À Prova de Balas escrita por Bella Black


Capítulo 3
Que estúpido colocar tudo em um anel


Notas iniciais do capítulo

O capítulo não está longo, mas revela bastante coisa.
Ah, e eu lamento a ausência, era carnaval, né? Espero que tenham se divertido.



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Acordei zonza com uma maldita dor de cabeça, naqueles primeiros segundos que o cérebro ainda trabalha para decifrar onde estamos. Esfreguei os olhos com os nós dos dedos e bocejei sentindo o mau hálito matinal encher meus pulmões. Quando joguei os pés para fora da cama senti uma pontada de dor que veio como um choque desde o pé ao meu tronco. Olhei para baixo receosa e deparei com um corte costurado como se minha perna fosse um tecido retalhado. Revirei os olhos apertando os lençóis amarelados – embora limpos – de seda entre os dedos.

O piso do quarto era de uma madeira escura e desgastada; uma pequena televisão que não dava muitos sinais de que ainda funcionava pairava pouco acima da lareira remota e decrépita. Em contraste, do outro lado do cômodo, uma mesa sofisticada com dois computadores definitivamente de última geração e uma cadeira giratória preta que talvez fosse couro. Ainda sentada, notei a carta sobre o criado mudo, amassada e um pouco manchada de sangue.

Pouco a pouco as lembranças da noite anterior me atingiram.

— Droga! – Murmurei incrivelmente mal-humorada.

A porta do quarto abriu–se devagar.

— Acordou Bela Adormecida? – Eduardo entrou com uma toalha pendurada na cintura e os cabelos molhados.

— Onde é que a gente está? – Perguntei, ignorando suas palavras e desviando o olhar do seu tronco definido.

— Na minha... casa. – Pigarreou.

— E o que eu estou fazendo aqui?

— Você quer voltar para a sua? Eu te levo. – Retrucou impaciente.

— Puta merda. – Enfiei o rosto no travesseiro frustrada.

Eduardo sentou ao meu lado afagando minhas costas, numa tentativa fracassada de consolo.

— Acho que é uma boa hora para você ler a carta, Gabriela. – Sugeriu.

— Como você sabe da carta? – Fitei-o desconfiada, a sobrancelha arqueada.

— Apenas leia, está bem? – Declarou, deixando-me sozinha no quarto.

Indignada, peguei o papel e abri.

E, pela primeira vez desde que tudo aconteceu, eu me vi sozinha.

A única pessoa com quem eu podia contar era um cara que eu mal conhecia, atirava em assassinos e sabia costurar pernas – não que isso seja reconfortante. Senti uma lágrima quente escorrer pela bochecha, depois outra e mais outra. Finalmente voltei meu olhar à carta e reconheci imediatamente a letra (garranchos) de meu pai.

“Tudo bem que eu não fui o melhor pai do mundo, contudo, sei que te amei como um pai deve amar uma filha, Gabriela. Lamento por isso estar acontecendo. Em primeiro lugar você deve ter em mente que eu não sou empresário e sim um agente da ABIN (pesquise a respeito depois).

Certamente já estão atrás de você, mas claro que não está com você. Preciso que faça algumas coisas por mim. Primeiro lugar, quero que recupere dois anéis. Eles são de prata e parecem duas alianças simples. São extremamente importantes. Segundo, que você não confie em ninguém. Para falar a verdade, o próximo pedido é uma exceção para o segundo; contate Guilherme Frias do setor 15 da SISBIN e lhe entregue os anéis, ele te ajudará a fugir, porque, claro, você não pode ficar aí para sempre. E claro, não preciso lembrá-la de manter-se viva.

Sobre os anéis: um grupo argentino roubou de mim dois meses atrás. Mas provavelmente já fora vendido e não está mais com eles. Tente localizá-los, os anéis.

Espero que entenda que tudo que fiz foi para nosso bem e não acredite em tudo que lhe disserem. Amo você.”

Muito sutil da parte dele. Especialmente o trecho em que ele “lamenta por isso estar acontecendo”.

Pressionei novamente o travesseiro contra o rosto e gritei o mais alto que pude.

— Vejo que acabou. – Suspirou um Eduardo vestido, invadindo o aposento.

— Sai! – Bradei ainda com o travesseiro na cara.

— Não.

— Você é muito atrevido. – Conclui, fitando-o incrédula.

— Acho que você devia tomar um banho. – Recomendou indiferente ao meu comentário.

As palavras vazias da carta ainda vagavam pelos meus pensamentos. Não que eu esperasse palavras bonitas ou uma grande declaração sobre nosso pequeno relacionamento entre pai e filha, todavia, ao menos um bom esclarecimento sobre o que diabos está acontecendo.

— Quem é você? – Questionei subitamente.

— Eduardo, já disse. – Balançou a cabeça e franziu a sobrancelha expressando o quanto achou a pergunta tola.

— Quem é você de verdade?

— Eu sou eu, Eduardo. Pelo menos pra você é só isso mesmo. – Revirou os olhos de forma indócil.

— Não posso confiar em você. – Aleguei.

— Então você confia?

— Não.

— Pois devia.

— Quem é você? – Insisti.

— Dá pra parar com isso?

— Não.

— Problema seu. – Rematou levantando-se. Prestes a sair do quarto, virou-se ligeiramente para mim e entoou indiferente: – Vê se toma um banho, beleza? – E apontou para uma porta do outro lado do quarto, saindo.

Segui mancando pelo piso frio até o banheiro, revestido de azulejo escuro e box de vidro fumê. Tranquei a porta – vale ressaltar que levou um tempo para eu descobrir que aquela maldita maçaneta estava invertida –, tirei minha roupa encardida e fedida, jogando tudo no chão e comecei a ducha. Logo, como num filme meio bobo, comecei a repassar alguns acontecimentos marcantes da minha vida. Tentei encontrar sentido nessa loucura.

Estou órfã. Nunca conheci minha mãe, pelo que meu pai disse uma vez, ela morreu há tanto tempo que é difícil lembrar de qualquer momento com ela. Tenho que encontrar dois anéis e um Guilherme Frias do setor quinze da SISBIN. Tem um cara, Eduardo-Sem-Sobrenome. Ele salvou minha vida. Não sei se gosto dele. Não sei se posso confiar nele. E tem eu.

— Manter-me viva.— sussurrei, desligando o chuveiro e me enrolando na toalha.

Depois de me vestir com a as peças que Eduardo separou sobre a cadeira giratória – que, impressionantemente, eram minhas –, saí do cômodo pela primeira vez. Era um lugar informal, um sofá de estampa estranha em frente a uma televisão de vinte e uma polegadas e do outro lado uma pequena cozinha americana.

Apesar de ter acabado de acordar, sentia-me exausta, contornei o sofá e sentei-me com as pernas dobradas.

— Ai! – Gemi ao sentir uma tênue dor na perna.

— Estranhei só ter reclamado agora. – Eduardo se pronunciou da cozinha.

Grunhi olhando pra minha coxa.

— O tiro, deu sorte ter sido de raspão, podia ter perdido a perna.

— Obrigada pelo incentivo.

— Por que você é tão reclamona? – Perguntou, fechando a porta da geladeira e virando–se pra mim. Depois de um momento em silêncio, ele continuou, pensativo: – Acho que o efeito do analgésico passou.

— Você acha? – Respondi sarcástica, sentindo o corte latejar ligeiramente.

— Vou pegar outro.

Eduardo sentou ao meu lado pouco depois com a caixa de primeiros socorros.

— Quanto tempo eu dormi?

— Uns dois dias.

— DOIS O QUÊ?

— Efeitos do remédio. Para de mexer essa perna, por favor. – Pediu enquanto trocava o curativo.

— Eu não vou tomar isso de novo! – Bradei estupefata.

 Claro que não, não temos esse luxo, este é outro. – O encarei por alguns segundos antes de engolir o comprimido que ele me dera.

Gemi ao sentir o álcool arder no ferimento.

— Seu pai deve ter contado sobre os anéis na carta. – Fitou-me erguendo uma das sobrancelhas, estudando minha reação.

— Hm... Não é da sua conta o que meu pai falou.

— Você é tão petulante. – Torceu o lábio decepcionado.

— Desculpe.

— Estamos juntos nessa, ou você acha que eles também não querem minha cabeça numa bandeja?

— Não somos tão importantes a esse ponto, Eduardo. – Rebati.

— Mas o que eles estão procurando é, e acham que está conosco.

— Quem são “eles” afinal? E eu não estou com merda alguma.

— Diga isso para eles.

— O QUE SÃO “ELES”, PORRA?

— O SERVIÇO DA ABIN, TRAFICANTES ARGENTINOS, BRASILEIROS E TODO MUNDO QUE ESTÁ ENVOLVIDO NISSO! – Ele gritou de volta.

Ah.

Eles.

Suspirei em resposta virando-me para frente assim que ele acabou o novo curativo.

— Seu pai estava investigando um reservatório de urânio que estava sendo comercializado ilegalmente para produção e tráfico de armas nucleares. As informações dessas reservas estavam, pasmem, nos anéis. Seu pai, um dos mais importantes membros da ABIN, localizou, depois de dois anos de pesquisas, as duas joias. Claro que isso colocaria em risco um esquema que vai muito além da América do Sul. Mas é claro também que já teriam nos encontrado se quisessem, não há nada que não saibam. Apesar do que eu disse, eles provavelmente sabem que não está com a gente, querem que encontremos para então nos matar. – Eduardo contou sem ao menos deixar que eu o interrompesse, e eu não o faria.

— Que estúpido colocar tudo em um anel. – Concluí.

— Dois, na verdade. – Corrigiu, frustrado por essa ter sido minha única constatação.

— Por que encontraríamos então, se pretendem nos matar?

— Porque nos matarão se não encontrarmos também.

— No fim das contas, então, já estamos mortos.

— Não é meu objetivo, sabe? Se seguirmos o plano, dá para sairmos vivo.

— Ah, então você tem um plano. – Encarei-o novamente.

— Certamente. – Suspirou convencido.

— E como vou saber que posso confiar em você?

— Você já sabe. – Sua voz carregava tanta convicção que eu quase acreditei. – Posso ver a carta?

— Não sei. – Senti seus olhos sobre mim.

— Beleza. – Respondeu levantando–se para cozinha.

— Em cima da mesa de cabeceira. – Assenti por fim.


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Notas finais do capítulo

Um breve resumo sobre a ABIN: http://www.abin.gov.br/modules/mastop_publish/?tac=Atividade_de_Intelig%EAncia
Alguns apelidam de "A CIA brasileira", fica a seu critério.
Estou pensando em colocar uma imagem no topo de cada capítulo, o que acham?
E você, confia no Eduardo? O que achou disso tudo?



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