À Prova de Balas escrita por Bella Black


Capítulo 2
Falta um pedaço de carne do tamanho de uma moeda


Notas iniciais do capítulo

Estou animada com esse capítulo, e espero que também gostem.



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Perambulei sem direção por um tempo, contudo, quando a lua começou a banhar de luz a pequena cidade, sentei–me em um banco da rua deserta e tirei a carta amassada do meu bolso. Quando olhei para ela, um flashback medonho que eu estive tentando evitar desde que fugi, agrediu–me como um soco no estômago:

Tinha acabado de chegar da aula para o almoço – embora já tivesse passado da hora –, a casa estava vazia como de costume, exceto que, normalmente, a cozinheira está sempre na cozinha. Ignorei o fato inusual, já que as pessoas urinam e fazem coisas cotidianas em cômodos diferentes. Esse é o meu problema – esse e mais uns quinhentos –: eu sempre ignoro os detalhes. Displicente, arremessei a mochila no sofá e avancei para a geladeira que ficava em frente ao balcão da cozinha americana, bebendo a água direto do pote. Claro que, com minha percepção incrível, eu só notei o corpo no chão depois. Caralho! Tinha a porra de um corpo no chão da minha cozinha! E era do meu pai! Era meu pai com uma bala atravessada na barriga e uma maldita poça de sangue monstruosa.

Senti o coração queimar no meu peito, tão forte que doía. Eu queria gritar, no entanto, minha garganta estava bloqueada, como se tivessem enfiado um nó do tamanho de um frango lá e eu mal era capaz respirar. Segurava, em sua mão direita, um papel meio sujo de vermelho. Quando finalmente consegui reagir, abaixei–me e peguei o que aparentava ser uma carta. Então eu gritei. Espremi os olhos como se as orbes fossem explodir junto com meu cérebro. Gritei tão desesperadamente que a voz falhou. Gritei por seu nome. Gritei em negação. E só depois do que pareceu uma eternidade, eu consegui parar de gritar. Não por mérito meu, mas porque a dor nas cordas vocais já estava insuportável.

O corpo do meu pai jazia inerte no chão da cozinha. Minha mente queria desintegrar-se. Então corri, corri o mais rápido que pude dali, sem olhar para trás, para o mais longe possível.

Enxuguei os olhos, as lembranças para mim sempre foram cicatrizes que nunca se fecham. Eu cresci sem mãe e agora tiraram de mim a única coisa que importava.

Analisei o envelope que em algum momento fora branco; no canto inferior, grifadas de caneta preta, as palavras: “Leia na hora certa”. O que diabos são “leia na hora certa”? Já escurecera e eu sequer tinha onde passar a noite. Bisbilhotei os bolsos da minha roupa em busca de algo útil. Encontrei meu celular, até esquecera que possuía um, então liguei a tela: um único e mísero ponto de bateria.

Claro que é visível o quanto o universo favoreceu–me no quesito sorte.

O aparelho vibrou na minha mão, anunciando um novo SMS:

De: anônimo

Rua 54, Cinquentenário. Um lugar para dormir. Não seja seguida. Saco azul na lixeira da Avenida 48 com duzentos reais. Alimente–se. Não confie em ninguém.

Meu coração precipitou–se, incrédulo e aflito. Quê? Estava sentindo-me presa num desses filmes ruins do Nicolas Cage, só que não era um filme. “Não confie em ninguém” inclusive você que mandou essa merda, só pode ser brincadeira. Senti meu estômago contorcer–se esfomeado. A Rua 48 ficava a duas quadras do lugar que eu me encontrava. Parte de mim sentia cheiro de armadilha, no entanto, a outra parte berrava “COMIDA! COMIDA!” incansavelmente.

Nem preciso dizer qual delas venceu.

Caminhei por uns cinco minutos até alcançar a tal lixeira. A avenida estava solitária porque o comércio já havia sido fechado. Ergui a tampa e um odor horrífico invadiu minha respiração de forma desagradável. Fiz careta e virei o rosto. É, estavam tirando sarro da minha cara. Quando estava prestes a renunciar da busca, atentei–me a um saco azul. Uma pontada de esperança atingiu–me. Peguei o saco e soltei a tampa, sentando-me no banco do outro lado dos paralelepípedos. Abri a carteira preta e aparentemente nova e realmente encontrei duzentos reais nela. Pendi a cabeça para trás exausta, arrepiada e senti vontade de xingar nos quatro idiomas que eu conhecia.

Mesmo assim eu não iria ao outro endereço, sabe–se lá o que me aguardava. Eu definitivamente não confiava em mais nada e ninguém. Guardei o dinheiro e peregrinei pela rua procurando algum lugar aberto: eu precisava comer, além de estar quase congelando. Parei em frente a única cafeteria aberta, entrei e sentei em frente ao balcão.

Analisei ligeiramente o estabelecimento, estava vazio exceto por um casal de idosos. Pedi um cappuccino, rosquinhas e pão com ovo. Quando trouxeram, praticamente engoli a comida sem mastigar. Fiquei mais um pouco pensando e a campainha da cafeteria soou anunciando que alguém estava entrando. Não dei-me o trabalho de ver quem era, estava distraída tomando meu terceiro café e assistindo ao noticiário. Até que algo seduziu ainda mais minha atenção para a TV:

“[...] da pacata cidade de sessenta mil habitantes, onde um assassinato está sendo apurado”, e a câmera voltou–se para onde alguma hora jazeu o corpo do meu pai. “Marcelo Rodrigues, investidor renomado, morreu esta tarde de quarta–feira, baleado. Sua filha, Maria Gabriela Rodrigues ainda não foi localizada”, uma foto minha tomou o lugar do repórter na tela, a reconheci de um porta retrato que enfeitava a mesa de vidro da sala. A voz, todavia, prosseguia narrando: “Caso alguém reconheça a garota, favor ligar para este número na tela. Aguardem para mais notícias.” Senti meu peito arder, quão rápido batia meu coração. Controlei as lágrimas e respirei fundo. Sentia–me uma bomba relógio, pronta para a detonação.

Observei discretamente ao redor para certificar–me que ninguém havia notado, mas só havia os idosos, e... Minha boca abriu–se num grito silencioso pelo susto – e raiva.

— O que você tá fazendo aqui? – Bradei entre os dentes.

— Cuidando de você. – Eduardo teve a audácia de responder.

Revirei os olhos furiosa.

— Vá à merda. Eu não preciso de uma babá. – Vociferei.

Escutei a campainha entoar outra vez anunciando que os idosos tinham deixado a cafeteria.

— O que houve com você nesse meio tempo, gatinha? – Inquiriu ignorando meu insulto. Empurrei sua mão que tentava se aproximar para longe da minha. – Pega leve.

Eu o encarei com o olhar mais perigoso e ameaçador que consegui, eu estava cheia de adrenalina e muito, muito irritada.

— Vá à merda. – Repeti.

— Calma aí, gatinha. – Ele sorriu.

— Dá pra parar com isso?

Sua boca se moveu como se estivesse prestes a proferir algo, mas foi interrompido pelo sino da loja. Mais três homens entraram.

— Ta na hora da gente ir. – Sussurrou, seu semblante ficou sério e ele segurou minha mão.

— Da gente? Se manca, garoto. – Puxei minha mão e voltei a beber o café.

— Agora. – Sibilou impaciente de forma autoritária.

Senti meu braço ser puxado e, por meio segundo, cheguei a cogitar que ele fosse me beijar – o que, certamente, não seria pior do que estava por vir. Agarrando minha cintura, nos jogou por cima do balcão. Bati o cotovelo com força no chão no momento da queda e gemi caótica. Estava quase me levantando quando ele jogou–se por cima de mim – digamos que essa não foi a pior parte de tudo que aconteceu a seguir.

— O que você pensa que está... – Fui bruscamente interrompida por sua mão na minha boca. Dei–lhe um murro no nariz que sangrou quase imediatamente. O que se procedeu depois disso foi rápido e absurdo demais para que eu percebesse os detalhes.

Um som insuportável de tiros sobrepujou o ambiente, artigos das prateleiras começaram a cair em cima de nós. Senti cacos de vidros machucarem minha pele. Os tiros pareciam inacabáveis. Eduardo levantou o braço sobre a bancada e quando notei, já estava atirando também. O corpo do senhor que nos atendeu estava inerte caído no chão. Não sabia o que pensar. Não dava pra pensar.

Estávamos, qual é mesmo a palavra?

Fodidos.

— A GENTE TEM QUE SAIR DAQUI! – Gritou em meio aos tiros, como se não fosse algo evidente. – CORRE POR AQUELA BRECHA QUE DÁ NA COZINHA! – Instruiu–me, no entanto, balançou a cabeça para o lado oposto, apontando para uma janela de vidro já baleada. Vi seus lábios formarem as palavras: um, dois... vai!

Era a idéia mais estúpida que eu podia seguir. Mas também era a única.

Corri o mais rápido que pude em direção a janela. Uma bala passou próxima à minha nuca e outra atravessou bem a frente dos meus olhos. Caralho! Meu crânio ia virar miojo! Arremessei–me pela janela e, enquanto eu a atravessava, uma bala raspou minha coxa. Inicialmente eu não senti nada, só conseguia sentir o sangue pulsando na minha cabeça. Caí no passeio e saí rolando pela rua.

Um dos homens atravessou a porta, a arma içada pronta para me transformar em farinha, porém, caíra no chão logo em seguida, revelando um Eduardo estranhamente ofegante atrás dele com o revolver apontado para onde antes esteve sua cabeça. Ele cruzou o corpo ao meu encontro: caída no meio da rua. Como da primeira vez que nos vimos.

— Você está bem? – Indagou desesperado, sacudindo–me – GABRIELA, PORRA! RESPONDE QUE ESTÁ BEM! – Senti meu tronco ser erguido e seus braços me enlaçarem.

— To bem, cara. – Respondi inaudível, a cabeça pendendo para trás, demasiadamente tonta. Eduardo afrouxou o abraço para observar meu estado, sua expressão era de pânico. Levei a mão à minha perna e senti algo quente escorrer. Receosa, virei o rosto vagarosamente para ver também.

— PUTA MERDA! – Gritei, então a dor que não senti antes veio como um trem bala colidindo com um tubarão branco. Espremi os olhos mordendo o lábio inferior, o ferimento estava muito feio. Impulsivamente, cravei minhas unhas no braço do loiro.

— Droga, Gabriela! Precisamos dar um jeito nisso.

— É mesmo? Poxa, pensei que fôssemos deixar assim. – Bufei, a boca entreaberta num outro grito que nunca saiu.

Eduardo ignorou minha ironia e antes que eu pudesse falar mais qualquer coisa, o mesmo carregou–me no colo para a direção oposta.

— Me solta! – Bradei entre dentes.

— Acho que não. Agora fica quieta se você não está a fim de morrer. – Senti meu coração congelar, batia muito rápido, porém, nesse momento, foi como se tivesse parado. Como aquela sensação que chamam de borboletas no estômago, só que completamente oposta. Acho que ele percebeu porque completou: – Não por mim, né garota?! Ou não percebeu que estão atrás de você?

Não dava para não perceber. Cerrei os punhos. Não chore, repeti mentalmente.

— O que diabos está acontecendo? – Perguntei enfurecida, estupefata, difícil discernir.

— Agora não é o melhor momento para falarmos sobre isso. – Retorquiu num tom sério, por mais que eu precisasse saber imediatamente, ele tinha razão. E eu temia a resposta.

Eduardo finalmente parou numa viela escondida que eu não teria percebido se ele não tivesse nos enfiado lá. Num malabarismo, o mesmo pegou uma chave no bolso e abriu a porta, checando desconfiado todos os lados, para certificar-se que não estávamos mais sendo seguidos. Senti o ar morno abraçar meu corpo e aquilo seria maravilhoso.

Não fosse minha perna latejando torturantemente.

Ele trancou a porta e continuou andando pelo imóvel inteiramente em madeira clara. Entrou no único cômodo com porta e colocou–me cautelosamente na cama.

— Pode chorar se quiser. – Entoou enquanto partia para outra parte do aposento, a voz, agora, categoricamente mais tranquila do quê há alguns minutos.

— Cala boca. – Murmurei. Mas em seguida, o choro escapou e parecia impossível cessá–lo. Minha perna parecia faltar um pedaço de carne do tamanho de uma moeda – e faltava mesmo. Não conseguia mais olhar para ela, cada vez que a encarava estava pior do que no segundo anterior.

Em menos de vinte e quatro horas minha vida virou completamente pelo avesso. Comecei a esmurrar o travesseiro. Peguei o abajur acima da mesa de cabeceira e o arremessei raivosamente na parede fazendo–o virar migalha. Cerrei os punhos e gritei, minha coxa estava queimando. Eu estava arruinada.

— Voltei... – Anunciou Eduardo adentrando o quarto com uma grande mala de primeiros – segundos e talvez até terceiros – socorros, arrancando–me dos meus axiomas. O loiro ergueu a sobrancelha observando os cacos no chão, mas não comentou a respeito.

— Sai que eu não vou deixar você cuidar desse buraco na minha perna! – Empurrei a cabeça dele que se aproximava pra examinar, engolindo o soluço.

— Então fica com essa merda aí, garota. Deve ser bem melhor. – Rematou fechando a cara e recolhendo o material.

— Não! Espera... – Roguei relutante. Ele se virou – você já fez isso antes?

— Você nem imagina o quanto... – Os olhos castanhos e amarelados fitaram–me e ele sorriu de canto, voltando a abrir a mala.


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Notas finais do capítulo

E então?
[...]



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