HERMIONE

Eu era apenas sensações e oscilações.

Não conseguia manter o foco. Havia ido até o bosque para resfriar a cabeça, depois do traumático almoço de horas antes.

Eu não sabia o que pensar. As palavras de Gina, Jorge e Rony martelavam em minha mente, latejando meu cérebro.

No fundo, eu sabia que tudo que eles haviam dito era verdade.

Mas Jorge conseguiu fazer emergir o pior de dentro de mim. Fez-me lembrar de tudo o que eu havia feito.

Das vidas que tinha tirado. Das vidas que eu iria condenar ou salvar agora.

Eu sentia-me tão fraca e indigna que meu próprio corpo parecia revoltado de que eu pensasse assim. Eu sentia um latejar inusitado em cada membro, cada osso, cada pedaço de pele. Podia ver minha perturbação na brisa ao meu redor, e nas minhas pegadas que se afundavam mais do que o necessário na terra.

– Hermione...

Ouvir o som da voz de Rony, naquele momento tão estranho e delicado, para meu completo choque, pareceu destravar a porta do poder que eu havia ocultado tão freneticamente nos últimos meses.

Minha mente pareceu se desconectar, enclausurada no fundo de meu ser como mera espectadora. Ouvi, horrorizada, as palavras que saíram da minha boca.

Palavras que eu nunca sequer tinha planejado pensar em dizer.

– Vocês tem razão.

Nãoe era eu que estava falando.

Não era nem sequer a Wicca aprisionada dentro de mim.

Meu Deus... não, não!

– O quê? – ouvi Rony se aproximar. Não, ele tinha que ir embora! Eu não estava controlada... aquilo não era eu!

– Sobre eu aceitar o que eu sou. Vocês tinham razão. Eu me neguei a aceitar isso nos últimos meses, achando nãos ser digna. Achando-me fraca.

Estremeci dentro de minha mente, ouvindo a estranha falar. Senti, angustiada, os elementos aflorarem outra vez em minha pele.

– E agora você sabe... você sabe quem é?

Rony estava atrás de mim. Podia senti-lo, em todos os sentidos, incluindo o bater desenfreado e vigoroso de seu coração.

– Sim... eu sei.

O que eu dizia simplesmente escapava de uma fonte desconhecida... eu não tinha mais controle sobre meu próprio corpo.

Meu corpo se virou para Rony, incendiando-se ao redor, em forma de labaredas que iluminaram a escuridão.

– Sou a Wicca, Herdeira de Helena. O cavalo branco da vitória.

Nem mesmo aquela voz era minha...

O que estava acontecendo?

Minha própria alma parecia querer se expandir além daquela mera carcaça de carne, tomando uma forma muito mais digna para seu inigualável poder.

O ar explodiu ao nosso redor, impetuoso.

Era como se tudo o que havia de interiorizado dentro de mim – meus poderes da Maldição, meu sofrimentos, meu amor, minha angústia, meus medos e inseguranças – se misturassem num turbilhão e tentassem escapar de dentro daquela patética forma humana, se desdobrando, se ampliando e tornando-se completamente mais volátil e resistente.

Vi Rony encolher bizarramente, como se eu estivesse me içando em direção ao céu. Ele estava caído, olhando ensandecido para mim.

– Hermione! – ouvi-o guinchar.

Não havia medo nos olhos dele. Apenas choque... e aquela reverência ,que eu nunca quis - e ainda não queria - ver em seu rosto.

Eu sentia, eu reconhecia a forma em que estava... mas não... era impossível....

Atrás de mim, duas asas se estenderam em reação à minha divagação.

Não, não! Aquilo não era possível...

Uma dor excruciante dominou minha cabeça, fazendo-me envergar para frente e cair no chão. Rony recuou, ainda de joelhos, assustado.

– Hermione! – Rony gritou. Vi sua silhueta se erguer, mas minha visão se anuviou. Era como a tontura antes de um desmaio, só que mil vezes mais forte e atordoante.

Tentei enxergar ou reagir, mas a escuridão me engoliu, implacável.

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Estava mergulhada na penumbra.

Tudo estava escuro.

Tentei abrir os olhos... ou me movimentar. Nada aconteceu.

Ouvi vozes ansiosas ao meu redor.

Era como as porcarias de desmaios em Beauxbatons, dos quais eu acordava na Redoma da Wicca.

Mas eu não conseguia acordar... ou reagir.

– Isso é sério, Ministro! Ela não pode exercer o cargo de Juíza se fica explodindo á toa por aí!

– Ela não só pode, Yara, como irá exercer. Isso foi apenas um imprevisto.

– Imprevisto? – a tal Yara respondeu, sarcástica – isso é uma calamidade! Se as pessoas souberem disso, pode dizer adeus à sua Juíza da Corte!

– Ninguém vai saber! – rosnou uma terceira voz. – o primeiro que disser algo sobre isso vai ter que se ver comigo!

Rony! Ele estava ali!

Tentei despertar outra vez, mas não conseguia sair da escuridão.

– Acalme-se, Rony.

– Vai me dizer que isso foi uma reação á transfiguração Wicca dela? – reconheci outra voz assustada. Oliviene!

– Talvez sim, talvez não – Kingsley respondeu – sabemos tanto quanto vocês sobre a... ah... a nova forma dela. Talvez seja um novo caso de Hermione se treinar e se disciplinar, até que possa contar mais essa novidade à todos.

– Ah, sim – Oliviene devia estar revirando os olhos. Até ela? Puxa... – você sabe que o povo vai ficar apavorado quando souber que a Wicca e Juíza Ministerial agora também é uma animaga! E não de um animal qualquer, e sim de um dragão negro de quase seis metros de altura!

O quê?

Não,não... meu Deus... era pior do que eu imaginava...

E eu... achando que tudo tinha acabado...

Agora eu me recordava vagamente... a altura... as asas.

Céus... aquilo não fazia sentido algum. Como era possível?

– A reação não vai ser pior do que a de quando descobriram que Hermione era Wicca. Parece-me que nossa Wicca também era uma animaga de nascença que só estava esperando o momento certo para tomar sua nova forma.

“Momento certo?”, minha mente grasnou, indignada. “Eu podia ter matado alguém!”.

– Então foi isso? – ouvi Rony arfar – a transfiguração dela em Wicca causou a transformação também?

– Minha teoria é de que foi este o modo que o espírito dela arranjou de canalizar o excesso dos elementos, de uma forma não destrutiva, mesmo que ela mesma não tivesse consciência disso. Ela estava perturbada demais, e tentou tornar a instabilidade dela apenas algo para o interior, e não para fora. Isso deve ter causado a transformação... e, provavelmente, os elementos também modificaram sua forma animal.

– Era um dragão negro, e não castanho – Rony murmurou – então ela só vai poder...?

– Sim, provavelmente só poderá se transformar na forma animal se já estiver na forma Wicca, já que os elementos modificaram o próprio núcleo da transformação original.

Senti certo alívio. Então aquela monstruosidade que eu criara não ia ocorrer á qualquer hora. Eu poderia aprender a controlar-me também daquele jeito, assim como fizera com os cinco elementos.

Mas tudo ainda não fazia sentido. Como eu podia ser animaga? Céus... já não bastava tudo que andava acontecendo?

– O que foi que ela disse mesmo antes da transformação? – a Yara perguntou.

Senti um arrepio em meio ao breu, ao me lembrar das palavras que dissera. Eu também não fazia a menor ideia do que significava.

– Que era a herdeira de Helena ou coisa parecida – a voz de Rony baixou, tensa .

– Só isso? – ouvi Oliviene murmurar.

– Não... era o...cavalo branco da vitória. O que significa, Ministro?

– Ainda estou pensando nisto, Weasley. Na verdade, andei conversando com McGonagall, e ela me disse algo que vai se interessar em saber.

– Então diga, por favor.

– Eu e todos os demais da Ordem que sabem sobre a Maldição da Wicca cremos que, quando Hermione se transfigura totalmente em Wicca, assim como vimos em Beauxbatons, ela não está em sua personalidade normal.

“Durante séculos, a maior parte dos Wiccas se desenvolveu em meio á personalidades cruéis e sanguinárias, e isso, consequentemente, se repassou um pouco para as novas gerações. Pelo fato de Hermione ser como era antes da transformação em Wicca, tão boa, gentil, humilde e altruísta, isso não conciliou com a posição que ela deveria se encontrar quando em forma Wicca. Por isso, acreditamos que ela tenha desenvolvido... uma dupla personalidade.”

– O quê?

“O quê?”, ganiu minha cabeça. Como era? Eu ia virar uma bipolar agora?

– Sim... faz sentido, Rony – Oliviene comentou – uma Wicca não pode ser insegura ou humilde demais... e Hermione, em sua personalidade normal, é exatamente assim. A própria Hermione teve que desenvolver uma personalidade interior que conciliasse e dominasse a parte Wicca, apesar de nem saber que isso podia acontecer.

“A Hermione Wicca é, realmente, outra Hermione... mais firme, convicta, confiante... e, provavelmente, mais inteligente ainda do que a parte normal. O que, portanto, poderia fazer com que a Hermione Wicca dissesse segredos e palavras que a Hermione normal jamais saberia ou entenderia.”

– Oi? – Rony guinchou – quer dizer que a Hermione Wicca jogou tipo uma charada para a gente?

– Não é tanto isso que nos preocupa... – Yara soltou – ela disse ser o cavalo branco da vitória.

– E...?

– Rodrick Carrow dizia ser o cavalo vermelho da guerra.

Cassete.

Meu Deus... aquilo não era uma charada... era... era...

– Harold...? – Rony indagou. Deus. Se tudo sobre a dupla personalidade fosse verdade... o que meu tio teria dito sobre isso?

– Ele tinha me indagado isso antes de Hermione aparecer no Ministério, para nossa conversa sobre o cargo – ouvi Yara fazer um “tuift” de desdém, que me deu vontade de acordar logo para dar um sacode nela – e Harold se lembra de ter dito isso à uma das empregadas dele, alguns dias antes de Rodrick acha-lo. Ele seria o cavalo cinza da fome.

Finalmente, a luz surgiu na minha frente. Senti meu corpo novamente, e me ergui tão rápido que nem tive tempo de reparar onde eu estava – pelo jeito, na mesa da cozinha -, ou de acalmar os rostos assustados ao meu redor.

– Então só falta mais um!

Uma moça de cabelos acaju ao lado de Oliviene tropeçou e quase caiu para trás, me encarando pasma. Devia ser a tal Yara.

– Hermione!

Abri os braços para que Rony me abraçasse.

– Que bom que está bem – funguei, beijando sua bochecha.

Rony me soltou. Parecia tão radiante de me ver bem que aparentava nem se lembrar de mais nada do que acabara de ouvir.

Meu coração bateu mais forte ao ver que nada do que haviam lhe contado parecia ter apagado nada do que passava por seu rosto.

– Eu... – ele baixou a cabeça, segurando minhas mãos – não sei o quanto você ouviu...

– Ouvi a conversa toda – sorri, fazendo todos ficarem menos tensos. Deviam estar achando que eu ia dar um piripaque de novo – sou animaga. Legal. Empolgante.

– Eu falei que ela ia reagir bem – Oliviene cutucou Yara.

Mas isso era por que eu já tinha tido meu desmaio... dentro do desmaio.

– Você falou algo agora? – Kinsgsley disse; percebi que ele evitou perguntar “em sua consciência normal”.

– Falta mais um – toda minha repentina diversão desapareceu – os cavalos. A profecia do fim do mundo. Está nos textos cristãos.

– Falta mais um – repetiu Yara.

– Ah, esqueci de apresenta-las – o Ministro se virou para mim – Hermione, essa é Yara Hawkes, do Departamento de Imprensa.

– Prazer... – prazer nada. Eu queria era dar uns tapas na fuça dela depois daquele desprezo de mais cedo.

– O prazer é meu – Yara fungou – só por curiosidade... baseada nessa suposta profecia... que acho que sua parte Wicca tá sabendo de tudo... qual é o cavalo que falta?

Senti a bile tentar subir pela minha garganta. Apertei a mão de Rony.

– O cavalo descorado da morte.

Todos enrijeceram depois do que eu falei.

– Isso é loucura – Rony afagou minha mão – não pode ser uma profecia verdadeira. Não há mais nenhum bruxo poderoso rondando por aí... ainda mais um pior do que Rodrick Carrow para ser considerado “o cavalo da morte”. Você já derrotou a Segunda Semente, lembra?

– Esperamos que esteja certo, Rony – Oliviene suspirou – mas não podemos ignorar a possibilidade das personalidades Wiccas de Hermione e Harold não terem um segredo á ser descoberto.

– Eu posso tentar – disse – tentar puxar isso quando estiver na forma Wicca. Tentar saber o que eu sei no fundo da minha mente...

– Isso seria de grande ajuda... – o Minsitro assentiu – vamos tratar de quaisquer outros detalhes, incluindo sobre sua recente transformação... podemos cuidar disso mais tarde, até por que, até agora, não sabemos de nenhuma ameaça vigente. Vamos manter vocês informados de tudo que conseguirmos descobrir. Mas, por ora, manteremos nosso planejamento original.

– Ainda me quer como Juíza... depois de... tudo isso? – olhei para baixo, desanimada – e se minha outra personalidade me fizer passar vergonha no tribunal? Quem garante que não vou sair de controle como fiz agora?

– Você nãos saiu de controle, Hermione. Mesmo inconscientemente, impediu a si mesma de provocar destruição há horas atrás. Imagine o que poderá continuar fazendo enquanto estiver em plena consciência. E eu confio plenamente que tudo dará certo... não – ele ergueu a mão quando abri a boca para protestar – não vou querer discussões, por favor. Isso já foi decidido. Yara... por favor, adiante as coisas para nós no Ministério.

Yara se despediu com um aceno e desaparatou. Oliviene gemeu um “finalmente” e se aproximou.

– Fiquei sabendo do noivado – ela sorriu – meus parabéns.

– Obrigada... –respondi, sem graça. Rony parecia feliz da vida quando Oliviene piscou para ele.

– Acho que tudo já está arranjado por enquanto – Kingsley meneou a cabeça – espero você nas audiências, Hermione. Tenho certeza de que serão memoráveis.

– Eu também – dei um sorriso amarelo. Também achava que ninguém nunca se esqueceria do fiasco que iria acontecer.

O Ministro acenou e se retirou da cozinha. Oliviene foi atrás dele, olhando para nós.

– Boa sorte, pombinhos – ela sorriu antes de sair com Kingsley e fechar a porta.

Só ficamos eu e Rony na cozinha.

Eu ainda estava sentada na mesa, me sentindo um pouco bamba.

– Onde estão os outros?

– Foram visitar Harry... ele está morando com Andrômeda e Teddy agora, enquanto não arranja uma casa nova. Eu disse que ia ficar cuidando de você.

– O que aconteceu depois que desmaiei?

– Bom... – Rony empalideceu, parecendo desgostoso com a lembrança – você encolheu de volta ao normal, mas não estava acordando de jeito nenhum. Então eu te trouxe até a cozinha, acalmei todo mundo e pedi para Gina mandar uma carta urgente para Kingsley. Achei que ele deveria saber disto, antes que a história corresse. Ficamos esperando você recobrar os sentidos... e então você acordou agora.

– Estou tão confusa – bufei, deitando a cabeça em seu ombro – essa coisa de profecia... o que minha parte Wicca sabe que eu não sei?

– Não se preocupe com isso agora, Hermione – Rony beijou meus cabelos – ouviu o Kingsley... ainda não há perigo algum. E, quando... ou se... tiver, vamos enfrentar juntos. Como sempre. Agora sua única preocupação é se preparar para os julgamentos... e só, está bem?

Rony tinha razão. Não adiantava eu esquentar a cabeça com algo que talvez nem fosse acontecer, do qual ninguém sequer tinha ideia de ser verdade ou não. Eu tinha mais com o que me preocupar agora.

– Tá legal – ri, afagando seu nariz com o meu – e falando sério agora, eu não quero voltar à ficar como uma lagartixa tão cedo... mesmo que seja pra treinar... quem sabe depois das audiências.

– Então evite se estressar por coisas além do seu alcance, sua boba – dei risada quando ele mordeu minha orelha – e, aliás, estou te devendo uma mãozinha no estudo de casos de jornalistas safadas, lembra?

– Verdade – me levantei, rindo e puxando Rony – vamos logo... tenho que me aprontar...

Rony era o remédio certo para minha amargura e insegurança. Quem e importava se um novo bruxo das Trevas viria? Quem se importava que eu pudesse virar um dragão?

Quando eu estava com ele, era impossível conseguir sucumbir à depressão. Era meu porto seguro, que fazia eu me esquecer de tudo e de todos, em momentos fantásticos, onde só havia nós dois e mais ninguém.

Eu mal sabia que tudo aquilo era só o início de uma série de provas que nos levariam finalmente á situações e desafios jamais imaginados.