro que lembro.

— Parecíamos imortais, tudo era tão eterno - observou com olhar longe e tom sonhador.

— Irreal talvez.

Desde que se entendia por gente, Pedro morou na Mooca, não teve uma vida regada a luxos, no entanto nada nunca faltou dentro de casa. Filho de pais comerciantes, sempre estudou em escolas estaduais e conseguiu bolsas em algumas escolas de cursos técnicos. Fora um adolescente normal, teve uma vida sem muitas emoções. Trabalhava em uma agencia de entregas quando conheceu Lia, ficou fascinado pelo jeito leve e sedutor da jovem atriz, esqueceu de fazer a entrega só para poder voltar e vê-la novamente e não satisfeito com a breve conversa que tiveram em uma das filiais da Cia dos Tropeços no grande ABC, se inscreveu para o teste. Surpreendeu a todos quando passou e assim, descobriu dois amores: ela e a arte.

Moravam longe um do outro, o que não o impediu de busca-la em casa por vários meses com sua moto e leva-la para sua casa, onde passavam as tardes. Foram dias felizes para Pedro, a primeira vez que algo realmente aconteceu, primeira vez que saiu de sua rotina, que experimentou o famoso frio na barriga e as adoráveis borboletas no estômago, primeira vez que pode concentrar seu mundo em alguém. Até o fatídico pedido de namoro.

Lembra que chorou nos primeiro dias. Só então foi capaz de entender que o amor é como um castelo de cartas: bonito e imponente, mas basta um assopro para ir ao chão. Mesmo tendo passado alguns anos não tinha certeza sobre seu sentimento por ela, temia que o forte carinho que sentia fosse na verdade resquícios de seu amor.

— Ainda acha que o amor não existe?

— Estou amarga o suficiente pra dizer que sim.

— Quer sair e afogar suas magoas com álcool?

— Você vem comigo?

— Já te deixei alguma vez?

Quando saíram já era noite, o céu possuía um azul anêmico que combinava bem com as pessoas que por ali caminhavam. Era difícil não lembrar da massa de imigrantes italianos que ali aportaram no século passado. Caminharam durante muito tempo cercados apenas de loiros de olhos claros descendentes de europeus, Pedro era um deles.

Lia gostava daquele bairro, a primeira vez que visitou a Mooca foi com ele e nunca mais quis sair de lá. O ar industrial e um pouco acinzentado da região traziam uma melancolia tão ingênua ao coração da jovem que ela se sentia como uma criança no colo da mãe. Ainda mais quando os dois, enquanto casal, andavam juntos pelas ruas cheias de construções esquecidas e trilhos de trem desativados, se sentia como a protagonista dos romances da Sessão da Tarde.

— Lembra daqui? - ele perguntou assim que se sentaram em um banco velho de metal, com a tinta branca suja e descascada de frente para uma linha de trem.

E como não lembrar? Os dois haviam passado horas sentados naquele mesmo banco, observando aquela mesma linha. Pedro uma vez lhe contou que na década de 30 havia um grande parque no local, cheio de brinquedos para as crianças e mesas de concreto com tabuleiros de xadrez desenhados, sem falar nos diversos bancos de metal onde os casais se encontravam escondidos dos pais após as aulas. Até que um dia decidiram construir uma linha ferroviária bem no meio. O parque morreu e o único sobrevivente foi aquele banco velho e solitário quase coberto pela folhagem.

— Claro que lembro - ela respondeu virando sua garrafa de vinho e apoiando a cabeça no ombro do outro.

— Sabe...- ele também bebeu um gole da garrafa - meu amor por você é como o antigo parque que ficava aqui. Nasceu de um jeito tão bonito, serviu de abrigo para lindos momentos e boas lembranças e quando chegou a hora, morreu com a mesma beleza, dando lugar para algo igualmente belo e útil. E esse banco, bem, esse banco é a prova de que por mais que o tempo passe e as coisas mudem ainda vou te amar, meu amor por você insiste em continuar vivo mesmo que de modo sútil.

Ela sorriu e levantou a cabeça para poder olha-lo diretamente nos olhos, ele a olhou de volta. Foi rápido, quando percebeu já estava beijando-o com um carinho que há muito tempo não sentia, passou os dedos pelos cachos do homem gostando de ficar presa em meio àquelas ondas, sentiu como se estivesse navegando em águas calmas protegida por seu abraço. Ouviu o barulho alto de uma buzina e voltou a realidade.

Pedro ainda a fitava. Lia se sentiu um pouco constrangida, pelo que acabará de imaginar e acabou por encara-lo tempo demais. Sorriu tentando disfarçar o que as bochechas vermelhas indicavam e bebeu mais um longo gole direto do gargalo da garrafa.

— Eu preciso ir.

— Tudo bem. Eu te deixo em casa.

— Pois então vamos - ela estendeu a mão livre.

— Sim senhora - ele segurou a mão da jovem e os dois seguiram a pé.

Demoraram pouco mais de uma hora e meia para, enfim, chegarem até as escadas do prédio da mulher. Ficaram mais 20 minutos parados conversando, relembrando histórias e brincando com o passado amoroso dos dois. Porém, o clima teve uma significativa mudança, o vento ficara mais forte e no céu as nuvens aumentavam. Lia decidiu entrar.

— Obrigada por vir comigo.

— Obrigado por me salvar de um domingo sem graça.

— Quer subir?

— Acho que é melhor não.

Ela riu de maneira forçada.

— Tantos anos e ainda não aprendeu. Jamais recuse um convite de uma mulher para entrar em sua casa, não costumamos ser mais descaradas que isso. - ele sorriu - Boa noite Romeu.

— Boa noite Julieta.

Subiu. Assim que entrou em seu apartamento foi direto tomar um banho quente, levou Rumpel para seu quarto e deitou-se na cama, seu celular tocou em seguida. Atendeu sem ver quem era.

— Sei que você não vive sem mim Pê, mas aí já é demais, né?

— Lia?

Reconheceu a voz, e não, não era de Pedro. Sentou-se na cama com ar de surpresa, não sabia se ria ou chorava com tal ligação.

— Elídio?


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Notas finais do capítulo

Até o próximo capítulo,
Abraços!



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