Cachecol Azul e Cabelo Vermelho escrita por Lirah Avicus


Capítulo 24
Capítulo 24




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Escuridão.

Silêncio.

A sensação de que não se veria a luz do sol novamente.

Solidão.

Pânico.

Nesgas sombras se movimentando. Ruídos. Pequenos pontinhos luminosos, uma última tentativa dos olhos de enxergar alguma coisa. Sombras dançantes. Fantasmas.

Impossível mover-se. Pernas formigando. Mãos insensíveis, presas para o alto. Seriam algemas ou uma simples corda?

Dificuldade em respirar. O corpo se verga. O ar não é suficiente.

Um ruído suspeito. Coração acelerado. Boca presa, garganta seca. Deus, não deixe ser ele de novo...

Fim dos pontos luminosos. Olhos queimando. Impossível saber quando se está de olhos abertos ou fechados. Dor nos antebraços.

Dor no corpo inteiro. Na cabeça. Medo. Perda de consciência. Aquele seria seu fim.

Um estrondo ecoa na imensidão escura. Vozes indistintas circulam.

—Traga lanterna!

—Olhe mais para lá!

—Céus, veja estas marcas pagãs...

—Nem sempre este lugar foi cristão, homem.

As vozes se afastam. Não há como chamá-las de volta.

Falta de ar. Desespero mudo.

Perda de consciência.

***

—Sherlock, você deveria esperar...

John não terminou sua frase. Não teve tempo. Antes que completasse seu aviso, Sherlock derrubava a porta de madeira com um chute. Entrou sem maiores delongas, ligando uma lanterna, e John não viu remédio senão segui-lo.

Na maioria das vezes, nós nos preocupamos com quantidade. É da natureza humana, para qualquer empreendimento, sentir a necessidade, e a falta, de mais pessoas participando. Não importa a empreitada, sempre queremos que mais alguém esteja lá, conosco. Especialmente quando fazemos algo errado, por que, se porventura pêgos, quanto mais gente metida na mesma encrenca, melhor. John também pensava assim. Ele também preferia estar acompanhado a estar só, e fazia questão de não fazer coisa nenhuma sozinho, apenas quando era estritamente necessário. Ele era humano, afinal. Mas Sherlock não. Ele não se importava em fazer as coisas sozinho. Ou em empreender sozinho. Ou em fazer coisas erradas sozinho. Na verdade, preferia este estado, e o procurava, sempre que possível. Por isso não vira empecilho em derrubar uma das portas de acesso aos porões debaixo da Catedral St. Paul, mesmo com o discordar do amigo.

A Catedral St. Paul é uma catedral anglicana, localizada em Ludgate Hill, e sede do Bispo de Londres. Construída em 604 d.C., apenas como uma igrejinha de madeira, foi reformada dezenas de vezes, o suficiente para que fosse aumentada e polida, e incendiada após isso, de modo que agora sua estrutura foi erguida muito mais resistente. De fato, o fogo torna tudo mais forte, ou então destrói este tudo. Abaixo dela, catacumbas pouco iluminadas encerram os corpos de ilustres cidadãos britânicos, como Florence Nightingale e John Wycliffe. Hoje, este lugar subterrâneo está fechado e trancado a visitações.

—Sherlock, espere Dimmock chegar! — pediu John, entrando e descendo uma pequena escada, ligando sua lanterna e olhando em volta. Viu paredes de tijolos nus e poeira misturada a mofo enchendo o ar e dançando sob a luz da lanterna. Observando aquela imensidão escura de teto baixo, ele pensava em muitas coisas. Pensava se encontrariam Violet ou apenas o corpo dela. Pensava se encontrariam o assassino. Pensava se o assassino os encontraria. Mais do que isso, pensava na conversa que tivera poucas horas antes, naquela tarde estranha, com o Holmes mais velho. —Vamos acabar nos perdendo aqui dentro... — ele finalmente falou. — Se é que já não estou perdido.

—Dimmock... — Sherlock riu. Ele falava, e John procurava seguir o som de sua voz até encontrar a luz de sua lanterna. — Aquele paquiderme enviou dois policiais tão estúpidos quanto ele, que voltaram dizendo que não haviam visto nada por que estava muito escuro... — ele solta um rosnado frustrado.— Não sei como você conseguiu me convencer a esperar sentado o retorno deles...

—Eu sei. — diz John, vendo algo chamativo, aproximando-se de uma mancha na parede para ver melhor mas, ao notar que aquela mancha se mexia, afastou-se rapidamente. — Eu falei que você já havia feito estragos suficientes fazendo coisas sem contar para ninguém. — John para de andar, pensativo. — E pensar que eu também não contei...

—Você fez a coisa certa. — Sherlock continua andando, lanterna em punho. — Ninguém mais conseguiria achá-la.

—Você ainda não a achou. — recorda John. Sherlock solta uma risadinha irônica, daí repentinamente seu sorriso se desfaz.

—John, ajude-me!

John corre na direção da voz do amigo. Encontra-o rapidamente, mas o que vê o faz congelar a certa distância. Por pouco não derrubou sua lanterna.
Ratos. Dezenas deles. E Sherlock de joelhos, afastando-os de cima do corpo inerte de Violet Hunter.

Ela estava lá, presa a uma pilastra de sustentação da grossura de cinco homens juntos, tendo uma corda envolta em seus pulsos, prendendo-os acima de sua cabeça. Sua cintura também tinha uma corda ao redor, e ela jazia sentada no chão empoeirado.

Sherlock espantou as criaturas roedoras, certamente atraídas pelos pequenos arranhões ensanguentados, que correram para dentro de buracos que estavam por toda parte, cortou as cordas com um canivete que trouxera consigo, e deitou Violet no chão, checando seu pulso e respiração. Mesmo em choque, John pôde ver que suas mãos, normalmente firmes, tremiam.

—John, pense na vida uma outra hora, preciso de você aqui!

John Watson ajoelhou-se ao lado daquela moça desacordada, pálida e machucada, colocando o ouvido sobre seu peito.Checou também todo o corpo, à procura de ferimentos sérios. Segurou seu pulso, olhando o relógio. Demorou a marcar os segundos. Também ele tremia.

—Ela tem pulso forte, contusões superficiais, podemos levá-la ao hospital.

—Excelente. — Sherlock suspirou, levantando-a do chão com cuidado. John também se levantou, não conseguindo se conter.

—Sherlock, o cabelo dela... — ele encarou o amigo, suplicante. — O que ele fez?

As horas seguintes se passaram como um sopro. No momento em que saíram das catacumbas, haviam dezenas de policiais os esperando, muitas viaturas, e para o alívio dos dois amigos, uma ambulância. Era bem lógico quem havia vindo com reforços. Lestrade. Parado à frente dos outros policiais, pareceu soltar um fôlego que segurava havia séculos, quando viu Sherlock colocar na ambulância alguém que ele tinha certeza de que seria colocado num rabecão. Após a ida ao hospital, muitas perguntas e congratulações, e mais horas de espera num corredor, o cansaço era inevitável. E John se sentou, sem expressão nenhuma no rosto, olhando para o nada, ao lado da recepção da ala de cuidados intensivos do hospital Queen Anne. A verdade é que ele não se sentia bem naquele lugar. Poucas pessoas se sentem bem num hospital, mas ele tinha um motivo especial para isso. Não se sentia bem desde que a boa Dra. Lisa Handler morrera sob circunstâncias tão trágicas. E o assassino profanara seu funeral. John fechou o cenho. Seria melhor que o assassino, seja lá quem fosse, não aparecesse na sua frente, pois ele não hesitaria em dar-lhe uma boa lição. Não planejava matá-lo, mas não se responsabilizaria caso isso acontecesse. Ele agiria como soldado, não médico.

John olhou em volta, vendo enfermeiros e médicos trafegando nas mais variadas direções. Estava sozinho naquele corredor havia algum tempo, pois Sherlock se recusara a deixar o quarto em que Violet estava internada. Talvez fosse culpa, talvez outra coisa, mas não houve quem o demovesse de ficar de guarda, estóico, ao lado da cama onde sua cliente jazia. Houve quem achasse que era culpa, por ele ter permitido que ela fosse pêga, houve quem achasse que era temor de novo sequestro, houve ainda quem não achou nada, pois estava cansado demais para achar qualquer coisa. Afinal, era mais de 3 da madrugada. John não achava, não queria achar, preferia permanecer sem pensar no assunto, pois temia o que acharia. Enchera sua mente de informações novas sobre o amigo, Mycroft fizera este favor, e agora ele não sabia o que achar. Ficou assim em silêncio, sentado naquele corredor, esperando algo ocorrer e rezando para que não ocorresse nada.

John Watson pensou. Estava remoendo seus pensamentos. Assim como o alimento, que deve ser comido, mas isso não basta. Há necessidade de digestão. Os pensamentos também são assim, nós os temos, mas isso não basta. É necessário digeri-los.

Lestrade se aproxima, uma mão no bolso, outra segurando um celular. John fitou-o, sem se levantar.

—Alguma coisa?

—Acabei de falar com o chefe, não vamos avisar a imprensa. De agora em diante tudo ficará na mais completa discrição.

—Ok.

Lestrade guardou seu celular no bolso.

—Você está bem?

—Achamos ela. Isso é o que importa.

—Sherlock não sai do quarto dela... — diz Lestrade, parecendo feliz de ter com quem conversar, e não querendo que a conversa morresse.

—Pois é.

—Eles... Bem... — o detetive procurava palavras apropriadas. — Eles têm... Eles são... Alguma... Coisa?

John faz o cenho severo, voltando a olhar para frente.

—Para o bem dela, espero que não.

John se arrependeu do que disse. Falara por impulso, lembrando do que Sherlock fizera, o que acarretou todo o stress que viera depois. Estava com raiva, esperava mais do amigo, ainda mais depois de tanto tempo de esforços em colocar um pouco de humanidade nele. Teria sido tudo em vão?

Ele cruzou os braços, cruzando também as pernas. Ficou assim, todo enrolado, mimando sua raiva. Virara um bolinho de raiva.

Sherlock a drogou. Ele colocou, seja lá onde, a droga do medo, a H.O.U.N.D., e deu para ela sem pestanejar. Ou então pestanejara, não importa. Onde ele arranjara mais daquele composto químico infernal, John não fazia ideia, e isso também não vinha ao caso. Como alguém que se importa faria uma coisa dessas?

Em defesa do amigo, John pensou, Sherlock faria isso com qualquer pessoa, inclusive consigo mesmo, se ele acreditasse que era necessário para a solução do caso. Lembrou-se do primeiro caso, O Estudo em Rosa, quando Sherlock por pouco não tomara uma pílula cheia de cianureto, e isso só para provar que estava certo. Daí lembrou-se de quando Sherlock também o drogara com a H.O.U.N.D, e ele saiu vendo cachorros gigantes saídos do próprio inferno. De fato, não era pessoal.

Ele se levantou, caminhando até o quarto onde Violet estava. Entrou, e encontrou Sherlock sentado ao lado da cama, celular na mão, digitando rapidamente enquanto o celular dava vários apitos de mensagem enviada. Sequer ergueu a cabeça.

—Como ela está?

—Viva. — foi a única resposta. John assentiu, voltando-se para a acamada.

Violet Hunter estava deitada, inconsciente. Tinha tubos finos entrando por seu nariz e mão direita, conectando-a a um suporte de metal ao lado da cama que sustentava pacotes pequenos de plástico cheios de fluidos. Do outro lado, um aparelho apresentando os sinais vitais. Eram fracos, mas constantes. Ela viveria. Seu rosto e braços estavam arranhados, e John não conseguiu dizer se aquilo era culpa do assassino, ou dos ratos. Não haviam marcas de violência. O assassino não a agrediu. Haviam sim marcas nos braços, mas provavelmente por que ele a carregou e ela não parou de se debater. Lutara de novo. De novo, perdera. John saiu do quarto, parando na frente da porta. Imaginava se a justiça de cima realmente existia, e se o assassino pagaria de modo equitativo o que desferira naquela moça.

—Justiça é equilíbrio, John. — Sherlock surgiu ao seu lado, ainda digitando. — Sempre pagamos por nossos pecados no mesmo nível em que os cometemos.

—Então alguém vai te drogar e te amarrar debaixo de uma igreja?

Sherlock soltou uma gargalhada contida.

—Isso satisfaria seu senso de justiça?

—Talvez eu abrandasse sua punição por você tê-la encontrado.

Sherlock terminou de digitar, baixando o celular.

—O assassino vai pagar, John. Eu vou pagar. Todos vão pagar. A única dúvida é quando.

—Você vai fazer ele pagar, não vai? — John falava, e observava o corredor. — Vai fazê-lo pagar... Não é?

Os dois se encaram, e os olhos de Sherlock Holmes brilham.

—Até o último penny.

—Ainda usando seu celular?

—Não seja ridículo, este celular é seu.

—Quê?

—Socorro!!

O grito viera de dentro do quarto. Assim como o apito da máquina, avisando o aumento vertiginoso dos batimentos. Os enfermeiros entraram, agarrando Violet pelos braços, impedindo-a de arrancar os tubos presos a si. Ela se debatia à plena força, gritando e chorando, e acertando um belo chute num dos enfermeiros, que cambaleou para trás. Estava desesperada.

Sherlock irrompeu entre os enfermeiros, empurrando-os para longe dela e abraçando-a, segurando seu rosto e forçando-a a encará-lo. Ela ainda gritava, e tentava desvencilhar-se dele.

—Me larga!

—Violet, olhe para mim!

—Não!

—Olhe para mim! — ela finalmente obedeceu, pregando seus olhos lívidos em seu rosto. Ao fazer isso, começou a se acalmar. — Você me conhece... Eu te salvei... Você está segura.

Ela ouvia a voz dele, e seu corpo amoleceu. Sherlock olhou para o lado e viu que uma enfermeira injetara um sedativo no soro dela. Seu cenho escureceu, e a enfermeira se afastou, erguendo as mãos.

—Sinto muito. — foi o que disse, saindo do quarto velozmente.

John entrou no quarto, a tempo de ver Sherlock deitar Violet com cuidado, cobrindo-a com um lençol. Parou ao pé da cama. Ainda se lembrava daquela tarde, daquela tarde estranha, e tudo o que via, via sob uma luz totalmente diferente.

Sentou-se numa cadeira, remoendo e digerindo seus pensamentos.

***

—Saia daqui.

—Isso é importante.

—Vá se danar...

Aquilo não saíra num berro. Saíra num rosnado, num sibilar de serpente. John dissera isso sorrindo, e isso era algo perigoso. Quando estava com raiva, John revirava os olhos. Quando estava realmente com raiva, John gritava. Quando estava furioso, John atacava algo, na maioria das vezes um móvel. Ou Sherlock. Mas quando estava assassino, John sorria.

Mycroft Holmes ergueu as mãos, apaziguador.

—Não estou aqui para irritá-lo.

—Mesmo? E o que diabos o traz aqui?

—Sei o que o enfurece. Sei o que ele fez.

—Isso deveria me fazer ficar mais tranquilo?

—Só estou dizendo que eu entendo.

—E você fará algo?

—Não, mas achei que dizer que entendo o faria se sentir melhor.

John fecha os olhos.

—Atire em si mesmo, Mycroft, por favor, eu empresto minha arma.

Mycroft se senta na poltrona de Sherlock, mas ao notar que John o olhara de modo ameaçador, levanta-se e se senta no sofá grande. Coloca o guarda-chuva ao seu lado, cruzando as pernas.

—Preciso falar com você.

—O que é?

—Sente-se, John.

—Vou me sentar quando eu quiser.

Aquela tarde era estranha. Tudo parecia estranho, indistinto, desconhecido. Até o tempo estava estranho. Sustentava nuvens carregadas, mas não chovia. E John se sentia estranho. Não gostou disso, e isso o deixou mal humorado.

Mycroft junta as sobrancelhas, confuso.

—Por que está com raiva de mim, se foi o Sherlock...

—Estou com raiva de tudo, só que foi logo você que apareceu.

Ele baixa a cabeça, pensativo.

—Entendo. De qualquer forma, foi excelente encontrá-lo, devo dizer. Vim aqui esperando encontrar meu irmão, e assim perguntar-lhe onde você estava, mas você está aqui. — ele sorriu largamente. — Poupou-me dois serviços.

—Quais?

—Encontrar você e fazer meu irmão cooperar.
John coça a cabeça, impaciente.

—Diga logo o que você quer, Mycroft.

—Quero que tire Sherlock deste caso.

—Como é?

—Convença-o a abandoná-lo.

—De forma nenhuma! Ele é o único que pode solucioná-lo!

—Mas a que preço, John...

—O que quer dizer?

Mycroft junta as mãos, apoiando os cotovelos sobre os joelhos.

—Você soube que Sherlock visitou Pentonville?

—A penitenciária... O que tem isso? Sherlock se enfia em lugares bem piores que uma prisão.

—Não tenho dúvida disso, mas ele foi lá visitar um preso muito especial... Benjamin Knight.

John dá de ombros.

—Esse nome era para ser conhecido ou...

—Benjamin Knight é um psicopata, responsável pela morte de seis pessoas. É inteligente a nível genial, metódico, perfeccionista, e treinado em todos os tipos de combate e armas de fogo.

—Ele parece um doce.

—Sherlock o visitou por que acredita que ele seja a chave para descobrir o assassino do caso da... Moça ruiva.

John gesticula sem objetivo.

—Se ele acha isso... Ele provavelmente está certo.

—Ele está certo, mas esse não é o ponto. O ponto é o que Knight é, e como isso pode influenciar meu irmão.

—O que ele é?

Mycroft desvia o olhar, fitando a janela.

—Você sabe a diferença entre um neandertal e um homem?

—Você é idiota?

—O homem é uma forma evoluída, adaptada. E resultou na extinção de seu antepassado.

—Mycroft, eu não estou entendendo nada, o que tem esse homem que o faz ser tão especial?

—Ele é um caçador. — Mycroft vira-se para John. —Ele caça seus semelhantes.

John medita algum tempo, daí fala:

—Ele mata... Assassinos?

—Um serial killer que persegue serial killers. — a expressão de Mycroft era gravíssima. — Todos que ele matou eram assassinos de sangue frio. E não tiveram a menor chance. Consegue perceber o perigo agora?

—Sherlock... Pode...

—Meu irmão também é um caçador... Um matador de dragões. Mas sua adrenalina vem da caçada, não de destruir a caça. Mas todos evoluímos. O que impediria Sherlock de evoluir também? O que o impede de perceber, eventualmente, que seria muito melhor caçar e ele mesmo rasgar sua presa entre as unhas? O corpo policial é patético, o sistema penal nem se fala, por que ele ainda não pensou nisso? Não sei. Mas ele vai pensar, e seu contato com Knight apenas acelerará o processo.

John abana a cabeça negativamente.

—Sherlock não faria isso, ele não é um assassino.

—Ele já matou, John. — ele cerra os olhos. — Magnussen. Ele está morto, e quem colocou uma bala na cabeça dele foi Sherlock.

—Foi necessário! Ele fez isso...

—Por você e sua família... — disse Mycroft com desprezo. — Mas esse não é o ponto crítico? Pessoas com quem Sherlock se importa?

—De quem você está falando?

O Holmes mais velho suspirou, fingindo-se apaixonado.

—Hmm... Eu posso fechar os olhos e ver um tufo de lindos cabelos vermelhos...

—Está brincando, não é?

—Eu não gosto de brincar. — Mycroft voltou a sua face séria. — Sherlock está lidando com algo muito perigoso, um ponto específico muito sensível nele. Ele nega, mas não pode esconder de mim.

—Que ponto sensível?

—Violet. Ela é ruiva.
—E daí?

Mycroft recosta-se no sofá.

—Há muitos anos Sherlock teve um cachorro a quem nomeou Barba Ruiva.

—Barba Ruiva? — John segurou uma risota.

—Ele gostava de piratas... E o cão tinha uma pelagem avermelhada, assim o nome encaixou. Ele adorava o cão, mas... Circunstâncias trágicas o fizeram morrer.

—O que houve?

—Algo trágico. O que importa é que ele nunca se recuperou disto, e inconscientemente desenvolveu... Uma afeição por cabelos ruivos. Sua cliente é esperta, bonita, possui humanidade, e mais que isso, é ruiva. Sherlock vai negar com tudo o que tem, mas é louco por ela.

—Ele não se importa com beleza, está além disso.

—Assim como a raposa diz que as uvas estão verdes... Somos todos mentirosos, não é mesmo? É quase um mecanismo de defesa. Meu irmão diz que não se importa com a aparência, mas é esta que ele observa em seu ofício, a qual dá atenção, e não me lembro sequer de uma vez em que não o peguei flutuando em pensamentos quando passou alguma criatura de cabelos vermelhos.

—Puxa...

—Você está me entendendo?

—Entendi que você quer que eu acredite que Sherlock gosta da Violet por causa de um cachorro.

Mycroft revirou os olhos, cansado.

—Ela lhe lembra as coisas boas que ele já teve. Incluindo você. Ambos têm humanidade. E o fato de ele ser possessivo, como você já atestou muito bem, acarretará ainda mais problemas. Ele matará por ela, não duvide disso, assim como matou por você.

John sentou-se em sua poltrona, cabeça baixa, olhar grave.

—Acha que ele pode matar mais pessoas e acabar gostando?

—Gostar é uma palavra tola, ele verá a utilidade disso, verá como tudo se resolve mais rápido se ele mesmo terminar o serviço.

—O que quer fazer? Como afastá-lo?

—Eu soube que ela sumiu. — o olhar do Holmes mais velho era duro. — Deixe-a morrer. Atrapalhe-o, se for necessário.

—Não.

—Eu já cuidei do Knight, mas preciso que você me ajude com a mulher.

—Não farei isso.

Mycroft suspira novamente.

—Então já sabemos como isso terminará.

—Sherlock não se transformará num serial killer, ele sempre se manteve do lado da luz, e o que você quer dizer com "já cuidei do Knight"?

—Quero dizer o que eu disse. É uma pena que você não esteja disposto a me ajudar, John, você seria inacreditavelmente útil.

—Medo.

—Perdão?

—Você está com medo. — John acusou, abrindo um sorriso incrédulo.— Teme que Sherlock encontre alguém...

—Oh por favor...

—Algo verdadeiro, que o torne menos miserável, e isso o fará satisfeito, talvez até feliz, e você não terá mais ninguém para atormentar quando se sentir solitário, por que seu irmão estará ocupado com outra pessoa.

—Você não ouviu nada do que eu disse? — Mycroft estava horrorizado. — Estou falando de um risco real, e tudo o que você vê é uma crise familiar.

—Tudo sempre é uma crise familiar. Você devia ficar feliz por ele, talvez agora ele finalmente tenha encontrado alguém...

—Que ele envenenou com objetivos científicos sem o consentimento da mesma. Acho que ela está em algum ponto entre namorada e cobaia.

—Você adora falar a palavra "ponto", não?

—Eu uso as palavras que acho necessárias...

—Por quê? Isso o faz parecer "pontual"?

—Você está soando como Sherlock... — ele se levanta, pegando seu guarda-chuva. Dirige-se até a porta, daí volta-se para John. — Pense no que eu disse, John. Haverá um cadáver, e será meu irmão quem o colocará lá.

—Passar bem, Myckie! — ele fecha a porta, aliviado de se livrar daquele homem incômodo. Voltou para sua poltrona, sentando-se pensativo. Seria tudo aquilo verdade? Por que Mycroft mentiria? Por que não?

Ele pensou naquilo, e outra dúvida surgiu. Uma que Mycroft não respondera. O que ele fizera ao detento de Pentonville?

***

A estrada se estendia até onde a vista alcançava. Era fim de tarde, e luzes avermelhadas pintavam o céu vespertino. Usando óculos escuros, um homem dirigia um sedan preto, ao lado de outro, que mexia no celular.

—Estão nos esperando em Horsell. — disse. — Para a desova.

—Perfeito. — disse o motorista. — Como ele está?

O homem no banco de passageiro se vira, checando o passageiro de trás, um homem pálido, magro, preso numa camisa de força apertada e com a boca amordaçada. O homem o olhou, daí voltou-se para frente.

—Parece bem. Aqueles olhos me dão calafrios...

—Heterocromia é só uma mutação genética, não é a marca da besta, relaxe.

—Acha que é verdade tudo o que dizem que ele fez?

O motorista franze o nariz nervosamente.

—Acho que quem nos contratou fará coisa pior se não cumprirmos o trato.

O carro seguiu pela estrada, a velocidade média, e pega um trecho sinuoso.

—Ei, ele está desmaiando.

—Acorde ele, ora.

—Parece que está passando mal.

—Merda... — rosna o motorista. — Se nos livrarmos dele aqui não teremos como provar que serviço foi feito.

—Pare o carro, vamos ver se ar fresco o renova.

O motorista para o carro, o outro sai, abre a porta de trás e tira Benjamin Knight do carro, segurando-o pelo colarinho da camisa de força, e levando-o ao matagal ao lado da estrada. Ele se ajoelha lá, e começa a vomitar.

—Inferno... — o homem diz. — Ele parece mal.

—Tem um posto de gasolina a uns 2 km daqui. Levamos ele lá e vemos o que podemos dar para ele melhorar.

Benjamin é arrastado de volta para o carro, e este parte, em poucos minutos chegando ao posto de gasolina. Os homens o tiram da camisa de força, isso chamaria muito a atenção. Ao fazer isso, o motorista mostra-lhe uma arma.

—Qualquer gracinha, e estouro seus miolos no meio da praça de alimentação, fui claro?

Benjamin baixa a cabeça, mais líquido escorrendo por sua boca. Eles o carregam para dentro da loja de conveniências, um fica no balcão, pedindo um café, e o outro compra aspirina e Dramin, levando-o ao banheiro. Dentro do banheiro havia mictórios, privadas com porta, espelhos e avisos de chão molhado num canto.

—Tome. — o homem lhe entrega os remédios. — Tome isso e vomite à vontade. Não vamos mais parar até chegarmos.

Benjamin pega os comprimidos, respirando entrecortado.

—Para quê esse gasto se planejam me matar?

—Há tempo para tudo, colega. Ande, estou sem ficando sem paciência.

Benjamin entra num dos banheiros, fechando a porta e desabando em cima da privada, vomitando tudo o que estava dentro de seu estômago. Engoliu algumas aspirinas, jogou o Dramin privada abaixo, daí se ergueu, recuperando o fôlego. Deu descarga, olhando em volta em silêncio.

O homem se olhava no espelho, limpando o rosto de algo que sujara-lhe a sobrancelha. Benjamin saiu do banheiro, esfregando o rosto com uma das mãos. Foi até a pia, girando a torneira e lavando o rosto. O homem tirou discretamente uma seringa do paletó.

—Por que está se esforçando tanto em despertar? — ele riu, aproximando-se de Benjamin. — Daqui para frente você só vai dormir.

Benjamin não respondeu. Virou-se como um raio, chutando o homem entre as pernas e acertando-lhe um soco no estômago. O homem rugiu de dor, agarrando-o pelo pescoço e passando o braço por cima de sua nuca, tentando esganá-lo. Eles ficaram assim algum tempo, cambaleando pelo banheiro, até que Benjamin pisou no pé do homem, soltou-se dele e chutou-lhe o rosto. O homem desferiu-lhe um murro na face, pegando-o pelo cabelo e batendo-o contra a pia. Benjamin esquivou-se de novo golpe, cambaleando para o lado e acertando uma cotovelada no ombro do homem, que gritou. Apoiando-se na pia, saltou e envolveu o pescoço do homem com as pernas, girando o corpo e quebrando-lhe o pescoço. Os dois foram ao chão, e Benjamin demorou a se levantar. Ele ainda não se recuperara do enjôo que tantos rémedios lhe haviam causado, e menos ainda de ter a cara lançada contra a pia. Ergueu-se num gemido, indo até o homem e revistando-o, pegando-lhe carteira, dinheiro, e a arma. Saiu do banheiro, foi até o balcão e atirou sem cerimônias no motorista, fazendo todas as pessoas ali saírem correndo e gritando. Ele guardou a arma, foi até o cadáver, pegando dinheiro e chaves do carro. Seguiu até a saída, parou e voltou. Pegou o café sobre o balcão. Saiu da loja, entrou no carro e partiu à toda.


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Notas finais do capítulo

Aqui está, meus queridos, capítulos 23 e 24 editados e apetitosos. Escrevi-os durante uma viagem, na qual só pude me dispor do celular, e ele não é lá muito bom em edição. E vamos falar sério, ler um texto grande com os parágrafos todos grudadinhos tira em muito o brilho da leitura. Espero que gostem, amores, mil beijos para vocês!