Anjo da Água escrita por Chris Lima


Capítulo 4
Capítulo 3


Notas iniciais do capítulo

Esse capítulo foi um dos mais emocionantes para mim, sério. A cada palavra escrita meu coração disparava (risos). Espero que gostem, pois eu quase tive um infarto.



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Era o aniversário de Sachiel, ela completaria oito anos naquele dia. Nos últimos meses, seu pai repetia frequentemente para todos na casa que os damasos finalmente tinham enlouquecido de vez. Todos os meninos seriam levados de suas famílias, ele temia por seu filho querido. Joseph tinha completado cinco anos no mês passado e se tudo continuasse daquela forma, ele não completaria seis anos ao lado de sua família.

— Eu odeio esses damasos, mamãe. – Sachiel falava isso na mesma frequência que seu pai repetia que eles eram loucos.

— Querida, eu sei. Eu também odeio, mas procure esquecer esses homens, pois hoje é um dia especial. – Sua mãe falou a pondo do colo e a beijando em sua face.

— Posso pedir uma coisa para você? De presente de aniversário?

— Sim, meu amor. Qualquer coisa.

— Me promete que a senhora não vai deixar que os homens maus levem o Joshep?

— Tudo bem querida – ela abraçou a filha e uma gotícula de lágrima desceu de seu rosto abatido pelo sofrimento.

As duas estavam sentadas na sala de estar da casa de aspecto abandonado. Durante muitos anos aquela casa foi o refúgio daquela família que tentava reconstruir diariamente o que tinham perdido quando moravam na capital.

O medo sempre esteve presente, mas ele estava extremamente desproporcional a qualquer pecado ou erro que eles teriam cometido. Talvez fosse castigo dos deuses, mas o único delito que cometeram foi um furto famélico e isso ocorreu há muitos anos.

Nada justificava aquilo. A dor era grossa e penetrava o coração dos adultos daquela família. Para as crianças, o desespero e a angústia eram os seus brinquedos. Nada se podia fazer para evitar a visita indesejada dos guerreiros. Eles estavam vasculhando cada centímetro do império. A busca se iniciou e prosseguiu em um formato de círculo para encurralar todas as famílias que ainda não tinham sido visitadas.

Os números dos soldados em batalha foram reduzidos, a maioria foi transferida para dentro do império a fim de auxiliar na busca. Todos estavam mais desprotegidos e o perigo maior estava dentro das muralhas.

Corria notícia de famílias que tentavam fugir, mas logo eram apanhadas pelos soldados e torturadas. As crianças eram levadas da mesma forma e a única coisa que restava era a indignação. Pelas ruas das cidades e vilas o que se via era mulheres gritando nas calçadas. Mães agonizando por causa do rapto de seus filhos.

O império gritava com uma única voz, ela era feminina, era de milhares de mães inconsoladas, desesperadas e tratadas como bicho. Diante desse senário, inúmeros heróis tentaram surgir. Pais e filhos adolescentes tentavam se rebelar, protestar contra tais atitudes, mas todas as tentativas foram massacradas e mais mortes eram causadas.

Não circulava mais jornais, a única forma de saber o que estava acontecendo era pela via oral, passada de boca em boca, forma que era repleta de erros e fantasias. Mas, se não fossem os comentários da população, seria impossível saber o que os guerreiros estavam fazendo. Talvez essas notícias possuíssem exagero, mas sempre existia um resquício de verdade.

Os colegas de trabalho mais próximos do pai de Sachiel concordavam plenamente com aquela atitude dos damasos. Para eles, devem ser tomadas medidas extremas em situações extremas. “Os nossos defensores nunca encontrarão o prodígio perdido se continuarem com tamanha benevolência. Se for para escolherem entre ser amado ou temido, é preferível ser temido, pois quem ama trai”, diziam eles.

Sempre que o pai da garota pensava nesses comentários acerca das atitudes de damaso ficava alterado. Incontrolavelmente, ele precisava se mexer, talvez aquilo fosse crise de ansiedade. Não havia nenhum relato de qualquer distúrbio emocional nos ascendentes de Sachiel, mas só a ideia de ver seu filho arrastado porta afora de sua casa o abalava completamente.

— O que foi, papai? – até mesmo aquela menina de oito anos percebeu que seu pai não estava bem.

— Nada querida, só estou assim porque não posso fazer uma festa de aniversário. Não temos dinheiro para isso. Talvez próximo ano nós possamos fazer – a voz do pai da garota tinha um tom de pesar, ele havia dito a mesma coisa para a garota no ano passado e, se as coisas continuassem daquela forma, falaria a mesma coisa no próximo ano também.

A menina arqueou a sobrancelha e fez uma pequena careta de repreensão. Apesar da pouca idade, a garota entendia a situação da família. Para ela, restava apenas brincar e ter a maior festa em sua imaginação.

Seu pai a acompanhou para a cozinha e os quatro almoçaram o que restou da janta anterior. Passaram um bom tempo conversando sobre o dia e contando piadas para alegrar um pouco aquelas almas aflitas. Após isso, fizeram suas orações de agradecimento aos deuses pelo alimento obtido e Joseph mostrou para os pais a sua nova habilidade.

— Que os deuses nos protejam, menino! – Falou a mãe assombrada pelo que via.

— Me ensina isso também, Joseph? – A pequena menina ruiva sentou-se no chão e chamava seu irmão para ficar ao seu lado.

— Eu não, só eu que sei fazer isso. Você já sabe fazer tantas coisas, Sachiel!

Todos começaram a sorrir e por alguns instantes eles finalmente se esqueceram da realidade. Aquele momento foi o mais sublime em anos. Suas cabeças estavam mais leves, os segundos pareciam passar mais devagar e o dia se tornou mais claro. Eles passaram a sentir o mesmo aroma, que estava sendo exalado por Sachiel, assim que ela começou a correr atrás do irmãozinho.

Quando finalmente cansaram de correrem pelos cômodos da casa, foram para a rua deserta de sua casa e se sentaram na neve que estava acumulada no chão.  Nos primeiros momentos, tudo que Joseph fazia era aquele mesmo movimento com os dedos. Ele conseguia mover a primeira articulação do seu dedo indicador e isso fascinava a menina.

 – Já sei o que vamos fazer agora, Joseph – o tom da voz da menina era bastante entusiasmado, parecia até que ela acabara de descobrir algo nunca visto antes – vamos construir bolos de neve e cantar parabéns para mim!

— Eu não quero, você não fez isso comigo no meu aniversário.

— Você não teve a ideia, menino chato!

— Tá bom, vamos fazer isso. Mas no meu próximo aniversário você vai fazer um pra mim do tamanho da nossa casa!

Então os dois começaram a juntar neve e colocá-la em formato circulo.  Eles sorriam enquanto montavam o bolo, às vezes empurravam a neve para se acumular mais facilmente no local do banquete imaginário. Várias voltas eram dadas à procura de neve, mais gargalhadas.

Quando caiam em decúbito ventral a festa era maior ainda. “Você comeu neve de verdade” e as gargalhadas podiam ser escutadas de longe. Um procurava derrubar o outro sobre a pilha de neve feita pelos dois. Mais sorrisos.

Joseph tentava pular em cima da irmã e ela se curvava para frente de tanto sorrir. As mãos dos dois já estavam dormentes, mesmo com as luvas. O rosto de Sachiel estava corado, às vezes ela respirava fundo para aguentar mais uma dose de sorrisos.

Eles desfrutavam daquele momento com muita satisfação. Joseph agarrava as pernas da menina para que ela tropeçasse novamente, Sachiel  também agarrava o garoto e os dois caiam juntos. Lágrimas de alegria saiam dos olhos dos dois, que logo se congelavam.

— Agora você tem uma verruga de gelo – riam mais ainda.

Aquele momento parecia eternizar-se na simplicidade em que ocorria. A pureza que existia parecia uma medida que poderia ponderar toda a sociedade. A infância daquelas crianças, apesar de todas as dificuldades deveriam ser lembradas, mas não com aflição, com orgulho.

Orgulho de serem capazes de retirar nos maiores destroços, pequenas flores. E estas conseguiriam, enfim, abater todos os vícios humanos. Podendo, então, levar em segurança o futuro e a beleza perdida daquela realidade.

— Peguem o garoto! – Gritou um desconhecido há uns metros das duas crianças.

Quando as duas crianças olharam para trás, viram dois guerreiros andando em direção aos dois. O coração de Sachiel passou a pulsar acelerado, suas mãos estavam frias e úmidas, ela sentiu uma leve tontura e viu apenas seu irmão correr para dentro da casa. Mas ela não fez o mesmo, a garota estava completamente estagnada, não conseguia pensar direito ou mover qualquer músculo de seu corpo.

— Sachiel, entre na casa! – gritou a mãe da garota.

A menina sequer ouviu o apelo de sua mãe. Os guerreiros agora estavam perto demais para ela tomar qualquer atitude, mas eles a ignoraram e se dirigiram aos pais da garota que saíram da casa por causa da menina.

— Por acaso nossa presença incomoda os senhores? – Perguntou um dos guerreiros.

Aquele homem possuía o cabelo negro como a noite, seus olhos pareciam laminas ao fitarem o pai da garota. Com certeza aquilo não era um presságio bom, eles vieram levar seu pequeno irmão. Pensou a garota. Grande presente de aniversário que iria receber. Seus olhos lacrimejaram novamente, mas dessa vez era tristeza. Uma espada havia transpassado seu peito, seu estômago embrulhava e sua garganta fazia mil voltas formando um labirinto infinito.

— Não permitirei que vocês levem meu filho – falou o pai da garota empurrando levemente o guarda que estava em frente a sua porta – vocês não são bem-vindos aqui. Dê meia volta e saia da minha vista.

Joseph estava por trás de sua mãe, mostrava apenas os olhos curiosos que vidravam a discussão de seu pai com aquele homem. A expressão facial de um dos guerreiros apavorou o menino, mas seu coração disparou incrivelmente quando ele viu o outro guerreiro segurando o cabelo de sua irmã e prestes a decapitá-la.

Aqueles minutos foram os maiores da vida daquele menino. Era possível ver um pequeno rastro de sangue escorrendo pelo pescoço da garota. O sangue surgiu levemente devido à pressão feita pela espada afiada que era forte o suficiente para feri-la, mas fraca o suficiente para matá-la.

 Depois de alguns segundos de silêncio, a menina começou a espernear e arranhar os braços do guerreiro, na tentativa de retirar a mão do guerreiro de seus cabelos. À medida que isso ocorria ele puxava com mais força seu cabelo e pressionava um pouco mais aquela espada contra seu pescoço.

— Não me obrigue a mover minha mão – falou o guerreiro à Sachiel e ao seu pai.

O pai da garota, em uma atitude impensada, retirou uma adaga de seu bolso. Com o intuito de defender sua filha, correu de encontro ao outro guerreiro, com todas as forças que tinha feriu o antebraço daquele homem. Atitude infeliz.

Começou como uma pequena pontada, tornou-se, então, uma mistura de ardência e latejo. Seu tronco pulsava, a dor aumentava drasticamente, sentia-se violentado e invadido. Aquele mal irradiava para o resto de seu corpo até não sentir mais o chão em seus pés. Olhou para baixo e viu uma lança surgir de seu abdômen. Foi aí que se deu conta do que havia ocorrido. 

 Seu corpo inteiro já estava agonizando. Outra dor traspassou seu corpo quando o guerreiro puxou a lança e o pai da menina caiu no chão. Ele tentava se concentrar na voz da garota lhe chamando entre soluços, tentou falar algo, mas a única coisa que saiu foram apenas alguns murmúrios de dor.

Seu sangue pintava aquela neve branca formando um enorme borrão vermelho. Seus lábios estavam ressecados e descorados, como se pedissem desesperadamente arrego e piedade. Sua respiração estava curta, rápida e irregular, mas aos poucos foi diminuindo a frequência, para poupar tanto esforço no tórax perfurado.

Sua pele confundia-se com a neve que ainda estava limpa, sua palidez queria igualar-se ao branco da pureza, queria esconder sua vergonha e impotência. Seus últimos pensamentos foram de seus filhos, que agora estariam órfãos de pai, que agora teriam mais um motivo de sofrimento. Finalmente sua alma se despediu de seu corpo e se tornou tão leve que pôde partir em paz.

A mãe da garota correu em direção ao corpo de seu marido e lá chorou. Ela amaldiçoou aqueles dois homens sem coração. Chorava desesperadamente, sentia-se fraca abandonada e desnorteada. Seu coração clamava por justiça e sua mente pensava apenas em vingança.

Com o ódio dominando sua mente, ela olhou uma última vez para o corpo sucumbido de seu marido, segurou a mesma adaga que antes seu marido a empunhava e então atingiu a artéria carótida de um dos guerreiros com uma perfuração em seu pescoço.

Um sangue vermelho-vivo saia em jatos do furo que a adaga fez, o olhar de desespero daquele homem era notório. Ele pôs a mão sobre o ferimento e sentia que aquele era o seu fim. Morto por um civil era pior que ser morto por uma abominação. Talvez aquilo encerraria de vez seu sofrimento. A morte poderia ser uma boa amiga.

É verdade, todos daquele império possuíam suas pedras no caminho, possuíam seus monstros. Ele, naquele momento, era o monstro que aquela família conseguiu superar duramente. Eles foram mais fortes do que ele em toda sua vida.

— Como ousas? – Gritou o outro guerreiro. – Pagarás severamente com o que fez e não será sua vida que irei tirar.

— Crianças, corram! – Gritou a mulher desesperada ao imaginar o que aquele homem iria fazer com os três.

Em seguida, o homem socou o rosto aflito daquela mulher com força suficiente para derrubá-la. Ela tentou se rastejar pela neve, mas fora em vão. Com uma única puxada, arrancou o vestido da mãe de Sachiel e arranhou seu corpo com a adaga, a fim de utilizar o corte para escrever a inicial do seu nome na pele branca daquela mulher. Depois disso, ele a possuiu e a mulher gritava a cada toque, a cada movimento, a cada enroscamento de pernas, mãos, alma.

Dizem que quando há uma conjunção carnal as almas se unem, mas aquilo não parecia unir a alma dos dois. Talvez aquilo condenasse a alma daquele rapaz se houver justiça pós-morte. Mas ela não pensava nisso naquele momento, ela queria fugir, queria matá-lo, queria ver seus filhos.

Não conseguiu fazer nenhuma das três coisas.

☾☾☾

Sachiel puxava seu irmão e corria para longe de sua casa. Era difícil correr na neve, seus pés afundavam quando pisava e, à medida que os passos eram dados, ela também se acumulava em seu calçado. Seu irmão perguntava toda hora por sua mãe, chorava inconsolado, mas ela nada podia fazer. Apenas correr.

Os pés da menina estavam dormentes, suas mãos estavam geladas. Para qualquer lugar que eles olhavam, havia apenas pinheiros. Era possível escutar alguns uivos. A sorte daquelas duas crianças seria apenas a falta de uma tempestade de neve que poderia ceifar imediatamente as suas desventuradas vidas.

O crepúsculo daquele dia representava a vida daquela garota. Em tão pouco tempo sua vida declinou e nem a esperança a acompanhava mais. Ela ficaria sozinha, caso o guerreiro encontrasse os dois. O que seria deles? Ela só conseguia pensar em sua mãe. Talvez ela ainda estivesse viva e talvez conseguisse encontrá-los. Mas ela era tão adoentada... Não conseguiria caminhar por tanto tempo.

Os pequenos passos das duas crianças não conseguiriam livrá-los do futuro inevitável. A única pergunta a ser feita é: quando?

Quando os encontrariam? Quando o guerreiro libertaria sua mãe? Quando iria ver novamente sua família junta? Quando ela realmente seria feliz? Respostas duras e cruéis provavelmente viriam após isso.

Depois de um tempo andando os dois choravam. O desespero no olhar daquelas crianças era extremamente nítido, a falta dos pais foi sentida de uma forma terrível. O pior de tudo é o fato de que os dois não teriam andando o suficiente para despistar uma pessoa, elas são crianças, não devem ser culpadas pela falta de inexperiência.

Era possível ver o rastro dos passos das duas crianças na neve. Por isso, eles não paravam, continuavam andando. Cada passo os separava mais do guerreiro. Cada passo os mantinha juntos por mais algumas horas.

O pequeno Joseph, enquanto andava, pouco falava. Talvez ele temesse que sua voz pudesse ser escutada pelo homem que a pouco destruiu sua família em frente aos seus olhos. Talvez ele se concentrasse em se equilibrar na neve para facilitar o seu deslocamento. Talvez... Existem muitas alternativas que podem explicar isso.

Mas uma coisa é certa: ele nunca esquecer iria o semblante daquele homem. Sua mente fez questão de gravar cada segundo daquele show de horrores. Naquele momento, uma semente de ódio se instalou no seu coração e só precisava de tempo para florescer e crescer livremente.

Sachiel também não ficava atrás, a garota chorava por dentro e congelava por fora. Ela agora era responsável por seu irmão mais novo. Às vezes ela olhava de soslaio para o menino, tentando verificar se tudo estava bem. Sempre que fazia isso, a vontade de chorar a dominava.

Entretanto, ela não chorou. Prometeu para si mesma que ela seria forte, igual a seus pais. Prometeu para si mesma que iria proteger seu irmão, que agora era sua única família, sua única companhia.

Mas ela sabia muito bem que tinha uma probabilidade muito grande de falhar, afinal, para onde ela iria? Não conhecia nenhum parente, não sabia onde estava e não possuía vizinhos benevolentes e caridosos.

O plano era andar sem destino, encontrar comida pelo caminho e esperar sua mãe vir lhe buscar. Em sua mente, ela não seria morta, pois escutou o guerreiro falando que sua mãe não pagaria com sua vida. Mas com o que ela pagaria? Com o rapto de Joseph? Mas por que ele não veio atrás logo?

— Vocês dois, parem! – Uma voz soou atrás das duas crianças.


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