The Wild Youth escrita por moonshiner


Capítulo 15
Setting fire to our insides for fun


Notas iniciais do capítulo

eu vou parar de pedir desculpas por demorar porque sinceramente não está dano +
eu prometeria que eu vou ser mais ra´pida a partir de agora, mas o negócio é o bloqueio e ele é hard
então
oie
esse capítulo é provelmente o mais feels da fanfic so far
musiquinha de hoje
Youth - Daughter



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                                                Sam 

 

Minha cabeça é uma metrópole de devastações renascentistas 
monogamias inacabadas e lares catatônicos e 
homens apaixonados pela mesma tragédia

É como se fosse uma gaiola de pássaros. E por incrível que pareça, eu estou falando da minha casa e não da minha cabeça. 

As janelas estão vetadas na biblioteca porque ninguém além de mim a usou. Os vincos nas paredes e no teto formam crostas minimalistas e meu pai diz que eu deveria limpá-los, mas o cimento nem sequer está pintado. Boa parte dos livros está encaixotada e meu maior suvenir da antiga casa é o quadro da Amy Whinehouse manchado de infiltração. Está assim desde antes do Natal. 

Eu sei que meu quarto tem paredes estreitas e está pintado de cinza. Me sinto num manicômio. E uma vez, com parte da parede faltando. 
Ah, a parede. 

Meu pai tomou antidepressivos e degolou minha pintura de Cidadã Sem Cabeça, que era basicamente uma mulher com fumaça de baseado no lugar da - adivinha - a cabeça dela. Ele arrancou uma cabeça que nem sequer existia. Com uma marreta. E tem um buraco na minha parede. 

Estou na sala agora. O aquecedor não está ligado, mas sinto as pontas dos meus pés começarem a esquentar a medida em que Maggie puxa seu cardigan do braço da poltrona e amarra-o na cintura. É irônico, mas é ansiedade que começa a formigar nas pontas dos meus pés; 

— Tenho que ir. - Avisa - Eu, Charlotte e o resto da gangue vamos à uma exposição de Star Wars. 

— E eu vou ficar em casa. 

— Porque você é a única pessoa quase decente nessa galáxia que ainda não assistiu as porras das trilogias, Lancaster. 
Dou de ombros e assinto com descaso. 

— Traga-me comida e um pouco de paz interior. - Estico minha coluna sobre o estofado e ouço-a estalar de maneira ranzinza. 

Eu não posso estar tão velha assim. Posso?

Ela sorri de lado e passa as mãos por seus fios loiros desiguais. Noite passada, tentamos cortá-los com uma tesoura sem ponta. E depois, com uma lâmina de barbear. Eu não sei bem o porquê, mas desconfio de que estávamos chapadas. 

Acho que ela não se incomoda. Maggie gosta de tudo que é quase meio esquisito o suficiente para que as pessoas possam perguntar "ei, por que você fez isso?" e ela então possa responder "porque eu quis". 

— Tchau. - Ela se inclina, me dá um beijo na testa bastante maternal e depois sai. 

Começo a sentir falta de Maggie antes mesmo dela sair de verdade. Não porque somos melhores amigas pegajosas e obssessivas que têm necessidade uma da outra o tempo inteiro, mas porque eu tenho medo de ficar sozinha com o meu pai e o meu irmão. Eu nunca sei quando eles vão explodir, mas na maioria das vezes, é quando eu estou me sentindo quase bem. Não gosto de sentir isso sozinha. 

Ouço a fechadura bater e a cerca do jardim vibrar pela grama verdejante. Eu também não gosto de ir lá fora, já que metade do jardim da minha avó morreu de mortes tão bizarras quanto a minha saúde mental. 

(Um gato arrancou um punhado para brincar com elas 
Passaram com o carro por cima de algumas e tívemos que reconstruir as cercas depois
Bianca colocou fogo num buquê de tulipas quando ela estava bêbada
E depois elas finalmente passaram a morrer normalmente).

XX. 

Eu leio Ferlinghetti enquanto ouço meu pai despejar milho enlatado numa tigela de porcelana. 

Seus dedos são petulantes e ele se move pela cozinha como se fosse um desaforo estar ali. 

Não sei quanto tempo faz que alguém não limpa as janelas daqui, mas parece que não conseguimos ver o exterior pela luz da cozinha. Parece que ninguém nem vem aqui. E eu perdi quase cinco quilos. 

O cheiro da carne é familiar, mas não é idêntico. O fato de que tudo o que temos é apenas algo perto de uma memória distante o deixa bastante incomodado. E ele não vai parar até que eu consiga mentir sem piscar e dizer que minha mãe ficaria orgulhosa do seu frango xadrez. 

Jogo minha perna por cima da mesa de jantar e ele joga o pano de prato por cima do ombro, indo em direção ao fogão. Enquanto o caldo suculento borbulha lentamente, ele franze a testa numa expressão determinada e começa a fatiar um pimentão em cima da tábua (no dito cujo oleoso balcão). 

Uma gota de molho apimentado e dourado cai em sua mão direita e ela reclama. Então, faz a típica introdução paterna à minha vida adolescente e pergunta, só para descontrair:

— Como está indo na escola? 

Não que eu esteja realmente animada ou completamente desinteressada, mas tento fazer isso por ele. Tento fingir que eu não odeio o patriarcado (mentira enorme), tento fingir que eu não almoço no banheiro ás vezes (mentira enorme. Creep.mp3), tento fingir que meus melhores amigos não estão brigando e agindo como se não se conhecessem (mentira que meio que não é da minha conta, mas me deixa puta para caralho). E tento agir como se eu não quisesse pular logo para a faculdade. 

Por outro lado, eu falo da peça, das minhas melhores amigas, vestibulares, minhas notas exemplares na maioria das matérias que envolvem qualquer tipo de texto dissertativo e nenhum garoto. Isso parece agradá-lo. 

— Fico feliz que um de nós está seguindo com a própria vida de uma maneira produtiva. - Diz, orgulhoso e pretensioso. 

Seu tom pretensioso, como sempre, é exclusivamente de Tyler, mesmo que ele não esteja por perto para ouvir. E não que meu pai esteja errado - Tyler tem vinte e três e está desempregado -, mas eu prefiro ignorar. Então encaro aquilo puramente, como a criança Sam de onze anos faria. 

— Obrigada. - Respondo, e volto a raspar a tinta seca na parte inferior do livro.

É cinza, porque Nico o pegou quando eu não estava olhando. Suas tentativas de reaproximação seguem abordagens bastante únicas e paralelas.

Não concordo com elas, muito menos as aceito. Por mais que ás vezes eu goste dele, ainda tenho vontade de socá-lo até fazê-lo sangrar. 

— E aquele garoto? 

Eu me engasgo com a própria saliva ao vê-lo soar potencialmente curioso. 

— Você quis dizer o filho da sua vizinha há mais de quinze anos? 

— Por que ser tão formal ao falar do Nico? 

— Porque eu o odeio e definitivamente não sou obrigada. 

Meu pai suspira exasperado e coloca o pimentão ao lado das cebolas em cubinhos. Tudo o que ele faz, ou boa parte de tudo o que ele faz, é sempre metodicamente organizado e criteriosamente avaliado. E eu considero isso uma característica completamente detestável. 

— Acho que ele gosta de você. - Especula, soltando as cebolas dentro da panela, junto com os pimentões. 

A névoa incolor e saborosa que desperta faz o favor de transparecer a janela ao lado do fogão. É a primeira vez em meses que eu consigo ver o nosso jardim daqui. 

E Deus, ele nunca esteve tão sem graça. 
Mas meu pai está falando de Nico. Estamos falando de Nico. Tenho que parar de prestar atenção nos detalhes aparentemente insignificantes enquanto estamos conversando. 

— Ele pode até gostar de mim, mas precisa aprender um jeito de demonstrar sem soar como um babaca sociopata. - Respondo. - E quer saber? Se ele gostasse mesmo de mim, não teria feito isso. Ele diria, me beijaria, me daria vinho, velas aromáticas e um filme do Heath Leadger na sexta-feira à noite. Mas ele escolheu me humilhar. E eu escolhi mandá-lo para casa do caralho. 

Eu paro, respiro, fecho o livro com força e apoio meu queixo na mão. 

— Não importa o que vocês digam, isso não é amor. 

É verdade. Não gosto de bancar o tipo de pessoa que nega os próprios sentimentos; não estou negando os meus. De fato, eles são mais onipotentes do que Deus conseguiria controlar, mas eu apenas não sei lidar com eles. Não os escondo.

E no momento, há uns bons meses, tudo o que eu sinto é raiva. 

— Você é irritada. Como sua mãe. - Comenta, fazendo-me sorrir. 

 

— Eu não sou irritada. Sou uma pessoa que sente muitas coisas ao mesmo tempo. - Sou uma escritora, mentalizo. - E estou me defendendo. 
 

E sinto que queria muito nunca mais sentir. Nada. Sério. 
 

Mas eu me sinto vazia quando não sinto

e insegura quando estou feliz

Como se qualquer coisa pudesse dar errado a qualquer momento. 

— Isso pode ser bastante auto destrutivo. Não a parte de se defender. A parte de sentir demais.. - Diz ele, num tom bastante casual. - Mas eu acho que você já sabe. Não é?

Sorrio amarelo.

— É. Eu sei. 

Ouço o piso ranger sob o peso de alguma coisa e Tyler dá as caras no batente, encostando-se na madeira envernizada e antiga. Ainda de cabelos bagunçados, olhos sonolentos, espinhas saltando do rosto. Ele é deplorável como a nossa parte da família que veio do Alabama, ainda com a camisa de flanela e o "bom dia" prepotente no canto do rosto. Mas ele não o diz, porque se Tyler não acredita que um dia vai ser um bom dia, ele não o deseja para você.

E eu acho que faz sentido. 

XXX.

Faço uma ode silenciosa. Ao Thom Yorke, velas aromáticas e Heath Leadger. Sinto que as coisas estão começando a voltar aos eixos, então abro uma porra de uma caixa de pandora e me enfio dentro dela enquanto o mundo se acaba em pós-modernismo, surrealismo, paternalismo e egoísmo. Compro coisas caras e leio poemas de gente que já morreu. 
Escrevo poemas sobre gente que já morreu, baseados em poemas de gente que já morreu. 

Mas as pessoas te acham mais inteligente por isso, então você continua com a mentira. E não é meio que é ruim, só é meio que triste que você precise tentar encontrar uma síntese quase hollywoodiana para poder se sentir feliz. E é aí que você começa a enlouquecer. 
Faço listas sobre a minha rotina. 

 

1 - Sou Elizabeth Bennet
2 - Meu pai até que é um bom cozinheiro
3 - Meu irmão coexiste 
4 - Odeio Nico di Angelo
5 - Estou cansada
6 - Eu juro que não estou enlouquecendo. 

E é por isso que eu as faço. Se você quer encontrar e desmembrar seu "eu" artista desmistificado, você precisa passar pelo Inferno antes. Você precisa mesmo perder a cabeça.

Tento me esconder e me reinventar porque meu pai e meu irmão não param de brigar, porque Tyler tem vinte e três anos e ainda não tem um emprego. E ele é tão triste e miserável e o garoto que eternamente dorme, que eu sinto medo em começar minha vida adulta do jeito que ele começou. Eu amo escrever poemas sobre gente morta, mas boa parte de mim gosta de fazê-lo por medo de acabar vivendo no sofá dos próprios pais depois da formatura. 

Se eu não posso viver uma vida legal por mim mesma - aos vinte anos -, eu posso fazer com que pessoas mortas fictícias a testemunhem. 
Eles gritam a plenos pulmões. Minha parte materna e distante de Iowa poderia escutá-los. Então eu tento focar nas minhas memórias infantis, quando eu me trancava no banheiro onde a porta tinha uma fechadura estragada. Tyler quase sempre socava o carvalho sem saber que eu estava lá e eu quase sempre acabava tendo uma concussão porque minha cabeça estava apoiada nela. 

Quando meu pai quebrou a parede com uma marreta, uma parte de concreto caiu no meu disco da Judy Bridgewater. Por incrível que pareça, ele não ficou tão completamente danificado, mas Never Let Me Go sempre faz um barulho esquisito. Como se estivesse com estática. Quando meu pai grita que Tyler precisa arranjar um emprego, o toca discos no meu quarto garrincha e os meus nervos se comprimem. Eu não sei o que é, mas não consigo fazer parar. 

E é radioativo.

E é venenoso.

E é como um corvo. 

E como cordas.

Ouço algo se chocar no andar de baixo, mas sei que não preciso me preocupar, já que Tyler provavelmente deve ter socado a parede, não levado um soco. 

Eu gostaria

Eu espero

Eu queria

Que fossem estrelas colidindo. 

Então eu escrevo

Que o Éden não é um lugar tão bonito

Olhado de perto 

Tipo quando você chega em casa

E colocaram sua coexistência na parede

As vacâncias são tão viscerais

Que você se arrepende de ter pego o primeiro ônibus

E então eu percebo que eu estou surtando. Eu sempre percebo quando já é tarde demais. 

É muito simples e eu sigo as instruções das experiências anteriores: peito pesado, olheiras profundas. Eu me olho no espelho, apoio minhas mãos na mesa da penteadeira e repito meu mantra de sempre. 

"Você tem sorte de estar viva". Mas soa hipócrita para caralho. Ás vezes eu acho que isso não é nem questão de sorte. É questão de comodidade. 
E meu pai diz mais alguma coisa para Tyler. Então ele para. E mesmo com a porta fechada, ouço-o subir pelas escadas como uma bola de canhão. Eu não sei qual dos dois está aqui, mas eu tenho medo da presença de ambos. Meu pai gosta de descontar em mim. Tyler sempre sentiu raiva, mas eu nunca lhe fiz nada. 

Meu pai nunca me bateu. Ele só gritou. 

Mas Tyler sim. Ele fez os dois.

Então eu tenho medo. 

Medo do que pode acontecer caso eu pare de sentir medo. 

Medo do que pode acontecer caso eu me sinta bem de novo. 

A sorte do dia é que eu acho que nenhuma dessas opções vai acontecer. 

XX.

Eu descubro que Tyler foi embora de casa ás quatro e meia. Ás cinco, meu pai sai para beber. Ás cinco e meia, eu quebro um espelho. Depois de cinco e quarenta e cinco, eu enfio um martelo no buraco que já foi feito na parede e sinto que meu lobo frontal começa a desmantelar junto com com as folhas de papel que eu queimo no quintal depois do relógio bater na casa das seis. 

Eu volto para o meu quarto. Minhas mãos estão pingando num vermelho corrosivo. Recolho meus dedos sob a manga da blusa e vejo-a se manchar de pólvora., então corro até a mesa de cabeceira e pego um pacote cheio de erva escondido numa lingerie da Victoria's Secret. Eu sei que eu deveria pegar um kit de primeiros socorros, mas eu não quero que ninguém entenda o fato de que eu não sei o que está acontecendo. Minhas mãos estão sangrando e meu espelho está estilhaçado, e ninguém nunca sabe o porquê de eu quase não falar do meu próprio irmão. 

Eu não falo dele porque ele coexiste. 

Eu não tenho boas lembranças. Tyler nunca me deixou chegar perto o suficiente. É por isso que ele é um borrão. 

Nossa avó costumava dizer que eu era um furacão, mas eu acho que quem devastou boa parte do subúrbio foi ele. E ele nunca arranjou um emprego, mesmo que meu pai estivesse quase perdendo o carro. Ele não quis arranjar um emprego. 

Um halo denso e cáustico eclode na sacada do meu quarto. É cinzento, cambaleante e resplandecente ao mesmo tempo. O céu de seis da tarde é azul escuro, como uma veia, mas eu consigo ver seus olhos soturnos no meio do emaranhado de cabelos negros. 

Bianca bate na janela, e eu digo que ela pode entrar. Então, ela puxa a janela para cima e a deixa escancarada quando entra. O familiar vento de começo de noite em Westfield serpenteia pelo quarto de maneira quase melancólica. 

Ela se senta à minha frente no tapete volumoso e eu sei que é estupidez tentar limpar as minhas mãos, esconder os cortes mínimos no rosto, tirar o sangue da blusa e acender incensos para disfarçar o cheiro de queimado. E claro, varrer os estilhaços. 

Então Bianca faz tudo silenciosamente: tira os cigarros sanguinolentos das minhas mãos, limpa meu rosto com a manga da blusa. Seu rosto é borralhento e cansado sob aquela manta de preocupação evidente, mas eu resolvo que não posso perguntar o porquê, já que ela provavelmente está interessada em saber como eu estou e isso a deixará irritada. 

— O que houve, Sammy? - Ela pergunta, sentando-se ao meu lado na cama. 

Eu suspiro profundamente e encolho as pernas, mordendo meu lábio. 

— Eu nunca fui muito de fumar, mas de uns tempos para cá parece que eu não consigo ficar sem. - Eu rio. Um riso vesano, descompensado e completamente sem nexo. - Isso é culpa sua. Eu preciso parar de matar aula para fumar no quintal do Velho Kirby. 

Eu tento alcançar meu isqueiro de Hollywood na cabeceira da cama, mas ela me dá um tapa no antebraço e faz uma cara feia. 

— Você tá chapada? 

— Seria meu sonho? 

Bianca revira os olhos. 

— Eu posso te ajudar, mas só se você me disser o que houve. - Insiste, acariciando meu polegar com a ponta do seu. 

— Tyler foi embora de casa. - Digo, rindo nervosamente de novo. - Mas eu não sei se é isso que está me deixando meio louca para caralho. 

Bianca suspira. Eu suspiro. Ela pega meu braço e descobre que meus pulsos estão cortados também, mas não do jeito que os meus dedos estão. Mais um suspiro: cansado, arrependido, vencido. Mais sangue, só que dessa vez ele é leve e parece aquarela. 

— Você fez isso? - Pergunta. 

— Sabe que eu não lembro? - Confesso. E é verdade. Talvez eu tenha fumado maconha, mas foi por uma boa causa. 

— Por que ele foi embora? - Pergunta, aconchegando-se nos travesseiros azul turquesa e massageando as mechas bagunçadas do meu cabelo. Não tenho certeza, mas acho que seu moletom é velho e tem cheiro de naftalina. 

— Porque ele não queria arranjar um emprego então meu pai ficou bravo. Aí ele quis se mandar porque disse que não aguentava mais viver aqui. - Dou de ombros. - Ele nem sequer tem dinheiro ou lugar para ficar. 
Ela confirma com a cabeça, silenciosamente, e esfrega sangue seco do peito da minha mão. Percebo que as suas estão sujas também, mas de um tipo diferente. Sangue vivo, não sangue sujo. Não sei de quem é, mas pode ser seu. Talvez eu também esteja ficando louca, porque não consigo parar de ver coisas. 

— Você matou alguém? - Pergunto, mas ela sabe que não é sério, então apenas ri. 

Ri de um jeito nervoso e desbotado, o que certamente não combina com seus olhos caricatos. 

— Você está chapada, precisa de um banho e precisa se acalmar. 

— Você também. 

— Qual das três coisas? 

— Todas. 

Mas Bianca não responde.

Sempre foi boa em esconder coisas. 
                                                       

                                                XXX.

Quanto mais eu percebo o quão maravilhosas
As coisas e as pessoas podem ser

Mais eu tenho medo de que elas desapareçam 
A cabana no meio da floresta fica escondida entre a bruma de fim de noite e um letreiro bem distante de fast food no pé da estrada, quase no limite da cidade. É confundível com um monte de destroços, mas tem uma fama póstuma. Só voltei a notá-la depois que a decoração interior começou a definhar. Só voltei a enxergar beleza em sua arquitetura quando ela começou a se parecer com um suvenir de guerra. 

Eu quero explicar: eu ainda estou chapada. A diferença é que Bianca pegou as chaves do carro de Nico e ligou para Leo. Ela não estava no clima de pegar filas e pagar ingressos, e Leo não queria olhar para Nate. Eu nunca assisti Star Wars. Então agora estamos fumando maconha de frente para uma imagem deprimente para caralho. 

É completamente compreensível. Mas eu sei que quando nós três nos encontramos assim, é porque estamos cansados de aguentar a merda dos outros. Desde a pré-adolescência, muito antes de Maggie e Charlotte aparecerem, nós éramos as escórias mais legais e alternativas do bairro. Bianca arranjou cigarros com treze anos, eu consegui surrupiar uma garrafa de vodca e Leo trouxe projetores para assistirmos filmes aleatórios de sacolas plásticas flutuando por aí. Eram só cenas cortadas de "Beleza Americana", mas eram diálogos incríveis. Ele nos fez acreditar que eram seus. 

Então nós bebíamos vodca com gosto de acetona e recitávamos Pussycat Dolls com entonação de Shakespeare já que não conseguíamos ficar bravos com tanta beleza no mundo. Mas as coisas vão mudando quando você cresce. 

Seus ideais se tornam amantes. Seus parentes se tornam inimigos. Seus amores se tornam medos. E tudo o que você faz para tentar não ficar bravo ou perder as pessoas se torna em vão. 

Tudo se vai. Você tem que lidar com isso, mas não consegue. 

— Eu nunca mais entrei ali. - Digo, encostada no para-choque da caminhonete lata-velha.- Vocês acham que deve ter o que lá dentro? 

— Eu acho que as pessoas invadem aqui para fazerem rituais. - Diz Leo, enfiando as mãos no bolso e acendendo seu baseado com o meu famoso isqueiro de Hollywood. 

Vejo pupílas pirotécnicas nele. Acho que ele vê orelhas de coelho na minha cabeça. Bianca acha que é um gato (ou eu acho que ela é um gato) enquanto coça a cabeça com a parte traseira da mão. 

Estamos todos chapados. 

— Vocês sabem do que mais? - Incita a garota, - Essa casa é tipo a gente. Velha, suja, desgastada, meio morta, inútil e ninguém quer entrar nela. 

Leo arqueia as sobrancelhas. 

— Mas eu não quero ninguém dentro de mim. 

— Mas ainda se aplica aos outros tópicos. - Justifica Bianca, fazendo uma expressão blasé que não devemos levar à sério. 

— Obrigado pela parte que me toca, eu acho. - Diz ele, sorrindo de lado. 

— Vocês acham que deveríamos ligar para eles? - Pergunto, franzindo o cenho e esperando um esquilo afobado pular da calha. 
Eu não sei como ele chegou ali, mas eu nem sequer sei se ele existe. Estou chapada. Isso me faz ver coisas e fazer perguntas idiotas. 

— Por mim, tudo bem. - Responde Bianca, dando de ombros. 
Olho para Leo. 

— Por mim também. Eu não tenho um problema com eles. Eu tenho um problema com ele. - Explica. 
Assinto veemente. 

— E eu não tenho um problemas com eles. Tenho um problema com o Nico. 

— Vocês sempre teve um problema com o Nico. - Afirmam, olhando-me como se fosse uma declaração óbvia e imbecil. 
E de fato, ela é. 

— Então eu vou chamá-los....? - Respondo questionando, retirando metade do meu celular para fora do bolso do casaco. 

Eles concordam e eu o faço. Ligo para Charlotte, que avisa a Nate, que avisa a Maggie, que avisa a Nico. Eles dizem que estarão aqui em menos de meia hora. Eu digo que "tá, beleza, falou" e encerro a ligação. Então, nós ficamos encarando a cabana balançar num tipo de serenata macabra de A Bruxa de Blair.

Em silêncio, eu penso que se você tem algo bonito, você deveria queimar. 

Para que algo bonito se torne útil.

Eu sempre acreditei na natureza despojada das coisas, mas nunca me vi libertando-a. 

Eu sinto falta da cabana porque me lembro de todas as vezes em que sentamos numa fogueira do lado de fora e esperamos os marshmallows derreterem à luz de oito e meia numa Westfield infestada de vagalumes e monotonia. Agora, eu quero vê-la se desintegrar, mas não completamente. 
Quando eles chegam, ainda estamos encarando o ponto fixo e lúgubre à nossa frente como se ele fosse a porra do Donald Trump merecendo levar uns tapas. Ainda vejo a madeira escumar sob a aprovação de um subconsciente chapado e criativamente destrutivo. 

— Nós trouxemos cerveja. Achamos que vocês iam querer cerveja. - Diz Nate ao chegar pela abertura chegar, colocando o engradado ao lado de Leo no capô da caminhonete. 

Eles fazem um rápido contato visual, mas depois desviam e voltar a agir como se houvesse uma barreira invisível entre eles e o resto do mundo. 

Charlotte sorri seu sorriso carmesim de Audrey Hepburn e tira uma lata de cerveja quente do papelão. Sei que ela odeia cerveja, então talvez apenas esteja sendo absorvida pelos trejeitos automáticos da nossa gangue. 

— E aí? Por que a reuniãozinha? - Pergunta, tirando o lacre e tomando um gole doloroso com uma careta mais dolorida ainda. 

— Viemos descontrair. - Respondo, percebendo o quão lenta e demente a minha fala soa, agora que tenho pessoas sóbrias ao meu lado para poder comparar. 

Nico se encosta no para-choque ao meu lado e pega uma latinha também, roubando o baseado da minha mão e encarando o meu famigerado ponto fixo destruído. 

— E tinha que ser num lugar tão deprimente? - Debocha, já que ele foi a primeira pessoa a nos trazer aqui nos dois primeiros meses de aula. 

— Isso aqui é Westfield. Todos os lugares são deprimentes. - Respondo, roubando meu baseado de volta. 

— Mas vocês estão mais. - Comenta Maggie, meio apavorada. - Cacete, vocês três estão acabados. O que houve?

Nós (Eu, Leo e Bianca), nós viramos em sua direção e ela simplesmente se toca. 

— Esquece. Não precisa responder.

Eu sorrio. 

Vagalumes alçam voo ao redor da minha fogueira imaginária. Catastrófica como mil sóis e descompensada feito um trem descarrilhado, eu viro para Nico porque ele é a única pessoa que eu consigo enxergar no meio da minha escuridão mental. Eu digo:

— Acho que deveríamos queimar.

— Queimar o que? - Ele pergunta, arqueando as sobrancelhas. - A cabana?

Eu concordo com a cabeça.

— Tipo, não necessariamente. Só, sei lá, os móveis, aquele sofá que tá um lixo. Sei lá. 

Meus amigos me encaram curiosamente enquanto um nimbo de folhas secas farfalha sob nossos pés. Eu odeio o outono em Westfield porque ele é sujo e nunca sinceramente frio. Um monte de folhas flutuam por aí sem direção enquanto o céu permanece estio e sem qualquer previsão de inspiração. É desconfortável, suas botas se enchem de terra molhada. Sempre que você passa as mãos pelos braços, o vento vem de duas direções diferentes, de um jeito agridoce. Ele é gelado e depois é quente. 

Mas eu desconfio que esteja quente agora pela fogueira que eu fiz questão de inventar.

Olho para eles novamente. 

— É. É isso aí. Eu acho que a gente deveria transformar esse monte de lixo em algo útil. - Respondo, enfiando as mãos no bolso do casaco. - É nosso último ano e essa porra tá parada há meio século. Ninguém vem mais aqui, e isso me deixa deprimida para caralho. 

Leo levanta a mão como se estivesse dentro da sala de aula e estivesse pedindo permissão para fazer uma pergunta. 

— Que foi? - Falo.

— E o que faríamos depois de queimar móveis? - Questiona. 

— A gente escreve nas paredes, cola umas paradas, desenha outras, faz alguma coisa. Eu só preciso fazer alguma coisa. - Suspiro, atolando as solas dos sapatos em um grande buraco negro de folhas amarronzadas, terra e bitucas de cigarro. 

Um tapete desbotado de "Bem - Vindo!" cobre a entrada, que está afundada em memórias póstumas, teias de aranha, mais bitucas de cigarro e garrafas vazias de Erdinger. 

Assim que toco a maçaneta, sinto o muco seboso de prováveis quatrocentos anos manchar a minha mão. Não que eu ligue de verdade, mas os músculos da minha cara se contorcem antes que eu possa protestar.
A madeira range um grito gutural e assim que ela se afasta um pouco do batente, névoa grossa e tóxica se forma ao redor da minha cabeça. Muita poeira, eu quero dizer. Poeira de verdade. Eu estou apenas exagerando quando eu digo que as pessoas nâo vêm aqui há mais de dois séculos, porque não faz nem um ano que todo mundo perdeu o interesse nessa casa. Entretanto, ela tem a aparência daqueles depósitos abandonados em filmes de terror onde algum curioso acha um corpo em decomposição em algum ponto da história. Eu sinto que vamos encontrar um a qualquer momento. E talvez seja o meu. 

Me afasto um pouco da entrada, já que eu sou alérgica à poeira e toda sua onipresença está me fazendo espirrar bastante. 

Olho para trás, arqueando a sobrancelha e colocando as mãos na cintura. Por Deus, que os geminianos aventureiros se manifestem.

— Ai, eu vou. - Diz Charlotte, colocando a lata de cerveja por cima do capô de novo (e ela parece feliz em fazer isso). 

Leo e ela se entreolham por um momento com um olhar que parece dizer: "é, por que não?" e quase como se significasse "já fizemos uma vez" porque eles são geminianos e parecem do tipo que fariam. Então eles dão de ombros e se juntam à mim, indo mais além do que eu fui. 

— Isso tá uma porcaria. - Admite Charlotte, bem audívelmente, ao entrar na cabana. - Tipo, tá um lixo. Sinceramente. 
E Maggie se aproxima, colocando a cabeleira loira desleixada para dentro da casa. 

— Eu tenho rinite e sinceramente não faço a menor ideia do que eu estou aqui. 

Bianca vem logo atrás dela, carregando um isqueiro aceso. 

— Ninguém tem. - E sorri seu melhor sorriso. Uma mistura de taciturno com aconchegante, compreensivo e misterioso. Divertido, se ela estiver nos seus melhores dias. 

O que eu tenho quase certeza de que ela não está. 

Então nós entramos. Um tapete vermelho de veludo falso se estende pelo que deveria ser a sala, enquanto o piso range furiosamente e libera imensuráveis partículas de poeira. O cheiro não é tão insuportável quanto eu pensei que seria, então talvez nenhum de nós nem sequer percebesse se não fossem as janelas vetadas e o mofo se escamando pelos quadros nas paredes. É tão parecida com a minha casa de verdade, e isso soa deprimente de novo. Tudo aqui me deprime. 

Nico e Nate aparecem na soleira, Nico com uma lanterna e Nate com uma lata de tinta spray. Provavelmente tiraram do porta-malas. 

— Por que vocês têm isso daí? - Pergunta Maggie, segurando um pano sobre o nariz. 

— Vandalismo. - Responde Nate, sorrindo e parando ao lado dela, perto de uma moldura sem foto. 

Os dois encaram aquilo ali admiradamente por alguns segundos e depois sorriem um para o outro como se fosse algum tipo de piada interna. É bonitinho. 

Com os olhos cobertos de uma penumbra simbólica, dou mais um passo e sinto-me esbarrando no estofado de uma poltrona da qual eu nem me lembrava. Ela é roxa, e é tudo o que eu posso ver sob a luz cadavérica. Tem alguns estilhaços entranhados no tecido, mas o que me chama atenção mesmo não é isso. 

Na verdade, é o porta-retratos de vidro quase translúcido jogado em cima dela. 

Vejo uma foto prefulgir sob a aurora fajuta entre o isqueiro e o lampadário quase quebrado, já que sua luz não adianta muita coisa. 
Vejo rostos fantasmagóricos, e começo a romantizá-los tragicamente. E o pior é que é verdade. 

Dizem que raios não caem duas vezes no mesmo lugar. Pois eu digo que caem mais de três. 

Na foto, uma boa metade antecessora da minha família se espalha por um salão atmosférico. Estão usando roupas de gala, então eu imagino que tenha sido algum evento importante. 

Meus dois falecidos avós com suas respectivas mortes ocasionadas por caminhões, só que em décadas diferentes. Meus dois tios, tia Marly e tio Gus, que foram executados em praça pública pela própria burrice. A diferença é que tia Marly continua viva, só que de um jeito diferente. 
(afastada pela própria prepotência
mas hoje em dia ela não é mais assim).

Minha mãe estava na Disney quando essa foto foi tirada, grávida do meu irmão e fugindo de toda essa coisa macabra estilo a foto do baile em O Iluminado. 

Minha mãe estava longe. E não digo longe porque ela literalmente estava longe em Orlando. Digo longe porque acho que Rosalie era um tipo de Manhattan dos desamparados. Só que aí - como não podia deixar de ser - um dia ela acordou e todos os prédios dentro dela começaram a desabar. E ela fugiu para longe da civilização em pânico. 

É como eu me sinto. O World Trade Center em formato de garota. 
Passo meus dedos nos entalhos que foram feitos na moldura de madeira, mas sem tocá-las necessariamente. A parte da foto em que eu não corro perigo de me encontrar parece derreter em ácido e eu não sinto vontade nenhuma de queimar minhas mãos com um beijo caseiro. 

— Já decidiram o que vão queimar? - Pergunto ao vácuo, olhando por cima dos ombros. 

Nico, que parece ser o único dentro da cabana a me escutar de verdade, levanta uma pintura na mão direita e caminha até mim como se tivesse acabado de encontrar a coisa mais incrível do mundo. É uma bolinha azul turquesa borrocada para fora das bordas, com cabelos ondulados e olhos arregalados amedrontadores. 

A data de 2000 está escrita no canto da folha, sobrepujada por tinta verde provavelmente derramada sem querer. Eu nunca nem vi essa porra na minha vida, então não sei dizer se é meu ou dele. 
Eu sorrio. 

— Isso é bem velho. 

Ele concorda. 

— Achei enfiado nas dobradiças da porta. - Conta, olhando meu rosto de soslaio enquanto revira uma pilha de folhas amareladas em cima de uma mesa. - Eu quis te entregar na época, mas não sabia como. Então deixei por isso mesmo. 

— Por que você queria me entregar um desenho onde você me retrata como um alien redondo com olhos medonhos? - Pergunto, apoiando minhas costas na parede atrás de mim e encarando seu rosto através da meio escuridão de prováveis oito da noite. 

Nico se aproxima de mim e estende o braço, entregando-me a tal folha de papel. 

— Olha a parte traseira. - Instrui ele, colocando as mãos nos bolsos e trocando ansiosamente o peso das pernas. 

Eu semicerro os olhos e desdobro a folha, dando de cara com um emaranhado de rabiscos e setinhas com caneta vermelha indicando uma declaração:

"Sam
eu tô sentindo uma coisa esquisita tipo dor de barriga
a diferença é que essa coisa é no coração e eu não tô soltando nenhum pum 
só lágrimas 
GOSTO MUITO DE VOS" 

Então eu começo a gargalhar instantaneamente. Meus olhos se enchem de lágrimas de verdade, enquanto as bochechas dele coram sem parar, mas ele também ri junto porque acho que percebe que eu estou rindo porque é fofo e não porque ele é otário. 

— Uau! - Exclamo, segurando a carta de amor próxima ao coração. - Desde aquela época você não aprendeu a se expressar que nem gente. Mas pelo menos sua gramática melhorou.

Nico cora disparadamente e ainda mais e eu tenho medo de que ele comece a sangrar todo essa vermelhidão pelos ouvidos. Ele dá um sorriso meio amarelo.

 

— Mas olha pelo lado bom. Essa é uma declaração completamente versátil e atemporal, já que é só eu adaptar um pouco e os sentimentos vão continuar sendo os mesmos. 

Uma coisa sobre Nico, é que ele raramente encontra um jeito de dizer o que está sentindo sem acabar ficando com raiva. Ele não sabe lidar com o seu próprio emocional e as consequências são devastadoras, como eu mesma já percebi. O negócio sobre ele e sobre o temperamento inconstante dele, é que dessa vez ele escolheu dizer o que está sentindo e nas raras vezes em que ele faz isso, eu consigo sentir seus olhos completamente escuros se fundindo em insegurança e intensidade daqui. 

E quando eu digo isso, eu não digo porque seus olhos são bonitos e eu estou tentando soar poética. Eu digo isso porque para ele realmente admitir isso em alto e bom tom de um jeito assustado e incerto, é porque ele deve sentir isso para caralho.

Ele gosta de mim para caralho. Mas eu não gosto dele desse jeito. Pelo menos, não na mesma altura. 
Merda. 

Eu quero revirar os olhos para ativar meu mecanismo de defesa, mas a única coisa que eu faço é sorrir meio constrangida. 

— Eu....

— Encontrei uma coisa! - Diz Leo, na extremidade mais escura e empoeirada da cabana. 

Nós - afastados, retraídos, e encolhidos - seguimos em sua direção, quase esbarrando na mesma poltrona roxa de sempre. 

Leo tem seu rosto cor de oliva iluminado difusamente pelas luzes dos isqueiros atrás da gente. Traz consigo um sorriso assustador e malicioso, enquanto segura o cadeado arrebentado de um baú à meia-lua. 

— O que vocês acham que tem aqui? - Pergunta, forçando a fechadura contra o próprio punho. 

— Um corpo? - Sugere Bianca, sempre a mais mórbida de todos nós. 

— Um milhão de dólares? - Responde Nate. 

— Pornô. - diz Maggie. 

— Todas as temporadas de Friends? - Insinua Charlotte.

A tranca se destrava e o baú cantarola num ruído antigo e rastejado, onde uma nova bruma parecida com a qual a cabana se esconde emerge na atmosféra do lugar. Então nós esperamos que algo angelical e significante apareça de lá, mas só o que conseguimos ver são um bando de playboys antigas sendo arrancadas do fundo. Leo ri e as joga na nossa direção, fazendo um monte de poeira psicodélica voar.

Nós tossimos imediatamente, colocando as mãos sobre os narizes. 

— Cuidado aí, sua topeira. - Alerta Maggie, com a voz abafada. 
Nate espirra escandalosamente e pega três revistas, distribuindo-as entre ele mesmo e Maggie e Charlotte. 

— Vocês queimam essas duas em nome do patriarcado e da indústria pornô abusiva. Eu queimo uma porque sou um babaca com mulheres, caras e qualquer coisa que ande e fale. - Discursa, fazendo uma espiral com uma das revistas e apertando-a no punho fechado, olhando para Leo.

O mesmo apenas dá de ombros de maneira indiferente, fechando o baú e devolvendo-o ao buraco na parede que o abrigava antes. 

— Vocês já encontraram o que querem queimar? 

Eu tenho uma foto, Nico tem um desenho. Leo tem um cadeado, Nate trocou suas revistas por um espelho de maquiagem, Maggie achou um cachecol parecido com o de sua mãe e Charlotte foi a única que ficou com as revistas pornô. Bianca tem um guarda-chuva roxo. 

E eles assentem. Então, depois disso, rola uma cena que romantiza completamente nossa adolescência mas, tipo, não deixa de ser verdadeira. 
A fogueira começa a queimar realmente depois da gente notar que as luzes da cidade estão acesas de verdade. Debaixo de toda aquela fumaça tóxica e senil, dá para ver um ponto espalhafatoso incendiando todos os lugares abaixo do letreiro do fast food que brilha em cores primárias, da bruma, das copas de árvores e dos vagalumes. 

Meus pulmões amolecem. O tamanho da nuvem mal cheirosa poderia cobrir todo o Oceano Pacífico e se fosse trocada pelo equivalente em combustível, eu poderia fugir daqui para Mumbai de carro. Isso é provavelmente a quantidade de cigarros que eu tenho fumado há uns bons meses. 

O cadeado que Leo pegou, logo nós descobrimos que era de plástico. Ele só não parecia, era bastante artesanal e tal. 

— Eu estou queimando essa porra porque eu me sinto vivendo numa jaula há mil anos. - Anuncia, jogando-o nas labaredas. 

O objeto se desfaz em questão de segundos e o fedor de antes começa a se agravar. O ouro velho falsificado gruda na lenha até se tornar mais uma chama em seguida. 

Então é a vez de Maggie, que pegou um cachecol amarelo que ela disse ser parecido com o de sua mãe um pouco depois de devolver as revistas pornôs para Charlotte. Ela sorri um sorriso meio psicopata e balança a peça como uma tocha olímpica antes de jogá-la na fogueira. 

— Pela pessoa que podia muito bem ter posto meu nome de Julia mas escolheu Magnólia no lugar. 

Com sua postura prepotente e embasada no próprio reflexo diante dos estilhaços, Nate escolhe jogar um espelho. Ele não se demora muito, e simplesmente o faz. 

— Vocês sabem. Sol em leão e tal.

Depois disso, Charlotte. Ela joga todas as revistas pornôs no fogo e as observa queimando bem lentamente, como um torturador que aprecia a dor em seu estado mais prematuro. 

— Por todas as mulheres que foram expostas na indústria. - E sorri tristemente, como se aquilo lhe soasse familiar. 

Nico se aproxima das labaredas, e seu rosto me parece ainda mais fantasmagórico e macabro quando as chamas começam a urdir um tipo de lampejo azulado em cima dele e de seu desenho. 

— Não interessa para vocês. - Diz simplesmente, se afastando ao jogar a folha e me fazendo sorrir amarelo. 

Bianca, com seu guarda-chuva roxo e aparentemente sem significado.

— Eu só não tinha visto nada mais bonitinho para queimar. 

E por último, eu. 

Coloco meu quadro familiar sobre as chamas como se eu nem ao menos quisesse que ele queimasse. Ele se desfaz como uma ampulheta e se locomove a medida em que se torna líquido. Sabe, eu poderia pular nessa fogueira com ele. 

— O que a gente faz agora? - Pergunto, e percebo quão ambígua essa fala soa. 

— Não faço ideia. - Bianca diz. 

E soa tão cheia de facetas quanto a minha sentença. 

— Uau. - Respondo.

Tudo começa com uma viagem muito longa entre uma cidade fantasma e o vão debaixo de uma ponte perto do Oceano Pacífico. 
Se por um acaso você estiver planejando pegar um trem com as pessoas mais seguras do pais - que usam gravatas, sapatos engraxados e tudo - é melhor dar meia volta e seguir a primeira revoada de corvos, e voltar para Atlanta. 
Revoadas são legais e descoladas. Você só precisa ter o talento para não se perder delas. 

Ah, e é importante saber que viagens ordinárias podem se tornar viagens extraordinárias, mas você meio que não pode ficar esperando por elas. Quando elas param de acontecer, você simplesmente cai em queda livre. E isso é meu meio termo terrestre. 

Vazio, entorpecente e acolhedor. 

Isso não significa necessariamente que nenhum pássaro queira voar com você. Só significa que eles foram atingidos pelo menos tiro de espingarda do mesmo fazendeiro filha da puta de vinte e dois anos e oitenta e três quilos. 

E é por isso que, mesmo que você esteja no meio das pessoas que você mais ama no mundo, e mesmo que você consiga ver as luzes da cidade e a fumaça queimando os pulmões, você pode conseguir não sentir nada. 
E para falar a verdade, muita gente não sente nada em momentos em que elas supostamente deveriam sentir alguma coisa. 

Porque nada é onde a maioria de nós está caindo. 

Eu olho para Bianca e vejo seu rosto brilhar num espectro arroxeado e sombrio. Seus olhos são grandes e caricatos, então sempre que alguma coisa ruim sobre eles aflora, é difícil levá-la em consideração por muito tempo. 
Eu quero descobrir o que ela está pensando boa parte do tempo, mas eu sei que ela não vai deixar. Então ela some nas folhas farfalhando na porta de entrada durante um tempo e depois ela aparece, com as mãos sujas de tinta. 

Todos nós nos aproximamos, entrando na cabana novamente, e Nico coloca uma lanterna sobre a parede cavernosa do lugar. 

"Foda-se a tragédia
com amor, Bianca"

— Lembram da viagem que eu fiz para Londres há uns quatro anos? - Pergunta, sorrindo com as mãos sobre o vermelho sanguinolento com o qual ela segura a tinta. 
Sei que daqui a pouco, aquilo dali vai se misturar com o sangue vivo que eu vi em suas mãos há algumas horas. 

— Aham. - Dizemos. 

— Então. Eu vi isso em um dos banheiros. Achei cativante. - Ela nos olha. - Vocês não acham?

Nós concordamos, mesmo que eu saiba que boa parte de nós não sabe o que aquilo significa. 

Então eu olho para o seu rosto e me pergunto silenciosamente se algum dia ela vai me contar o que está acontecendo, e se alguma dia aquilo tudo vai ficar bem de novo. Nós não sabemos quem causou isso. 

Ela não responde, porque não ouve e porque provavelmente não sabe também. 

Bianca sorri, então o espectro roxo volta a brilhar sobre o seu rosto novamente, mesmo que ele não esteja mais lá.

 

"And if you're still bleeding, you're the lucky ones
'Cause most of our feelings, they are dead and they are gone
We're setting fire to our insides for fun
Collecting pictures from the flood that wrecked our home
It was a flood that wrecked this"


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Notas finais do capítulo

tá tristew pois é
só piora
KSAJDKSAJKLDJASKLDSAKLJDKLSAJDKASJDKASJLKDJSAK amo vcs
gente, deixa eu falar
vou revisar os capítulos anteriores e fazer umas ediçlões, mas nada mto escandaloso, só uns detalhs que tão me incomodando
não sei digitar nesse computador
E ESCUTEM ESSA MÚSICA
ELA É A MINHA VIDA ?WWW????????
pq eu pareço sempre drogad anas notas?

tchau
amo vs
e leiam For Laurel. Forever Ago



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