Inserção escrita por Yennefer de V


Capítulo 1
Zion




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Luna estava contemplando o anoitecer de Zion. Não que fosse um crepúsculo comum e não que Zion fosse um país localizado em um dos pontos mais belos da Terra. Zion, para Luna, era mais um buraco.

As máquinas eram responsáveis pelas vidas que habitavam Zion. Responsáveis pelo ar que respiravam, pela agua que ingeriam e até por trazer a noite para seus descansos. Consequências cruéis por uma longa guerra dos ancestrais dos homens contra as máquinas. Os homens sobreviventes tiveram que se refugiar no centro da Terra.

Os pais de Luna, Neo e Trinity, eram o casal herói do povo de Zion. Os resistentes combatentes conseguiram uma trégua na luta contra as máquinas e os humanos não eram mais atacados. Desde então, a maior preocupação de Neo era despertar a raça humana das mãos de Matrix.

Durante a guerra dos humanos versus as máquinas, os humanos decidiram como ultimo recurso impiedoso, lançar produto químico no céu a fim de esconder o sol. Assim, as máquinas, que se moviam em sua maioria por energia solar, seriam inutilizadas. Não deu certo. As máquinas, após vencerem a guerra, fizeram os humanos como fontes de energia. Grandes e imponentes, avançadas e possuidoras de uma inteligente lógica tão mutável como a de qualquer ser vivo para se adaptar aos escassos recursos que sobraram na Terra, elas descobriram um meio para que os humanos fossem basicamente suas “pilhas”. A maior parte da humanidade era criada em espécies de enormes casulos. Ali eram gerados, cresciam e se desenvolviam até a morte. Havia colmeias de humanos em casulos, enquanto suas mentes estavam presos na chamada Matrix.

Matrix era uma prisão. Uma prisão pior do que qualquer outra. Porque Matrix aprisionava a mente. Era uma ilusão muito bem concebida. Matrix é a vida como se reconhece hoje em dia.

Há estações do ano, há países, há comida, há guerras, há pessoas, há rotina, há famílias, há pobreza, há riqueza, há o anoitecer e há o amanhecer. E é tudo de mentira.

Enquanto a mente das pessoas “acha” que está vivendo “de verdade”, seus corpos estão incubados e servindo de fonte de energia para as máquinas. Simplesmente descartáveis. Por isso Neo, o herói da guerra, e sua esposa Trinity, se esforçavam ao máximo para despertar as pessoas de Matrix e as traziam para a vida em Zion. Zion era o único povo livre de Matrix.

Luna, nascida depois da trégua com as máquinas, entendia que a vida como conhecia não podia ser a única realidade que existia no mundo.

Seus grandes olhos azuis observavam o apagar das luzes em Zion. Não era uma luz natural. Era muito artificial ao seu olhar infantil. Os longos cabelos loiros quase brancos chegavam a empalidecer. Suas bochechas não criavam traços rosados pela falta de sol. Os raios solares que ela só conhecia por estórias de quem já conhecera Matrix.

Seu espirito lhe dizia que precisava escapar daquela realidade cheia de mesmice e sem ponto final. Por mais que lhe dissessem que aquela era a verdade.

Zion ficava próximo ao centro da Terra. A camada da Terra estava devastada. Era como um deserto negro e com o ar poluído, sem inicio nem fim. Culpa da guerra.

Despertar as pessoas de Matrix era mais difícil do que imaginaram. Porque as pessoas estavam acostumavam com Matrix. Porque as pessoas adoravam Matrix. Porque as pessoas não acreditavam em outra vida além de Matrix.

Como é que se convence alguém que sua família, sua rotina, seu emprego e tudo ao seu redor é falso? Que a realidade, na verdade, é que a Terra se reduziu a pó e em sua nova vida a pessoa terá que habitar um local quase primitivo à primeira vista?

Oras, não é tão fácil. Praticamente impossível.

Luna pôde acompanhar a libertação de alguns seres humanos da ilusão criada por Matrix. Alguns eram resgatados – outros simplesmente despertavam da ilusão e eram trazidos à Zion. Como sua irmã Lily.

Lily era adotada e sabia disso. Seus pais se espantaram quando foi anunciado que uma reles garota de nove anos tirara sua própria mente das garras da realidade virtual. O evento fazia exatos dois anos. Lily e Luna tinham onze anos.

Luna compartilhava uma mesma moradia com Lily. Era sua irmã, criada pelos mesmos pais e com o mesmo amor e mesmas crenças.

Na penumbra crescente de Zion, Luna segurava um caderno sujo, no qual escrevia com carvão. Havia desenhos de gente que contava estórias sobre como era a vida em Matrix – e Luna desejava ardentemente conhece-la com seus próprios olhos.

Estavam numa espécie de catedral enorme que era o centro de Zion. As casas eram como cavernas com portas de ferro pintadas de vermelho. Era uma colmeia enorme de pequenas cavernas em centenas de andares, que eram as moradias de Zion. As luzes se apagavam automaticamente no mesmo horário. Zion estava presa à tecnologia das maquinas.

Havia grandes e pequenos corredores e elevadores. Alguns corredores lembravam estradas da Terra de tão largos. Todos construídos em uma cidade vertical. Dava a impressão, nos andares mais elevados, que Zion se abria para o abismo. Ainda mais com luz amena de sol nenhum.

O chão era de terra. A comida era pouco saborosa e muito nutritiva. Era uma realidade estranha cheia de tecnologia e de filosofia simplória. O governo de Zion era composto por um Conselho.

A porta atrás de Luna se abriu com um barulho de metal se movendo. As pessoas estavam dormindo ou já trancadas em seus dormitórios. Luna gostava de ficar lá fora, os pés balançando sob a imensidão de Zion, onde pra cima e pra baixo só havia mais e mais andares de moradias – imaginando o que existiria além daquilo no mundo. Seus grandes olhos azuis lembravam uma coruja curiosa. Lily saiu do quarto para encontrar a irmã.

Lily se sentou ao lado de Luna, ignorando a altura abaixo delas. Seus pés penderam para o abismo. Ela abriu os olhos verdes para que eles se acostumassem com a escuridão. Sua mão tocou o queixo de Luna, que parecia absorta.

– Como era a luz em Matrix, Lily? Você se lembra? – perguntou Luna com olhar sonhador, cheia de cobiça.

– Era mais forte. Não gosto de me lembrar. Era mentira. - respondeu a irmã Lily, tirando os cabelos ruivos dos olhos verdes.

– Você acha que tem sorte? Por ter se livrado de Matrix?

– Não é isso que nossos pais sempre dizem? Que eu deveria me orgulhar por ter vindo para cá tão nova? – perguntou Lily inquieta, como se Luna a julgasse.

– Eu acho que a realidade pode ser uma prisão. Não importa que te digam que ela é a certa. – respondeu Luna, séria.

– E o que significa? Que ser livre de Matrix é errado?

– Não! – protestou Luna, como se Lily não entendesse muito do assunto. – Não acho que você fez errado. Acho que devíamos ser livres para escolher, entende? Porque às vezes papai traz as pessoas para cá e elas não escolheram como você... Só dói, Lily, quando a gente vive no lugar ao qual não pertence.

– E como é que a gente sabe que pertence? – perguntou Lily, contrariada, mas ainda curiosa pelo discurso da irmã.

– A gente se sente feliz até quando as coisas dão errado.

– Por quê?

– Não é obvio? Porque a gente sabe que logo sem seguida tudo dará certo. Afinal, é nossa casa. Quando é que tudo pode ficar mal para sempre quando estamos em casa?

– Eu sinto que nada por dar errado aqui em Zion. Porque aqui eu tenho pais de verdade. E aqui eu tenho uma imã de verdade. – admitiu Lily sem corar.

Luna sorriu um riso singelo e as mãos das duas se tocaram na escuridão.

A luz de Zion atingiu um tom muito baixo revelando a penumbra de uma noite ofuscada pela artificialidade e inquietou mais a alma de Luna. Matrix não parecia uma prisão quanto mais os anos passavam. Parecia suas asas de liberdade.

Lily não concordava com isso. A luz de Zion trazia paz. Paz não era uma coisa que ela conhecera dentro da ilusão proporcionada em Zion. Ela conseguia dormir sem pesadelos porque era amada de verdade.

– Os operadores estão trabalhando em uma atualização para Matrix. – disse Luna colocando o caderno no colo.

– Como você sabe disso? – perguntou Lily intrigada. – Andou bisbilhotando de novo? Papai odeia que você saia por aí pegando informações com operadores e capitães, você sabe!

Luna puxou suas pernas para cima, enlaçando os joelhos com as mãos.

– Eu só queria saber mais sobre Matrix. Você veio de lá por isso não se interessa. – argumentou a irmã.

– Por isso mesmo eu não quero! – Lily se irritou. – É mentira, Luna! Tudo mentira! Eu tinha pais de mentira! Eu tinha uma irmã... - Lily ficou de pé sem perceber, nervosa demais para não gritar, sua voz ecoando nas paredes de Zion.

– Se estão atualizando Matrix significa que demorará para acordarem todos da ilusão.– contrapôs Luna. – Por que papai ia aceitar uma atualização se todos fossem acordar agora?

Lily se sentou novamente, mais calma. Fitava Luna com amargura. A porta do dormitório ao lado se abriu. O único barulho era o das máquinas trabalhando para purificar o ar e a agua, ao longe, e o eco das vozes das duas irmãs. Do dormitório à esquerda saiu Trinity, a mãe delas. A mulher possuía cabelos curtos e lanzudos e olhos azuis como os de Luna. Tinha ombros largos com alguém esportista. Perguntou com paciência para elas:

– Você querem acordar toda Zion? Por que você está gritando, pequena Lily?

– Luna estava espionando os operadores! – contou Lily a contragosto. – E fica falando sobre Matrix ser uma coisa boa...

Trinity não pareceu surpresa. Sabia que sua filha de sangue tinha esse espirito curioso e livre. Fazia perguntas inconvenientes e se interessava por coisas estranhas para uma criança. Ela agachou ao lado das duas e olhou fixamente para Luna.

– Quero saber por que estão atualizando Matrix se papai diz que as pessoas devem ficar aqui na realidade “de verdade” – resmungou uma Luna atrevida.

Trinity arqueou as sobrancelhas para ela. Fechou um pouco o casaco e arrastou os pés pelo chão lamacento, descalça como ambas.

– Por que estão atualizando Matrix? – repetiu Luna sem desviar o olhar. Lily também se aprumou. Parecia levemente interessada.

– É difícil fazer com que as pessoas aceitem que Matrix é de mentira, Luna. A atualização ajudará seu pai a separar as pessoas que aceitarão a verdade mais depressa. Então pararemos de tentar convence-las. Parar de perder tempo com as pessoas muito presas à Matrix, entende? Vamos despertar apenas as pessoas separadas pela atualização.

– E como a atualização se chama? – perguntou Luna, cheio de desejo na voz.

– Hogwarts. – respondeu Trinity.

– Eu quero conhecer Matrix, mamãe. – confidenciou Luna.

– Você nem tem os conectores. – lembrou-lhe Lily.

Lily se referia aos buracos que ela, sua mãe e seu pai tinham pelo corpo. Luna era uma “humana pura” porque nascera em Zion e não tinha os conectores. Eram furos por todo o corpo, responsáveis para manter as pessoas das incubadoras na ilusão e também pela alimentação e todas as necessidades fisiológicas do corpo. Eram os furos que permitiam a conexão com Matrix.

– Um dia – disse Luna em tom etéreo – eu ainda terei conectores e conhecerei Matrix. Porque você veio de lá, Lily. Então o contrário também é permitido.

Trinity trocou um olhar nervoso com a filha ruiva antes de manda-las para cama.


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