Cachecol Azul e Cabelo Vermelho escrita por Lirah Avicus


Capítulo 16
Capítulo 16




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—O que há de pior no mundo senão as pessoas que vivem nele?

—A comida que elas servem...

O comentário grave e rabugento viera da extrema esquerda daquela mesa quadrada com quatro lugares. Três deles estavam ocupados. Os outros dois ocupantes olharam com curiosidade para o terceiro ocupante, que além de idoso também era, ele mesmo, grave e rabugento. De fato, os três ocupantes daquela mesa eram idosos...

—Deixe disso, Hombach. — disse o senhor da direita, de boina xadrez e colete de lã. Era gordinho, e tinha grandes bochechas. — Seu mau humor vai te fazer morrer mais cedo.

—Essa sopa horrorosa é que vai te fazer morrer mais cedo. — disse o outro, este de cabelo desgrenhado e óculos, atrás dos quais havia dois olhos castanhos e sábios. — Por que não pede uma comida decente?

—Eu peço comida decente, narrisch... — resmungou o senhor grave e rabugento. Como sempre, não conseguia evitar usar palavras em alemão. — São eles que não sabem prepará-la.

—Eu pedi comida decente. — sorriu o senhor de boina xadrez, e ao dizer isso, esticou ambas as mãos e pegou um grande hambúrguer que antes jazia num prato à sua frente. Abriu um sorriso quase psicopata e mordeu o hambúrguer, mastigando-o e emitindo sons de prazer.

O senhor grave e rabugento, Prof. Karl Hombach, fez cara de nojo.

—Sua “comida decente” vai entupir suas artérias, Godel.

—Pelo menos não vai estragar meu humor. — retrucou o Prof. Nathan Godel. Este mesmo olhou para Hombach, que o olhava de cenho fechado. — Pare de olhar, Hombach, não vou te dar um pedaço... Pode pegar das batatinhas, mas não mais do que três.

—Não quero suas batatinhas... — disse Hombach, franzindo o nariz. — Tenho muito amor ao meu coração.

—Mas não ao seu estômago mental. — disse Godel, abocanhando mais um pedaço de hambúrguer. — Você não o trata bem.

—Essa sua teoria de estômago mental é absurda, Godel! — exclamou Hombach.

—Fique calmo, Hombach...

—Eu estava com fome, Graham. — o rabugento senhor choramingou.

—Quer minhas batatinhas?

—Godel, já chega. — o Prof. Abner Graham olhou ao redor, daí voltou-se para os amigos. — Temos de ser discretos, senhores.

O Prof. Hombach cruzou os braços, emburrando.

—Eu sou uma pessoa discreta. No momento sou uma pessoa discreta e faminta. E não é minha culpa se a cozinheira descobriu hoje que o marido a traiu.

—Ah, — o Prof. Graham olhou para a sopa. — traiu mesmo, não é? —ele sorriu, animando-se repentinamente. — Senhores, o que podemos deduzir sobre a cozinheira tendo por base a sopa do Hombach?

—Ela é destra. — diz Godel, levando a mão ao queixo. — E tem um tique nervoso no olho esquerdo... — ele aproxima o rosto do prato. — Tique de infância, possivelmente causado por golpe ou outra injúria... Sofreu maus tratos quando criança.

—Ela cuida de algum parente doente... Talvez o pai... — Hombach prova a sopa. — Não, não, ela cuida da mãe... Sem filhos.

—Solitária, — começa Graham. — não gosta de ler... Não é boa faxineira, e tem brigas constantes pelo telefone.

—Eu acho que ela briga com o ex-marido pelo telefone, — comenta Godel. — nada é mais irritante.

—Gosta de caminhadas. — completa Graham. Hombach junta as sobrancelhas, pensativo.

—Tem um cachorro de raça, grande porte, provavelmente um bernardshund ou um dogge, e passeia com ele durante as caminhadas.

—Não é vaidosa.

—Não gosta de televisão.

—E não tem um orgasmo há pelo menos quatro anos!

—Godel! — repreende Graham, vendo o amigo gargalhar como uma criança. — Não diga isso!

— Flughäfen sind eine Katastrophe! — exclamou Hombach, horrorizado, e ainda não se libertando de suas exclamações em alemão.

—Mas é verdade! — insistiu Godel. — Olhe para essas lentilhas!

—Se divertindo, crianças? — disse uma voz diferente, vinda de logo ao lado. Godel abriu os braços, sorrindo.

—Sherlock!

—Mein Schatz!

—Vejam o que o mau tempo nos trouxe!

—Sente-se conosco, lieber. — Sherlock sentou-se com os três senhores, ocupando o lugar vago ao lado de Graham.

—Estávamos gastando nosso tempo inútil conversando inutilidades. — disse Graham. — E fazendo deduções.

—Sabia que a cozinheira deste estabelecimento não tem um orgasmo há pelo menos quatro anos?

—Hmm... — Sherlock junta as sobrancelhas, um tanto constrangido. — Certo.

Hombach revira os olhos.

—Esta dedução é irrelevante, Godel, a não ser que você esteja planejando mudar a situação sexual da cozinheira.

—Ela não faz meu tipo.

—Ninguém faz seu tipo!

—Scarlett Johansson faz meu tipo!

Sherlock encara Godel, confuso.

—Quem?

—Ela nunca te daria uma chance! — afirma Hombach.

—Já chega de asneiras, senhores. — anuncia Graham, daí ele dá um tapinha nas costas de Sherlock, sorridente. — Não o vejo há pelo menos três anos. O que o traz aqui?

—Precisava falar com o senhor, professor.

—Mas é claro.

—As pessoas já sabem que você está vivo? — pergunta Godel.

—Sim, — assente Sherlock. — o senhor não é mais o único.

—Maçada... — resmunga Godel.

—Você devia ter visto. — diz Hombach, colocando a colher que havia em suas mãos de lado. — Godel simplesmente olhou a manchete no jornal, leu algumas palavras, embolou o papel e atirou-o para o lado dizendo: “Ah, ele está vivo!”.

—Quem diria isso de um possível retardado... — comenta Graham.

—Medições de Q. I. são muito enganosas... — diz Godel. — Dependerá muito de em quais áreas você é inteligente, e em quais você não é. Se você não sabe quase nada sobre o que eles querem que você saiba, você é um retardado.

—Eles te fizeram perguntas sobre comportamento humano.

—Aí está! Eu não sei quase nada sobre isso! Pessoas! — ele sacudiu a cabeça. — Humanos! Eu não sou como eles! Não os suporto! Eu estudo as pessoas, mas não sei e não preciso agir como elas.

—Gostaria que as pessoas entendessem isso com mais facilidade... — murmura Sherlock.

—Elas só entendem algo se ele pode ser vestido, calçado ou comido. — diz Hombach. — Nem posso dizer algo lido, pois essas pessoas não gostam de ler. Não leem nem mesmo avisos em aeroportos.

—Eu leio os avisos em aeroportos. — diz Godel. — Detesto aviões.

Hombach o encara.

—Então por que você vai a aeroportos se não gosta de aviões?

—Fico na esperança de que algum dia um deles caia e exploda.

—Você tem algum problema...

—Sherlock, sua pergunta pode esperar que você nos faça um pequeno favor? — pergunta Graham.

—Claro.

—Venha. — Graham se levanta, assim como Sherlock e Godel. — Vamos, Hombach, a sua sopa não ficará comível só por que você está olhando ameaçadoramente para ela, temos trabalho a fazer!

Eles saíram andando, retirando-se rapidamente da ala de alimentação. Estavam em Golders Green, um asilo de classe alta, grande e com um amplo parque natural ao redor, com direito a árvores, um pequeno riacho e quadra para tênis. Eles desceram um pequeno morro, pisando sobre a bem aparada grama e chegando a um pinheiro imenso. Os quatro pararam em frente ao pinheiro.

—Sherlock, estávamos jogando peteca...

—Vocês a atiraram ali em cima e querem que eu pegue.

Hombach dá de ombros.

—Uma pequena e justa troca: você pega a peteca e nós lhe ajudamos com o seu caso.

—E você sabe que não negociamos. — diz Godel.

—Seja rápido, — diz Graham. — seu assassino pode matar outra mulher asfixiada enquanto conversamos.

Sherlock vira-se espantado para Graham, que sorri gentilmente. Daí ele olha para cima, procurando um bom lugar para firmar o pé e começar a escalar. Logo encontra um bom galho, retira o casaco, pondo-o nas mãos de Graham, e começa a escalar.

—Tome cuidado, lieber, — diz Hombach. — esta árvore costuma ser cruel!

—Já pedimos para outros nos ajudarem, — explica Graham. — e eles terminaram o dia no hospital.

—E ainda devem estar lá!

Sherlock segura-se num galho, tirando dele uma raquete de tênis.

—Oh, sim! — exclama Godel. — Atiramos a raquete para pegar a peteca!

Ele sobe mais, vendo uma bengala.

—Atirei a bengala de Godel para pegar a raquete! — exclama Hombach.

Ele joga a raquete e a bengala no chão, subindo mais e encontrando um sapato. Godel soltou uma gargalhada.

—E eu atirei o sapato de Hombach para me vingar por ele ter jogado minha bengala!

—Acho que agora vamos atirar o Godel! — exclama Graham, os três senhores rindo em uníssono.

Sherlock finalmente alcança a peteca, pegando-a e descendo cuidadosamente, até chegar ao chão.

—Dreck... — diz Hombach, decepcionado. — Pensei que ele ia cair...

—Já vimos tombos o suficiente. — diz Godel. — Agora eu prefiro a peteca.

—Aqui está. — Sherlock entrega a peteca a Graham, tomando de volta seu casaco. — Podemos conversar agora?

***

—Então você faz terapia com a Dra. Thompson?

—Eu fazia antes de... Bem, antes de muita coisa.

John havia descido do táxi, assim como Violet, e eles caminhavam na direção do pequeno prédio que se erguia diante deles. Era um lugar muito agradável, bem arborizado, e após John tocar a campainha logo uma porta se abriu e uma mulher de meia idade, negra e bem vestida, os atendeu.

—Olá, John.

—Olá, doutora.

—Você deve ser Violet.

—Olá. — Violet sorriu timidamente.

—Por favor, entrem.

Eles entraram, e Violet deparou-se com um ambiente bem arejado, um pouco vazio, mas repleto de portas e janelas de vidro, e, portanto bem iluminado. A Dra. Thompson levou-os até uma sala ampla e formada quase que apenas por paredes de vidro, que davam para as árvores do lado de fora. Lá havia três poltronas estofadas.

—Já nos esperava? — pergunta Violet.

—Sim. — a Dra. Thompson respondeu. — John me ligou pedindo-me conselhos, e eu o aconselhei a trazê-la aqui. — ela aponta para as poltronas. — Por favor, sentem-se.

Eles se sentaram, e a doutora pegou um caderno de couro e uma caneta.

—Muito bem, Violet, eu vou lhe fazer algumas perguntas. Sente-se à vontade para falar com o Sr. Watson aqui?

—Não tem problema. — ela sorriu. — Ele já sabe o que aconteceu.

—Certo. Então conte-me, o que aconteceu, exatamente?

—Eu fui atacada por um homem na volta do meu trabalho, sofri uma queda e por isso não reconheço as pessoas. Isso é um problema, eu tinha de reconhecer quem me atacou por que... Bem, por que ele está matando gente.

—Você desenvolveu prosopagnosia.

—Sim.

—Você leu a respeito desse problema?

—Pesquisei na internet... Li alguns artigos muito bons. Eles dizem que algumas pessoas nascem com isso, mas outros desenvolvem por causa de algum fator externo.

—Está certo. Antes acreditava-se que a prosopagnosia era apenas desenvolvida, mas encontramos casos de crianças que já não reconhecem o rosto dos pais desde a tenra idade. Para elas é mais fácil se adaptar, e mesmo para os que a desenvolvem depois não é impossível que eles se acostumem e consigam levar uma vida relativamente normal.

—É muito bom saber disso.

—Fico feliz que gostou.

—Pode me ajudar a reconhecer rostos?

A Dra. Thompson encarou Violet por alguns segundos. Respirou profundamente.

—Violet, você nunca mais reconhecerá um rosto. Acho bom te dizer isso antes de começarmos. Quem tem prosopagnosia não é capaz de reconhecer ninguém, não importa o quanto a pessoa seja importante, ou quanto tempo passem juntos. Há casos em que apenas um rosto foi reconhecido, mas são extremamente raros.

—Mas isso pode acontecer, não é?

—O cérebro está deficiente, e isso é permanente. Ás vezes, apenas às vezes, algo na pessoa, talvez um bigode ou um corte de cabelo, algo único nela, engane o cérebro e faça-o criar um quadro fixo daquela pessoa. Você tem a impressão de que a reconhece, mas se ela se barbear, pintar ou pentear o cabelo diferente, você não vai mais reconhecê-la. — a Dra. Thompson cerrou os olhos. — Você reconheceu alguém?

—Não. — Violet disse rapidamente, baixando os olhos. A doutora assentiu.

—Muito bem... — suspirou. — Eu não vou ensiná-la a reconhecer rostos, Violet, eu vou ajudá-la a reconhecer as pessoas.

—Como?

—Nós somos muito preguiçosos. — sorriu a doutora. — Percebemos o mundo quase que inteiramente apoiados no nosso sentido primário, a visão. Ouvimos algo, logo em seguida procuramos com os olhos de onde vem o barulho. Tocamos algo, queremos ver o que é. A pior coisa que tem é alguém nos vendar, ficamos absolutamente perdidos. E para reconhecer pessoas, usamos os rostos. Isso é incrivelmente preguiçoso também. Há tantas outras coisas que tornam uma pessoa única que você nem imagina. Você estava acostumada a ter tudo facilitado pelos olhos, mas agora eles estão doentes, sua mente não consegue mais guiá-los de forma segura. Você terá de treiná-los a perceber as coisas de modo diferente. E você ainda tem outros quatro sentidos, tão precisos quanto a visão, que podem guiá-la não da mesma forma, mas de modo a você não ficar perdida quando caminhar pela rua.

—Certo.

—Eu vou lhe dar um exercício simples. — a Dra. Thompson puxa uma mesinha para frente de si, colocando-a entre ela e Violet. Nela havia uma tigela de cerâmica, com várias pedras lisas dentro. A doutora virou a tigela, derramando e espalhando as pedras sobre a mesinha. Daí ela pegou duas delas, levantando-a à frente do rosto. — Estes são Larry e Kylie. Observe-os bem. — Violet aproximou o rosto, observando aquelas pedras com atenção. Até mesmo John se esticou para olhá-las melhor. — Veja as ranhuras, a variação das cores, o formato. Kylie é rosada e transparente, ao passo que Larry é mais fosco e tem um pouco de azul. São lindos, não são?

—São sim.

A Dra. Thompson abaixou as duas pedras, misturando-as às outras pedras. Violet sentiu um frio no estômago. Apesar de aquelas pedras serem belas e chamativas, no meio das outras elas... Sumiram.

John ficou olhando a Dra. Thompson colocar as duas pedrinhas no meio das outras pedrinhas idênticas, e daí misturá-las. A cada vez que a doutora as misturava, a esperança que ele tinha de encontrar Larry e Kylie diminuía.

—Agora, — ela disse com sua voz calma. — encontre Larry.

John Watson quis rir. Encontrar Larry? Larry sumiu!

Ele estava pensando nisso quando, após alguns segundos observando o amontoado de pedras, Violet esticou a mão e pegou uma delas, uma pedra fosca e azulada. A Dra. Thompson esboçou um sorriso.

—Muito bem. Agora ache Kylie.

Violet demorou mais. Havia várias outras que também eram rosadas, e ainda outras que eram transparentes. Mas ela também encontrou-a, e logo Kylie estava em suas mãos, refletindo o brilho que vinha do lado de fora.

—Puxa... — murmurou John, cruzando os braços.

—Parabéns, Violet. — sorriu a Dra. Thompson. Violet encarou-a, sorrindo também, mas logo seu sorriso tremeu, e os olhos dela se encheram de lágrimas. Ela levou a mão ao rosto, não querendo que vissem seu choro. — Você se saiu muito bem. — disse a doutora, segurando sua outra mão. — Vai conseguir, só precisa treinar. Eu quero que volte para casa, e quero que faça uma lista de todas as pessoas que você quer reconhecer ao encontrá-las na rua. À frente do nome delas, quero outra lista: detalhes nessas pessoas que as fazem únicas diante das outras. Quero que se esforce para lembrar, e quero que leve esta lista com você, aonde for, para possíveis conferidas.

—Ok. — Violet murmurou.

—E Violet, isso exige tempo. Mesmo quando estiver com bastante prática você ainda vai ficar estática diante de alguém que você simplesmente não sabe quem é. Isso acontecerá, e não deve ser considerado como um retrocesso. Não deve desistir, e quero você aqui daqui a três dias.

—Certo. — Violet a encara. — Tão cedo?

—Quero acompanhar de perto sua melhora. E quero ver a lista que fizer.

—Com certeza. — eles se levantam, dirigindo-se à saída. — Obrigado, doutora.

—Cuide-se, Violet. Vejo-a em três dias.

***

A sala era grande, com acabamento amadeirado. Lembrava uma biblioteca do século 19. Tinha grandes estantes que subiam até o teto, cheias de livros de todos os tipos e assuntos. Uma luminária renascentista descia do teto. O chão era de madeira lustrosa, e todo o resto tinha um ar aconchegante e antigo. Neste ambiente, Sherlock Holmes, Abner Graham, Karl Hombach e Nathan Godel jaziam sentados em poltronas confortáveis e peludas. Aliás, Godel estava de pé. E ecoava uma música pulsante pelo ar.

O Prof. Graham lia os arquivos da pasta que tinha em mãos com atenção. Seus óculos redondos pendiam na ponta de seu nariz, e ele virava as páginas de forma intensa e interessada. Quando finalmente terminou de ler, levantou os olhos para Sherlock, erguendo também as sobrancelhas.

—Isto é fascinante.

—Achei que pensaria assim. Fiz o melhor resumo para lhe mostrar.

—E ficou perfeitamente compreensível. Você está fazendo um bom trabalho.

—Mas que música é essa? — resmungou Hombach, sentado em sua poltrona de motivos geométricos.

—É eletrônica. — disse Godel, ainda de pé, tentando acompanhar a batida flexionando os joelhos. — Fez meu corpo querer balançar.

Hombach balançou a cabeça.

—Faz meu estômago querer regurgitar.

—“O clube não pode nem me aguentar agora...” — cantarolou Godel, requebrando os quadris de modo limitado, como só os idosos podem fazer. Ele se vira para Sherlock, ainda requebrando. — Como a moça está? Está se recuperando bem?

—Como sabe da moça? — pergunta Graham.

—Eu apenas sei.

—Você não leu o resumo do caso.

Hombach baixa o livro que estava lendo.

—Ele tem esse “jeitinho” de descobrir as coisas, Graham. Você sabe muito bem que ele estudou sugestão e mentalismo quando tinha a idade de Sherlock.

—Qual o nome dela?

—Violet Hunter.

—Bonito nome. — murmurou Godel. — Ela deve também ser muito bonita.

—Não tenho prestado muita atenção nela. — diz Sherlock.

—Mentiroso. — resmunga Hombach, voltando a ler seu livro. Sherlock junta as mãos à frente do rosto, olhando para Graham.

—O que acha?

—Preciso pensar. — Graham retira seus óculos.

—Não está pensando agora?

—É que estou confuso.

—O que o confunde?

—Todo o caso. — Graham joga as folhas sobre a mesa, e tentava se explicar gesticulando largamente. — O modo como tudo está se desenrolando. Seu assassino começou como um serial killer comum, agora ele tem capangas que atacam e estão dispostos a ser presos e a morrer para cumprir seu objetivo. Isso é uma evolução inesperada e vertiginosamente grande. Temo qual será a evolução seguinte.

—Talvez ele não evolua. — diz Hombach, sem tirar os olhos do livro.

—Sempre há a escalada. — diz Sherlock.

—Sim, a escalada... — concorda Graham, balançando a cabeça.

—Eu me esqueci de o que é a escalada. — diz Godel.

—Nós arranjamos facas, eles arranjam revólveres. — explica Hombach. — Nós usamos coletes à prova de balas, eles arranjam munição perfurante. Nós usamos o cérebro... E eles aprendem a usá-lo também.

—Pelo menos isso é uma coisa boa. — Godel volta a requebrar. — Não é todo mundo que usa o cérebro.

—Eles o usam para matar. — diz Hombach de modo repreensivo.

—Pelo menos o usam.

—Isso não é desculpa, eles usam o cérebro para fazer o cérebro de outros parar de funcionar.

Godel revira os olhos num suspiro.

—Essa gente não usa o cérebro para nada mesmo!

—Não estamos discutindo a utilidade dos cérebros das vítimas, senhores. — diz Sherlock. — Estamos discutindo o fato de que há um assassino inteligente lá fora, e que temos de ser mais inteligentes do que ele para pegá-lo.

—Precisamos de mais fatos, lieber! — diz Hombach, inclinando-se na direção de Sherlock.

—Temos o suficiente para um bom começo. — diz Graham. Hombach se levanta, indo até a mesa de Graham e pegando a pasta, folheando-a.

—É um psicopata... — murmura ele. — Gosta de emoção. Ele é... Ambidestro?

—Ambidestro é bom com as duas mãos, não o contrário.

Godel posta-se ao lado de Hombach, também lendo o relatório.

—Por um lado perfeccionista, por outro ele atira moças de prédios. — Godel encara o amigo. — Incomum, devo dizer.

—Muitos perfeccionistas perdem o controle quando se deparam com problemas inesperados.

—Mas eles são limpos. — Godel aponta para a foto que Hombach segurava. — Olhe a porqueira que ele fez na casa desse casal.

—Ele pode não ter se importado.

—Perfeccionistas se importam.

—Os outros crimes indicam perfeccionismo. E são limpos.

—Tudo bem, e o que indica a diferença gritante entre este e os outros assassinatos?

Hombach dá de ombros.

—Um ajudante, ou um imitador.

—Não senhor, ele trabalha sozinho, não viu as marcas no asfalto naquela foto?

—Não seria um imitador, ninguém sabe ainda dele, a imprensa foi calada.

—E não é um ajudante pelos motivos já apresentados.

—Mas... — Hombach encara Sherlock. — Ele tem dupla personalidade?

—Não. — diz Graham, olhando pela janela. — Não tem.

—Não? — disseram Godel, Sherlock e Hombach em uníssono.

Graham sorri, olhando os amigos.

—Incrível como nós todos chegamos à mesma conclusão tão rápido.

—É o que as provas apontam.

—Não... Não acham estranho duas personalidades atuando juntas? Num caso psicótico desta natureza uma personalidade não sabe da existência da outra, nem o que esta faz, esta é a regra de duplas ou múltiplas personalidades. Como poderiam então trabalhar em conjunto?

—Então como explicaria a questão das mãos?

Graham encarou Sherlock de forma irritada.

—O que está te distraindo?

—Como?

—Eu esperava uma solução dessas vinda destes dois velhos ou até de mim, mas não de você. O que está desfocando sua visão?

—Nada.

—Certo. — Graham apoia as mãos sobre a mesa. — Pensem comigo: mãos trocadas, temperamento imprevisível, influência sobre mentes mais fracas, indecisão entre perfeição e selvageria... Nós estamos tendo problemas em saber o que ele por que... Ele mesmo não sabe o que ele é. O assassino não está tentando nos confundir... Ele mesmo está confuso.

—Alguém com tamanha confusão e impulsividade não tem dupla personalidade, ele é na verdade...

—Borderline. — murmura Godel, juntando as mãos.

—O modo como ele mata é muito pessoal... — Sherlock se inclina na direção de Graham. — Pessoal demais...

—Talvez...

—Ele possuía um relacionamento com as vítimas antes de matá-las. —Sherlock reclina-se na poltrona. — Relacionamentos de pessoas borderline são intensos e desorganizados. As mulheres provavelmente não aguentavam a situação e terminavam. Isso o deixava frustrado, e frustração é algo perigoso quando se trata de alguém assim. Sua frustração ao terminar o relacionamento é tão grande que ele a mata.

—Enforcamento denota excitação, — diz Godel. — cortar a garganta envolve ódio extremo. Ele matou suas ex-namoradas.

—Bem... — Graham respira fundo. — Hora de descobrir quem foi namorado de todas as suas vítimas, Sherlock. Cruzando os nomes dos relacionamentos das vítimas, se encontrar algum nome em comum, você tem um vencedor.

Um celular toca. Sherlock tira-o do bolso, atendendo.

—Sherlock Holmes... Sim claro, estou à caminho.

—O que houve?

—Mais um cadáver, desta vez atrás de um bar.

—Nosso amigo?

Sherlock se levanta.

—Talvez.

—Divirta-se, garoto. — diz Godel. — Espero que tenhamos sido de ajuda.

Sherlock assente com a cabeça, dirigindo-se à porta, mas daí para de andar, virando-se para aqueles senhores.

—Eu estava pensando... Querem me acompanhar?

***

—Benjamin Alistair Knight, 36 anos, interno da Ala 21 da HM Pentonville. Esta visita tem a permissão do Governo Britânico, e foi permitida a pedido da Scotland Yard. — o guarda encara Mycroft. — O interno permanecerá imobilizado para sua segurança.

Mycroft Holmes assente, abrindo uma pasta e passando as folhas. Encarou Benjamin, que permanecia olhando para baixo.

—Como estamos hoje, Benjamin? — silêncio. Mycroft esperou por um bom tempo, mas a resposta não veio. — Ora vamos, você vai falar, sabe disso. Por que não se poupa o sofrimento?

—Eu sofro todo o tempo... — murmura Benjamin. — Para me poupar dele, só encerrando minha existência.

—Não seja tão dramático... — diz Mycroft. — Você foi diagnosticado com psicopatia e transtorno psicótico... Como dizia minha mãe, tem gente em estado pior.

Benjamin levanta os olhos de gato, exibindo uma expressão ameaçadora.

—Para você é Sr. Knight.

Mycroft sorriu. Levantou as sobrancelhas, com ar irônico.

—Tudo bem... Sr. Knight. Como estamos...

—Como estamos hoje? — Benjamin sorri com desprezo. — Vamos ver: você está bem, eu estou mal. Então tirando a média, estamos meio-a-meio.

—Fico triste com isso. — Mycroft fechou o cenho. — E não me interrompa novamente. Eu falo, e quando eu permitir você responde.

Benjamin sorriu languidamente.

—Eu poderia te matar assim não precisaria mais de suas permissões.

Mycroft folheia mais um pouco as páginas em sua pasta, sorrindo ao perceber que Benjamin também as olhava com vívido interesse.

—Sua educação não melhorou. Ainda lendo literatura alheia.

—Você cuida da vida alheia, não creio que seja muito melhor do que eu.

—Meus pais estão vivos, isso me dá vantagem.

—E você não está na cadeia, isso é uma vantagem também? — disse Benjamin, os olhos se enchendo de água.

—Naturalmente. — Mycroft prossegue folheando as páginas com muita calma. — Está me dando boas respostas de presente?

—Não, estou dizendo logo o que você diria se eu não dissesse. Sua voz me irrita.

—Sherlock Holmes te visitou. O que ele queria?

—Conselhos amorosos.

—Não devia brincar. — Mycroft faz sinal para o policial, que aproxima-se de Benjamin, tirando uma arma de choque do cinto, segurando-o com força pelos cabelos e colocando a arma perto de seu pescoço. — Você pode perder a cabeça.

Benjamin solta uma gargalhada.

—Eu já perdi.

—O que ele queria?

—Conselhos... — Benjamin falava de forma vaga, seus olhos passeando pela sala em movimentos circulares. — Eu era um assassino, mas para ele não sou mais.

—Você é um assassino.

—Mas não de quem ele achava que eu era... Ele é inteligente. — Benjamin junta as sobrancelhas, pensativo. — Mais do que você pelo menos.

—Ele está num caso... — suspira Mycroft. — Perigoso para ele. — o guarda solta Benjamin, mas permanece ao seu lado. — Quero proteger meu irmão dos danos que certamente ele irá sofrer.

Benjamin encara o guarda por alguns instantes, daí volta-se para Mycroft.

—Você gosta dele... Não admite, mas gosta. É um típico irmão mais velho, rebaixa-o pela frente, e pelas costas se arrasta aos seus pés.

—Sobre o que conversaram?

—Sobre qual banda é melhor: Beatles ou Queen.

Mycroft fechou o cenho. Fez sinal para o guarda. O guarda, homem grande e mal humorado, segurou Benjamin pelos cabelos e ativou a arma de choque em seu pescoço.

Os gritos foram ouvidos em toda a prisão.

Mycroft folheou mais algumas páginas. Parecia desinteressado. Fazia isso enquanto Benjamin ofegava e se esforçava para respirar, a cabeça caída sobre a mesa. Seu peito ardia como se estivesse no fogo, ele sentia seu corpo tremer, e o ar não vinha. A camisa de força parecia enforcá-lo, e agora ele suava profusamente.

O guarda se afastou. Mycroft espalhou algumas fotos pela mesa.

—Este é o caso do meu irmão. Quero-o solucionado antes que ele o solucione e acabe se perdendo. Quero ele fora disso o quanto antes. E você não deve mais falar com meu irmão. — Benjamin virou a cabeça como pôde, sem conseguir levantá-la, olhando as fotos. Mycroft revirou os olhos. — Você me entendeu, ou vou precisar que nosso amigo guarda torne tudo mais... Compreensível?

Benjamin fez que não. Não conseguia falar.

Mycroft sorriu, recolhendo as fotos. Observava aquele detento como se este fosse um personagem num filme. Não tinha nada a ver com ele. Aquele sofrimento não o afetava. O guarda se aproximou de Benjamin, segurando-o pela camisa de força.

—Nos vemos em breve, Sr. Knight.

Mycroft se levantou, vendo o guarda puxar Benjamin para fora da cadeira. Neste instante, ele reagiu...

Benjamin ergueu-se inesperadamente contra o guarda, batendo a cabeça com força contra o rosto dele e chutando-o no joelho, quebrando-o e fazendo o guarda cambalear para trás num grito, soltando Benjamin e levando a mão ao rosto, tentando impedir o sangramento que escorria de seu nariz. Benjamin pôs-se de pé, puxando a cadeira com um dos pés, levantando-a e no impulso atirando-a contra o guarda, acertando-o na cabeça, e este caiu desacordado no chão.

Mycroft afastou-se da mesa, pressionando-se contra a parede e apertando o botão do alarme. Este começou a apitar, e uma luz vermelha girava na sala e nos corredores.

Benjamin contorceu-se como se fosse feito de gelatina, livrando-se da camisa de força e indo para cima de Mycroft. Quando os guardas armados abriram a porta, Benjamin passou um dos braços ao redor do pescoço de Mycroft, colocando à sua frente e apertando a manga da camisa de força, sufocando o Holmes mais velho a ponto de ele arroxear.

—Solte-o, Knight! — ordenavam os guardas, apontando as armas. Alguns tremiam.

—Eu não vou trabalhar para você... — sussurrou Benjamin aos ouvidos de Mycroft. Daí ele começou a rir baixinho. — Pobre Homem de Gelo... Apareça aqui de novo, e eu arranco a sua cabeça e penduro-a na porta da minha cela... Mande um beijo para seu irmão...

Benjamin o soltou, e Mycroft caiu no chão, tossindo e tentando recuperar o ar. Os guardas agarraram aquele detento, que ria como um palhaço louco, e o levaram sala afora, e sua gargalhada sem fim ecoou por toda a prisão, assim como seus gritos já haviam ecoado.

Um guarda se aproximou de Mycroft, estendendo-lhe a mão.

—Tudo bem, senhor?

Mycroft Holmes rejeitou a ajuda. Colocou-se sobre os pés, ainda respirando com dificuldade e sem conseguir falar, e saiu daquela sala. Não queria pensar no que acontecera. Não queria pensar naquele detento. Não queria pensar em todos os loucos assassinos e geniais que haviam no mundo. Não queria pensar na possibilidade de, um dia, seu irmão mais novo se tornar um deles...


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Notas finais do capítulo

Woahoo! Mais um capítulo! Espero que gostem deste, meus queridos, pois há mto carinho na escrita dele. Mil bjos



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