Cachecol Azul e Cabelo Vermelho escrita por Lirah Avicus


Capítulo 28
Capítulo 28




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—Você já sabe o final. Por que ainda está lendo?

—Você já sabe que vai morrer. Por que ainda está vivendo?

Quentin Fowler soltou uma risada alta e larga. Não chamou a atenção de ninguém, pois todos ali estavam acostumados com essa reação. Era um restaurante pequeno, porém muito agradável, com muitas mesas e cadeiras no pequeno espaço aberto que o estabelecimento possuía, era hora do brunch, e, portanto, uma hora apropriada para risadas altas e largas.

Violet levantou os olhos do livro que lia, fechando-o e colocando-o sobre a mesa, ao lado da xícara de chá fumegante que lhe pertencia. Juntou as mãos sobre o colo, olhando ao redor. Quentin a observava com um meio sorriso, e seu olhar era indecifrável.

—Você está ótima, vermelhinha. — disse, ainda sorrindo, e seus olhos castanhos escuros brilharam. — Até que eu gostei do seu novo corte.

—Obrigado. — ela disse, baixando a cabeça. — Não acredito em você, mas... Ainda assim agradeço.

—Não estou mentindo, Violet, você está...

—Horrível. — ela completou, olhando-o diretamente nos olhos.. — Eu estou destruída, Quentin. E nem posso me olhar no espelho para tentar consertar qualquer coisa, não me reconheço no espelho.

—Pois é. — ele apertou os lábios. — Agora eu sei disso. Desculpe-me pelo modo como te tratei no Jabez' s, eu achei que você estava me ignorando de propósito.

—Eu não estava.

—Agora eu sei, e sinto muito.

—Tudo bem.

Quentin respirou fundo, brincando com uma colher. O omelete de ambos permanecia intocado. Nenhum dos dois parecia com fome.

—E já pegaram o sujeito?

—Ainda não.

—São uns incompetentes mesmo... Por que não te colocam num local protegido?

—Local protegido?

—Sim, tipo... — ele larga a colher, inclinando-se na direção dela. Tinha os cabelos bem penteados e cortados bem rente, e uma barba rala e castanha. Vestia uma camisa social e uma jaqueta de couro, além de um anel do Manchester United num dos dedos da mão direita. Violet sentiu-se feliz de poder conversar com ele sem precisar chegar muito perto. Estavam em lados opostos na mesa. — Você não se aplica ao Programa de Proteção à Testemunha?

Violet achou graça da pergunta.

—Eu não quero ir morar no meio do nada, com outro nome, longe de tudo o que eu conheço, isso é... Esquisito.

—Prefere morrer?

—Eu não poderia visitar o meu pai, isso é pior do que morrer. E eu já estou num local protegido.

—Mesmo?

—Mesmo.

—Onde?

—Por que eu te diria?

—Eu quero saber se é seguro mesmo.

—Ele é. Ponto.

Quentin cerra os olhos.

—Parece que você está falando de alguém e não de algum lugar.

—Essa conversa tem algum objetivo?

—Não sei... — ele parece não estar interessado. — Você está saindo com algum policial?

—Quentin...

—Por que isso explicaria muita coisa, como sua recusa em ir embora.

—Isso não é mais da sua conta.

Ele sorri de modo matreiro.

—Isso foi um sim?

—Isso foi um "não se meta".

Ele segura uma risada, cruzando os braços, balançando a cabeça continuamente.

—Caramba, Violet, a gente mal terminou e você já está dividindo as pernas.

—Vá para o inferno, — ela rosnou. — você acha que eu estou em condições de estabelecer qualquer relação agora? Eu sofri uma tentativa de assassinato, e isso mais de uma vez, posso sofrer mais vezes, fui sequestrada, cortaram meu cabelo... — a voz dela falhou. Fechou os olhos, respirando fundo. Encara o ex-noivo, decepcionada. — E você preocupado se estou indo para a cama com alguém... Típico.

—Levando-se em conta seu histórico, — ele ergue as sobrancelhas. — foi uma preocupação válida.

Violet cruza os braços, esboçando um sorriso.

—O que posso dizer? Moça vai ao restaurante, namorado é um idiota, namorado maltrata o garçom, garçom é educado, moça volta para pedir desculpas, garçom a chama para sair... Moça aceita o convite.

—Estávamos noivos, Violet.

—Não, você estava noivo, exibindo minha foto para todos os seus colegas e se gabando de ter me fisgado, eu estava solteira, sozinha num apartamento gigante com vista para o Tâmisa, passando noites e noites numa cama com capacidade para quinze pessoas, mas comportando só uma. — ela olha seu omelete, sem sequer um traço de fome. — Você me deixou, eu só aceitei esse fato.

—Eu não te deixei. Por mim ainda estaríamos...

—Você ainda estaria alugando um quarto para mim, enquanto você morava no escritório... Eu não sei por que você me convidou aqui.

—Eu não sei por que você aceitou.

—Eu queria esclarecer as coisas. Queria que entendesse que na verdade eu não guardo ressentimento, que o que aconteceu foi por que estou doente e não com raiva. Eu queria fazer as pazes.

—Você me pareceu bem raivosa agora.

Violet massageia uma das têmporas.

—Isso é por que você, como todo bom homem, insiste em jogar nas minhas costas a culpa pelo relacionamento ter dado errado. A culpa nunca é de vocês, vocês são sempre as vítimas. Se terminam, foram abandonados, se traíram, foram seduzidos, se a moça termina, ela é a vadia louca por outro macho. Vocês nunca assumem.

—Em primeiro lugar, — ele levanta o indicador. — você me traiu. Em segundo lugar, eu não te acho uma vadia. Em terceiro lugar...

—Eu não te traí. Fui idiota o suficiente para só flertar com o garçom. Eu devia ter ficado com ele, quem sabe agora estaria casada com um homem decente.

—Eu sou um homem decente. — ele diz, levemente ofendido.

Violet bate os dedos sobre a mesa, impaciente.

—Não deu certo, ok? Aceite isso e vá em frente. Pare de trazer esse assunto à tona, me sinto mal sempre que te vejo por que sei que você vai desenterrar tudo de novo.

—Você me deixou, Violet.

—Sim. E fiz certo.

Quentin começou a rir discretamente.

—Qual o nome dele?

—Para... — ela diz, ameaçadora.

—É sério, qual o nome do felizardo? Eu sei quem é?

—Já chega, Quentin.

—Você vai acabar se machucando. Devia ir embora, sair daqui, sumir, assim o cara não vai poder te seguir.

Ela dá de ombros.

—Eu não vou deixar que ele controle minha vida, não é justo.E de qualquer forma eu não estou em condições de ir para lugar nenhum.

—Ele vai te pegar.

Violet o encarou, espantada.

—O que disse?

Quentin a fitava agora, e tinha o olhar duro, distante. Parecia odiá-la.

—Ele vai te pegar. Você não vai escapar. Vai morrer, mas não se preocupe, vou comprar um terno bem bonito para usar no seu funeral.

Violet controlava a respiração. Estava realmente assustada.

—Isso não tem graça, Quentin.

—Não é para ser engraçado. — a voz dele era metálica. — Você acha que é especial? Por que só você escaparia? Engraçado sempre pensarmos que não vai acontecer com a gente, mas a verdade é que vai. E é a sua vez.

—Não... Eu vou sobreviver.

—O que te faz ter tanta certeza?

Os olhos dela se enchem de água.

—Ele me prometeu... — murmura.

—Quem te prometeu isso? Hein? — ele agarra o pulso dela, logo o pulso enfaixado, e ela solta um grito de dor. — Quem foi?

—Pare com isso, está me machucando!

—Me diz o nome dele, Violet!

Ela tentou se soltar, mas a dor era grande e o aperto dele mais ainda.

—Não, pare! Socorro! — ela gritava, mas ninguém se mexia. Quentin puxou o pulso dela, fazendo-a cair sobre a mesa. Ela chorava, sentindo seu pulso latejar.

—Pare de gemer, sua chorona!

—Por favor!

As pessoas se levantaram. Todas elas. Ergueram-se de suas cadeiras, e começaram a caminhar na direção dela, formando um círculo ao redor da mesa.

—Seja lá quem for, não vai te proteger... — ele continuava. — Ele não liga! Não se importa com você, ninguém se importa! Você não é nada, e vai morrer sozinha!

—Não! — ela gritou a plenos pulmões, fechando os olhos com força. Quando os abriu, não havia mais ninguém. Apenas ela. E não estava mais no restaurante.

Violet se viu num espaço escuro, onde o chão parecia vidro e não era possível ver o teto nem as paredes. Parecia não ter fim. Ela estava caída sobre o chão liso e frio, ainda com o pulso esticado para frente. Ela o trouxe de volta para si, erguendo-se como pôde, enxugando as lágrimas e olhando ao redor. Pôs-se de pé, abraçando o próprio corpo, tremendo. Vozes longínquas ecoavam palavras que ela não conseguia entender, e um reflexo apagado dela mesma desenhava-se no chão. Ela começou a andar, percebendo que tinha os pés descalços, imaginando como fora parar lá e como sairia de lá. Neste momento ela notou que algo roçava em seus ombros.

Violet ofegou audivelmente.

Seu cabelo. Estava comprido.

Ela passou as mãos por todo o comprimento dos frios, sem decidir se começava a rir ou a chorar. Não era possível, como ele retornara tão rápido? Violet sorriu por um breve momento, algo bom lhe acontecera. Ela virou a cabeça para vê-lo melhor e se deparou com uma caçamba de lixo.

Seu coração pareceu cessar de bater. Ela congelou, encarando aquele objeto grande e verde, que surgira do nada naquela escuridão.

Violet quis ir embora. Quis se afastar, mudar de direção, fugir. Era o inteligente a se fazer. Mas algo a empurrou para frente, na direção da caçamba, a fez esticar a mão e tocar a tampa, que encontrava-se fechada.

—Não... — sussurrou.

Mais vozes ecoaram, desta vez mais próximas. Diziam coisas que ela quase podia entender.

Daí ela abriu a tampa. Deu um passo atrás, sem fôlego. Lá estava o corpo da Dra. Lisa Handler.

Violet perdeu o controle. Levou as mãos à cabeça, dando as costas para a caçamba e se abaixando enquanto gritava.

—Morta! Morta! — sua voz se espalhava por todos os cantos. — Morta!

Todo o desespero retornara, toda a culpa e o temor de ser a próxima, e a certeza de que nenhum lugar era seguro, e ninguém estava a salvo.

Ela sacudia, em pânico, então percebeu que seu cabelo não estava mais lá. Ela abriu os olhos, e viu-o todo no chão. Ela gemeu, tomada de medo, e começou a cambalear para trás, ouvindo cada vez mais perto o som de uma tesoura se abrindo e fechando. O mesmo som que ela ouvira enquanto semi-consciente... Enterrada debaixo da igreja.

Violet andava pelo chão espelhado, sem saber para onde ir. Olhou para si mesma, soltando um som de pânico, vendo sua roupa manchada de sangue. Olhou os próprios braços, e viu-os brancos como neve. Estava morta. O assassino a havia pego.

—Meu Deus... — ela murmurou. — Por favor, não...

—Violet. — ela ouviu. Virou-se na direção da voz, vendo Sherlock onde antes estava a caçamba. Ele estava parado, vestido como de costume, e a olhava fixamente.

Ela sentiu uma calma invadi-la naquele momento. Observou aquela visão com cuidado, percebendo que não se esquecera de nenhum detalhe. Nem mesmo de como o cachecol era sempre enrolado ao redor do pescoço. E o rosto estava lá, como não acontecia com nenhuma outra pessoa. Uma visão tão bonita. Ele era tão bonito. Mas aí surgiu outro sentimento dentro de Violet. Surgiu raiva. Muita raiva.

—O que faz aqui? — ela ofegou. — Você não devia estar aqui! Você não se importa! — ela rugia a plenos pulmões, e chorava sem parar. — Me deixou à mercê do assassino! Olhe o que você fez! Como pôde?

—Venha até mim.

—Não dá... — ela balançou a cabeça. — Eu estou morta aqui.

—Não. — ele respondeu. — Estou saindo daqui, e você vem comigo.

—É tarde... — ela diz, caindo de joelhos, o seu sangue já manchando o chão. A sensação em seu corpo era de dezenas de facas enterradas bem fundo em seu abdômen. — Ele me pegou primeiro.

—Ainda não. — ele disse, a voz imutável. — Eu ainda tenho tempo.

Ela o encarou, e viu que ele sorria. Violet respirou fundo. Talvez não fosse tão tarde...

Ela se ergueu, sentindo que pesava várias toneladas, e escorregaria no próprio sangue, se ele não a amparasse antes disso, abraçando-a com força. Ele a beijou, e ela abraçou o pescoço dele, sentindo o gosto metálico de sangue na boca. Cravou os dedos em seu couro cabeludo, enrolando-os nos cachos, enquanto o sentia apertá-la contra si, uma mão prendendo sua cintura e a outra firme numa de suas coxas. Violet gemeu, desta vez não de medo, mas por que aquilo pareceu real. Real até demais. Ela descansou a cabeça no ombro dele, respirando entrecortado, e ele começou a niná-la em seu abraço.

—Hora de acordar, pequenina.

Ao dizer isso, ele se desfez em névoa. Violet se afastou, vendo as sombras brancas restantes dançando em suas mãos, agora vazias. Ela olhou em volta, voltando a sentir o coração disparar.

—Sherlock! — gritou. Sem obter resposta, abaixou-se no chão, mãos na cabeça, encolhendo-se como um feto e permanecendo assim, tremendo como se estivesse com frio. Ficou assim, completamente só naquele lugar escuro.

Uma sensação de flutuar a tomou, como se estivesse sobre um lago calmo. Flutuou por uma imensidão sem fim até que começou a sentir que o lago tinha uma superfície estranhamente sedosa. E fofa. Ela não conseguia se mover, mas pôde perceber o mundo real engolfando-a, e a cama onde estava surgindo debaixo de si. Ela sentiu frio, vinha um vento ameno, mas gelado sobre ela. Ela finalmente conseguiu mover-se, abrindo os olhos lentamente e vendo-se no quarto, no asilo.

O apartamento dos três velhinhos.

Violet se levantou devagar. Não queria fazer barulho, nem sentir tonteira alguma, pois sabia que, se por acaso caísse, de algum lugar surgiria Sherlock, que por sua vez checaria qualquer ferimento, veria se ela estava viva, não diria palavra e sumiria sem maiores explicações. Ela sentiu-se um experimento que deu certo, algo do qual o cientista se orgulha muito, se esforça para manter, mas não tem laços com aquilo. Para Sherlock, ela era um experimento, algo a ser estudado. Viu-se como um pertence. Não gostou disso.

Caminhou até a porta, encostando o ouvido na madeira. Não ouvindo nenhum som, abriu a porta, vendo a sala pela primeira vez à noite. Sob a luz da lua, sua silhueta fundia-se com a sombra dos móveis, e ela quase achou que aquilo ainda era um sonho. Temeu estar delirando.

Ela olhou para a outra sala, e ficou estática. Sherlock estava lá, sentado numa poltrona, com as mãos à frente do rosto. Nesta posição, era claro que meditava. Talvez não fosse real, mas, de qualquer forma, estava lá. Ela deu um passo atrás, não queria que ele percebesse sua presença. Uma nuvem passou em frente à lua, encobrindo-a, e Violet ficou parada, vendo tudo escurecer. Tinha que voltar para o quarto o mais rápido possível. Foi retrocedendo pé ante pé, apalpando os móveis para não esbarrar neles, até que seus dedos roçaram na moldura da porta. Ela virou-se rapidamente, entrando e fechando a porta. Levou a mão ao peito, acalmando-se. Já começava a dar sinais de cansaço, ainda estava se recuperando fisicamente, não encontrava-se de forma alguma em plena forma.

—Vai voltar a descansar ou está planejando fugir?

Ela olhou na direção da parede ao lado da janela. Levara um susto, mas não estava surpresa. Ela coçou um dos olhos, ainda aérea.

—Fugir? — ela também sussurrou. — Como? Vai me achar caída e desmaiada já no gramado lá fora.

—Meu chute é que você desmaiaria na escada.

—Provavelmente você tem razão.

Sherlock ficou em silêncio algum tempo, que para Violet pareceu uma eternidade.

—Você teve um pesadelo.

Ela sorriu largamente. Tremia todo o corpo, mas dessa vez era frio mesmo.

—Pergunte-me, Sherlock. Eu sei que você sabe, mas... Finja que não sabe.

—Eu não consigo. É quase um vício.

—Você é viciado em saber tudo sobre as pessoas?

—Não. Em você.

Violet escuta isso, olha para o teto por um instante, daí começa a rir.

—Não faça isso. — dizia, ainda rindo. — Isso não.

—Estou sendo sincero.

—Eu posso perdoar tudo, até você ter me entregado de bandeja para o assassino... Mas isso não.

—Isso o quê?

O sorriso dela se desfaz, e surge em seus olhos um brilho quase assassino.

—Não brinque comigo.

Ele fez o cenho desapontado.

—Logo agora que você se tornou meu brinquedo favorito?

—Você é um filho da...

—Devia encarar isso como um elogio. — ele caminha na direção dela. — Pela maioria das pessoas nada resta em mim além de repulsa, mas você... Você me fascina. Eu fico orbitando ao seu redor, faço isso desde o primeiro dia, e você nunca percebeu. Sua gravidade me puxa.

—Eu não atraio ninguém. — ela diz, seca.

—Você é tão cega.

—Ninguém além de retardados.

—Sou um deles.

Ela pensou no que dizer. Não sabia. Seu cérebro se transformara numa superfície em branco.

—Por quê?

—Tenho meus motivos.

—Parece assustador.

—Eu sou assustador. Sou um monstro. Mas você não precisa se assustar.

—Como não? — ela se esforçava muito em manter a voz em tom baixo. — Como vou saber... Seus sentimentos?

—Sentimento? — ele sorriu. — Sentimento é um defeito químico encontrado no lado perdedor... Por isso estou perdendo.

Violet encara Sherlock, em choque. Corria por seu corpo algo extremamente gelado, e isto dividia lugar com algo extremamente quente.

—Eu... — ela gaguejou. — Eu sonhei com você.

—Eu sei. — ele pega as mãos dela, e as beija ternamente. Daí coloca uma de suas mãos em seu ombro.

—Você está apertando meu ombro. — ela diz.

—Eu prometi nunca mais te drogar.

—Eu não me lembro disso.

—Eu não prometi para você.

Violet ouviu isso, daí não ouviu mais nada.

***

John Watson desceu do táxi que o trouxera, pagou o motorista, que partiu, e encarou a cena à sua frente. Viu uma imensidão de tijolinhos encaixados uns nos outros no chão, duas fonte, um obelisco gigante e um pequeno labirinto feito de cerca-viva. Trafalgar Square. Bem mais vazia a esta hora da noite.

Ele caminhou a passos largos e rápidos, fechando até em cima sua jaqueta, e amaldiçoando o mau tempo londrino. Cruzou com a figura de bronze do Almirante Nelson, amaldiçoando-o também, por motivos desconhecidos, e chegou ao lado do obelisco. Ficou algum tempo olhando em volta, sem ver viva alma. A praça estava deserta. Deserta e silenciosa. Ouvia-se apenas o som distante de carros e buzinas, e o vento, que corria livre por aquele lugar, provavelmente feliz por não ter prédios para impedir sua passagem. John sentiu um calafrio, amaldiçoando o vento também. Pegou o celular, discando um número e esperando-o tocar até cansar. Após o aviso da caixa postal, começou a falar.

—Só para constar, a culpa disso tudo é sua.

Ele desligou o telefone, guardando-o no bolso, e voltando a caminhar, avistando uma viatura e indo na direção dela. Ele chegou, pela primeira vez percebendo como aquela praça era grande, e olhou dentro do carro. Não havia ninguém.

John deu a volta no veículo, procurando algum sinal de vida. Não achando, entrou no carro, sentando-se no banco do motorista, e observando todo a viatura por dentro. Naquele momento, quis muito que Sherlock estivesse ali...

Não havia sinais de que alguém estivera lá à paisana. Nem mesmo restos de comida. John olhou debaixo dos bancos, na esperança de encontrar algum copo descartável ou resto de hambúrguer. Nada. Ao erguer a cabeça, notou algo estranho. O walkie talkie. Tinha o fio cortado. E algo pontiagudo fora cravado várias vezes sobre o rádio, tornando-o inutilizável. John endireitou-se no banco, pensando com cuidado. Olhou para o banco em que estava sentado, e notou um furo limpo na altura do seu peito no estofado. Pegou novamente seu celular, ligando para Dimmock. Ninguém atendeu.

—O que houve aqui? — murmurou consigo mesmo.

Ele saiu do veículo, encarando a construção à sua frente. Empresas Ward. Respirou fundo, passando a mão sobre o bolso da jaqueta onde se encontrava seu revólver. Começou a caminhar, respirando cada vez mais pesadamente.

Naquele exato momento, ele estava tentando recobrar seus nervos de soldado...

***

—Sherlock... Sherlock...

Sherlock sentiu-se cutucado por algo estreito, ergueu a cabeça e viu a silhueta de Godel, segurando sua bengala e cutucando-o com ela. Estava sentado no chão, de pernas cruzadas, ao lado da cama em que Violet dormia. Ao divisar o rosto do professor, ficou completamente desperto.

—O quê?

—Pegue sua arma. — Godel disse, severo. — Há alguém aqui.

Graham posta-se ao lado de Godel, os dois olhando pela janela, através da cortina. Sherlock se levantou, enfiando a mão debaixo do travesseiro de Violet e tirando um revólver. Hombach surge com seu rifle, e o carrega com extrema facilidade.

—Fique de guarda aqui, lieber. — ordenou. — Vocês dois, levem a moça para dentro da despensa.

Graham vai até a parede oposta ao espelho, puxando uma maçaneta branca que quase se confundia com a pintura da parede, e abriu uma porta, empurrando Godel para dentro dela.

—Não empurre, maldição! — ele rosnou baixinho.

—Então entre, temos uma invasão.

Sherlock levanta Violet da cama, sacudindo-a.

—Acorde, pequenina... — repetia.

Ela abriu os olhos, sonolenta.

—O que houve?

—Preciso que fique com Graham e Godel. — ele a carrega até dentro da despensa, onde ela conseguiu ficar pé. Ela se vira para ele, assustada.

—O que vai fazer?

—Não façam barulho. — ele diz, fechando a porta.

Ele vai até Hombach, que lhe estende uma espingarda.

—Eu tenho uma arma.

—Sim, o equivalente a uma faquinha nesta situação. Se quiser posso atear fogo em nós dois.

Sherlock guarda o revólver no bolso, acompanhando o professor até a sala. Os dois carregam suas armas ao mesmo tempo, postando-se em frente à porta e detrás da mesa. Uma garrafa jazia equilibrada, de cabeça para baixo, sobre a maçaneta.

—Quando ela cair... — diz Hombach. — Atire.

A despensa não era, de fato, uma despensa. Servia para guardar coisas como bastões de beisebol, jornais velhos e pastas de conteúdo desconhecido. Violet encostou-se na estante de jornais velhos, prendendo a respiração. Queria ouvir qualquer ruído vindo de fora.

—Não prenda a respiração. — diz Graham. — Assim o assassino não terá nenhum trabalho.

Um estrondo de vidro quebrando. Dois tiros. Os três se encolhem naquela sala pequena.

—Ele está aqui. — murmura Godel. — Não foi atingido. Estava apenas testando nosso poder de fogo.

Silêncio. A cada palavra do professor, Violet se encolhia mais naquele lugar apertado.

—Vai tentar chegar aqui. — diz Graham.

—Deus... — ela murmura.

Um estrondo de porta se fechando. Godel tem um sobressalto.

—Ele trancou a porta do quarto!

A maçaneta da despensa estoura com um tiro, ao mesmo tempo em que a porta do quarto é arrebentada com um tiro de espingarda. Violet é jogada no chão, as mãos protegendo a cabeça. Conserva-se assim, ouvindo tiros e som de coisas quebrando, até que escuta um baque surdo e o ruído de um corpo indo ao chão. Ela abre os olhos, erguendo a cabeça. Vê Graham e Godel na mesma posição que ela, Hombach encostado na moldura da porta da sala, rifle em punho, e Sherlock com pé sobre a cabeça de um homem deitado no chão, apontando-lhe a espingarda. Violet colocou-se de pé, caminhando ao redor daquela cena, não acreditando no que via. Não podia ser.

Ela não reconhecia rostos. Perdera essa capacidade. Mas ela havia treinado muito, e começara a aprender a reconhecer roupas, corpos, detalhes. Detalhes. Como o cabelo preto e liso, penteado para o lado, a corrente de prata com o pingente de São Bartolomeu, as unhas limpas por se lidar muito com comida. Os olhos azuis.

Violet sentiu seu mundo desabar. Mal conseguiu balbuciar.

—Jet?

Jet Williams foi levantado do chão e sentado rudemente numa cadeira que Hombach trouxera. Os dois homens, Sherlock e Hombach, permaneciam de guarda, com suas armas em punho. Williams mantinha a cabeça baixa, e seu nariz sangrava.

—Boa cabeçada. — disse Graham.

—Obrigado. — diz Sherlock. — Vejam só. Menos um na lista. Faltam dois.

Jet levantou os olhos, espantadíssimo. Sherlock sorriu.

—O quê? Você sabe quem eu sou, devia saber que eu descobriria.

O balconista do Café Jabez’ s dá de ombros. Violet o encarava, sem reação.

—Esperava te matar antes.

—Ah, mas você é incompetente demais para tal feito... Agora... — Sherlock falava como uma serpente prestes a dar o bote. — Onde estão os outros?

—Não sei.

—Onde... — Sherlock aponta-lhe a espingarda, e Jet fecha os olhos. — Estão os outros?

—Eles não me disseram. Só disseram o que eu tinha de fazer. É assim que funciona.

—Um cobre o outro, hein? — diz Hombach. — Trabalho em equipe.

—Assim como vocês. — Jet rebate.

—Sim. Exceto que somos melhores.

—Não são nada. — Jet ri. — E não podem me ameaçar. Não têm autoridade para isso.

—Podemos te machucar. — diz Godel. — E depois te atiramos pela janela e dizemos que você saltou.

—Quando começaram a trabalhar juntos? — pergunta Graham.

—Faz uns dois anos.

—E escolhiam as mulheres em conjunto ou o quê?

—Se algum gostava duma garota ele pegava ela, não tinha nada de conjunto. — Jet revira os olhos num suspiro. — Não vou falar mais nada. Levem-me logo para a polícia, estou cheio de vocês.

—Talvez eu te deixe aqui. — diz Sherlock.

—E por quê isso iria me incomodar?

—O nome Benjamin Knight significa algo para você?

Jet engoliu em seco, olhando para a janela.

—Não... — ofega.

—O quê?

—Violet, eu sinto... — ele não terminou a frase. Sua cabeça caiu para trás, e um buraco ensanguentado abriu-se em sua testa.

Todos os homens se viraram, estáticos.

Violet estava parada em frente à janela, com a luz nebulosa da noite a desenhar seu corpo magro. Ela segurava o revólver com as duas mãos, e tinha os olhos vermelhos, de onde escorriam lágrimas quentes. A arma tremia em suas mãos, e ela ainda a apontava para o corpo sem vida de Jet Williams.

Sherlock passou a mão em seu bolso. Sutilmente, Violet tirara o revólver de seu casaco, aproveitando que ele conversava com o criminoso. E ela atirou.

—Isso... — diz Godel. — Foi inesperado.

—Violet... — Sherlock foi na direção dela. — Dê-me esse revólver.

—Existe mais de um? — ela perguntou, sem se mover.

—Você não pode matá-los.

—Eles merecem morrer...

—Me dê essa arma.

—Olhe o que eles fizeram! — ela o encara, soluçando. — Ele trabalhava comigo, eu nunca suspeitei, achei que éramos amigos! Veja... Veja o que ele fez comigo!

—Não sabemos se foi ele.

—E não vamos saber! — ela afirmou, decidida. — Por que ele está morto!

—Essa informação está bem abalizada em fatos...

—Cale a boca, Godel.

—Eu confiei nele, Sherlock! — neste momento, Violet pareceu finalmente desabar. — Quantas vezes eu confiei nele, e o desgraçado fazendo coisas... Tão horríveis! Ele merecia morrer! Todos eles merecem morrer!

—Merecem. — ele diz, pegando a arma lentamente e tirando-a da mão dela. — Mas você não vai matá-los. Não tem que conviver com isso.

—Eu posso...

—Não, não pode.

Ela olha o corpo novamente, e seu ar falta. Sherlock guarda a arma no bolso, abraçando Violet.

—Eu matei ele! — ela afunda a cabeça no peito dele, chorando audivelmente. — Meu Deus, eu matei ele!

—Não, não matou. — diz Hombach, mirando a espingarda na direção da janela e atirando à esmo. — Eu matei.

Sherlock ia dizer algo, quando recebe uma ligação. Ele a atende, e ouve sons de luta e coisas se partindo. Fora isso, uma palavra, gritada vez após vez.

Ward! É o Ward! Ward!

A ligação cai. Sherlock sente seus músculos se retesando. Sua respiração fica entrecortada. Era hora da batalha final.


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