Impressões Enganam, as escrita por MyKanon


Capítulo 3
Ela tem intolerância a lactose




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_ E aí, cara! Que que você tá fazendo aqui?

_ Robinson!

Cumprimentei o antigo colega que surgiu na minha baia.

_ Pedi transferência. E você? Faz tempo que está por aqui?

_ Quase um ano. E aí, já conheceu a Veri?

Ele indicou a jovem que acabara de me ceder o telefone com a cabeça.

_ Sim, ela me... Deu o telefone. - ergui o aparelho.

_ Legal. E aí, vem almoçar comigo na galeria?

_ Vou sim cara, preciso conhecer o lugar.

_ Então vou indo lá. Passo aí na hora do almoço.

_ Beleza.

Depois de ficar sozinho novamente, voltei a trabalhar. Agora mais do que nunca tinha que mostrar serviço. E um bom serviço.

 

*

 

_ Diz aí, já conhece todos os chefes mais influentes da área? - perguntei em tom bem humorado ao terminarmos o almoço.

_ Os que me importam, sim.

_ Como é o Carlos Barasal? Ele me pareceu meio impaciente quando tentei falar com ele pela manhã...

_ Ah, esquenta não. Ele tá sempre sem tempo. Basta não atrapalhá-lo que acaba caindo nas graças dele.

_ E quem cuida do ITIL geral?

_ Não conheço. Mas acho que é o chefe do Barasal.

_ Será tão chato ou pior?

_ Não tenho ideia.

_ Pô, e que colega que eu arrumei hein... Como vai ficar quando eu precisar de ajuda?

O Robinson riu ao se lembrar da minha colega.

_ Não fala com ela, que ela também não vai te incomodar. Só não se assuste quando ela começar a falar sozinha.

Fiz uma careta de susto, o que fez com que meu colega risse ainda mais.

_ Ela foi pra lá achando que finalmente ia ficar sozinha, e aparece você para incomodá-la...

_ O que eu posso fazer? Me mandaram ficar perto do Barasal, e era o único lugar vazio! Diz uma coisa, ela não preenche vaga de funcionário especial, preenche?

_ Sinceramente eu não sei, cara...

_ O que é que ela faz?

_ Também não tenho certeza, mas acho que é especificadora...

Terminei de tomar meu suco, e decidi mudar de assunto:

_ Mas e como é a mulherada aqui? Tem mulherada, né?- ri.

_ É difícil, mas até tem, só que são meio metidas viu...

_ Só porque você não conseguiu pegar ninguém?

_ Ei! Tá me estranhando meu?

Continuamos conversando sobre assuntos sem importância até voltarmos a nossos postos de trabalho.

O andar estava praticamente vazio quando voltei para o meu lugar.

Decidi navegar um pouco na internet antes que alguém voltasse, pois a prática era proibida na empresa.

_ Oi...

Fechei rapidamente as janelas que tinha aberto e ergui a cabeça.

_ Não estou conseguindo acessar a internet... Você entende alguma coisa sobre isso?

Aquela criatura esquálida jazia parada em frente à minha mesa, estática.

_ Ahn...

Por que ela estava me pedindo algo que era proibido? Bem, eu estava usando...

_ Posso dar uma olhada.

Levantei-me e fui até a mesa dela sem esperá-la.

Tinham alguns bichinhos que balançavam a cabeça com o movimento da superfície onde estavam, e um porta canetas peludo. Tudo ali inspirava jardim de infância.

Tentei acessar a rede, mas não deu certo, então alterei algumas configurações e... Nada. Queria sair logo dali, pois a garota me encarava insistentemente. Talvez fosse apenas parte de seu comportamento estranho, mas me incomodava muito.

_ Deve ser o fio. - eu disse sem graça para tentar desviar a atenção incômoda.

_ É... Pode ser. - concordou vagamente, ainda sem deixar de me encarar.

Abaixei-me e apertei alguns fios. Pelo menos ali em baixo ela não podia me ver.

Ledo engano. Senti um salto no peito com o susto que o rosto dela me deu ao surgir em baixo da mesa.

_ Quer ajuda? - ela sorriu parecendo empolgada.

_ Não, não. Já terminei.

Arrastei-me para fora do compartimento, tomando o cuidado de manter-me bem longe dela.

_ Quer tentar agora?

Ela também se levantou e mexeu no micro.

_ Ah... Que bom! Está funcionando!

Ela voltou a me encarar e sorriu.

_ Obrigada!

_ Hum! Disponha!

Aliviado, voltei para o meu lugar. Senti medo de talvez ela tomar a liberdade de conversar comigo por causa do favor, mas felizmente ela fez silêncio por toda a tarde.

 

*

 

Por toda a semana trabalhei sem receber nenhuma orientação, então continuei apenas fazendo o que estava habituado a fazer no outro prédio.

Continuava recebendo ligações procurando pela Veridiana, mas a frequência foi diminuindo até o fim da semana.

Sempre que eu chegava, ela já estava a postos, digitando muito agilmente, mas sempre parava para me cumprimentar com aquele sorriso vago.

Ela parecia muito assídua e comprometida com o trabalho que fazia, qualquer que fosse ele. Por causa disso, estranhei sua ausência na segunda-feira seguinte, o que se repetiu na terça-feira.

Na quarta-feira quando cheguei, o lugar dela ainda estava vazio e comecei a achar que havia sido mandada embora.

_ Mas os bichos continuam aí... - murmurei para mim mesmo quando vi uns cachorrinhos balançando as cabeças medonhamente por causa do movimento da minha mochila sendo colocada sobre a mesa.

Pouco antes da hora do almoço, a porta de vidro se abriu, e como habitualmente procurei ver quem era.

_ Bom dia... - ela me cumprimentou avoada.

_ Oi, bom dia, Veridiana.

Ela sorriu mais abertamente e propôs:

_ Pode me chamar de Veri... Todo mundo chama.

Quem? Nunca havia visto ninguém falando com ela... Senti pena de sua carência.

_ Tá.

Ela continuou mais algum tempo me encarando, sem dizer nada.

_ Hum... E então... Foi bem de fim de semana? - me vi obrigado a perguntar.

_ Hum-hum. - ela confirmou sem dizer mais nada.

E continuou na mesma posição. Será que queria alguma coisa?

_ Você aproveitou para emendar? - tentei.

_ Ah, não... É que eu tenho intolerância a lactose.

Não entendi chongas...

_ Ahn, claro.

_ E comi pão de leite no domingo.

_ Hum-hum. - voltei minha atenção para o computador, na tentativa de dispersá-la.

_ E ontem eu trabalhei fora mesmo.

_ Ah, tá explicado. - continuei me concentrando no meu trabalho.

_ Alguém ligou para mim? Digo... Nesses dois dias?

_ Não. - continuei sem encará-la.

_ Ahn. Tá, obrigada, então.

_ Não tem por onde.

Ela riu, o que me fez voltar a encará-la.

_ Ah, não é nada. É só que me lembrei do Chaves...

Ergui uma sobrancelha em estranhamento.

_ Você conhece, não é? - ela perguntou séria.

_ Claro. É só que... Eu tenho uma coisa importante para fazer... Não me leve a mal... Podemos falar mais depois... Quem sabe no almoço, não é?

_ É? - perguntou esperançosa.

Pronto, arrumara uma situação constrangedora. Será que ela não entendia o que eu queria dizer?

_ É, talvez...

Então seu sorriso se apagou lentamente e eu já não sabia se ainda estava olhando para mim, ou para o vazio logo atrás de mim.

_ Ah... Mas hoje não vai dar... Tenho tanta coisa pra fazer...

Por que ela queria fazer parecer que eu a estava chamando para sair? E pior, que estava me dispensando?

_ Não tem problema.

Voltei-me outra vez para o micro. Será que ela não iria embora nunca mais?

_ Talvez outro dia.  Vítor, né? - perguntou confirmando meu nome.

Encarei-a curioso.

_ Ah, as notícias correm... - e riu divertida.

_ Hum-hum.

_ Então eu tenho que ir Vítor... Bem... Mas vou estar aqui do lado, né? Então, estou indo para o lado.

Ela acenou e finalmente foi para a sua mesa.

Bufei irritado e voltei a trabalhar. Fiquei apreensivo quando vi o Robinson se aproximando para me chamar para o almoço. Não queria ter de convidá-la de verdade.

Mas por sorte ela não estava lá. Talvez tivesse ido ao banheiro, por isso saí feito um fugitivo.

O Robinson me encarou curioso enquanto aguardávamos o elevador.

_ Ih cara, nem queira saber... - aconselhei.

Naquela mesma noite tive um pesadelo, com grandes olhos cinzentos e arregalados.

 

Continua


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