Anjo da Água escrita por Chris Lima


Capítulo 3
Capítulo 2




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—Sem dúvida nós somos os piores aristocratas que pisaram a face dessa terra. Somos extremamente incompetentes. Esses três meses de lua cheia em nada nos favorecerão na guerra. Precisamos afastar mais esses vampiros das muralhas do império. – Mosheh estava bravo, o número de guerreiros estava diminuindo significativamente. Eles estavam sendo derrotados até mesmo com as bestas.

— Ainda estamos no primeiro mês de lua cheia, temos mais três meses para reverter essa situação. – Eurípedes tentou acalmar seu amigo.

— Vocês estão muito tensos, irmãos. Sabe o de que precisam? Mulheres. Podem ir aos prostíbulos. Se qualquer coisa der errado, avisem-me, ficarei esperando vocês aqui com uma torta de maça quente. – Brincou Melchior, com uma torta na mão.

Melchior tentava ser o damaso mais divertido dos quatro que sobreviveram. Entretanto, sua vida nunca lhe proporcionou muita matéria prima para formular boas piadas. Tudo o que via se resumia a sangue e cabeças decepadas.

Alguém bateu na porta.

— Tem gente – Respondeu Melchior, na tentativa de ser engraçado novamente.

Os outros o olharam com uma expressão de repreensão.

— Entre – falou Mosheh.

Era o general Achilles, o mais sensato dos comandantes da guerra. Ele possuía uma visão bastante estrategista e lutava como se isso fosse uma ambrósia, mas já estava bastante velho para continuar guerreando. Iria completar sessenta e cinco anos, suas articulações já estavam desgastadas, sua postura, embora continuasse ereta, o cansava rapidamente.

Não era o mesmo guerreiro de antes.

— Pretendo ter uma boa morte, meus senhores. Peço permissão para isso. – Achilles estava de joelhos, olhando para o chão.

— Você nos abandonará no momento mais necessitado? – Retrucou Eurípedes.

— Pode ir, não implorarei. Se tu pretendes se suicidar, tem minha permissão. – Completou Mosheh.

Essas práticas são comuns em Dilecto. Quando o guerreiro é inútil para a sociedade, ele suicida-se, pois a besta precisa ser alimentada por batalhas e o corpo humano já não suporta tanta pressão. Sem dúvida, muitos dos que chegam ao fim dessa forma, fazem falta para o exército, pois somente os melhores guerreiros sobrevivem a uma vida guerreando incessantemente.

Para a família de Saciel, aquela sociedade era banhada por sangue. A morte amparava aquelas pessoas, elas precisavam disso para se sentir vivos. Uma forma bastante errônea de viver.

Mosheh não aceitava essa tradição, queria que todos os guerreiros pudessem continuar guerreando até morrerem em uma luta ou de causas naturais, pois, para ele, o suicídio era uma injustiça que atingia toda sociedade. Essa opinião também se apresentava mais forte por causa do desfalque do exército.

O homem se retirou e foi iniciar os procedimentos para aquele ritual de finalização.

— Perdemos mais um – Falou Jordi.

— Ele era um bom soldado – lamentou Melchior.

— Devemos ajudá-lo com os preparativos do ritual? – Eurípedes indagou aos seus companheiros

— Não! – Reprimiu Mosheh  – se ele vai cometer um erro, que o faça sozinho.

Jordi estava em campo de batalha liderando os guerreiros, essa noite seria a última de sua campanha, no dia seguinte estaria no forte novamente. Os damasos dividiam-se em meses para controlarem o tempo que cada um deles passa guerreando. Eles se baseavam pelos meses. A fase da lua, naquele local, durava em média quatro meses, cada mês era de responsabilidade de um dos damaso.

Antigamente, quando todos eles estavam vivos, o rodizio era feito de dois em dois, para que nenhum deles permanecesse sem auxilio de outro membro da aristocracia. Mas os tempos são outros, estão mais complicados.

Nesse rodizio todos ansiavam por sua vez, mas temiam morrer em campo, pois se isso ocorresse, os prodígios ficariam sem tutores e mais uma catástrofe aconteceria para aquela civilização. Por isso, eles sempre iam com a ideia de perfeição em mente.

Eles precisavam ser perfeitos.

Nos mínimos detalhes.

Durante o dia existia paz em todo o continente, pois os vampiros não saiam por causa do sol. Escondiam-se em tocas, cavernas ou qualquer local protegido pela escuridão, pois, apesar de não os matar, o brilho dessa enorme estrela os cegava e os deixavam seriamente feridos.

Para eliminar um vampiro era necessária muita cautela. Degolava-se a cabeça dessa abominação durante a guerra e em seguida, quando a calmaria chegasse, enterrava-se a cabeça em local diferente do corpo. Era de extrema importância a sua separação, pois se as partes fossem aproximadas novamente, o vampiro acordaria, como se estivesse apenas em um sono profundo, e todo o esforço da noite anterior seria perdido.

Muitas vezes os guerreiros recebiam a ajuda do sol, pois nem sempre as abominações conseguiam fugir na alvorada. Porém, isso era vantagem para os guerreiros apenas em parte, devido à transformação da besta para o homem-lobo, na qual esta é o nome dado à forma humana do guerreiro.

Tudo isso era um procedimento exaustivo, perigoso e extremamente desonroso, pois aqueles seres, embora sejam abominações, um dia foram pessoas. Existiam boatos de que alguns guerreiros tiveram o asar de encontrar amigos ou parentes transformados. E isso, para os mais fortes, os levou a desabarem em lágrimas e aos mais fracos, a loucura!

Os damasos eram imunes ao encontro inesperado de parentes, pois nunca tiveram uma família de verdade e as pessoas que mais se relacionam são os guerreiros. Dificilmente um civil teria contato tão duradouro e tão profundo a ponto de se iniciar uma amizade.

Para ser mais exato, em geral, os damasos eram amados e temidos pelas pessoas. Como uma relação de amor e ódio ou um mal necessário. Mas eles também possuíam seu carisma e as mocinhas das cidades adoravam prestar serviços de caridade a eles. Os pais, como sempre, perdiam o juízo tentando mantê-las longe de conquistadores baratos, mas sempre que algo é proibido se torna mais apetitoso.

“Deixe-me olhar esses ferimentos em sua barriga” dizia uma, “preciso que retire suas mantas para eu poder passar esse elixir em você” dizia outra. Eles adoravam, mas também eram bastante seletivos com as mulheres que entravam no forte. Apenas as mais belas e mais discretas poderiam ter esse privilégio.

Como escolhiam? Analisando todas. Verificavam as moças que iam ao forte e escolhiam as que aparentavam se adequar mais às suas exigências. Tudo isso era feito com muita cautela e sigilo.

Esse era mais um segredo e eles adoravam tê-lo.

Entretanto, as visitas ultimamente teriam diminuído, pois, depois dos três anos de inverno, muitas passaram a enojá-lo. Isso acabou os obrigando a frequentarem bordéis e as cortesãs desses locais não eram como as moças que procuravam o forte.

Muitas dessas mulheres da vida possuíam doenças venéreas ou não apresentavam uma boa aparência. Assim como os damasos, elas também eram amigas do sofrimento, pois os homens não costumam ser gentis quando estão naquele local. Assemelham-se a animais famintos, loucos para devorar carnes suculentas.

 A cortesã mais conhecida era Laylla, cujo significado de seu nome refletia seu estilo de vida. “Linda como a noite”. Ela prometia aos seus amores a felicidade enquanto juntos e sempre cumpria suas promessas. Por isso, sua fama era tão ampla. Muitos falavam que ela possuía mais bens que muitos operários daquele império.

Outra característica marcante era sua beleza, essa mulher possuía cabelos negros e olhos felinos. Sua pele branca era comparável à pele de um cordeiro, cujo sentido era esconder o coração feroz como um lobo. Possuía várias faces, cada uma personalizada para cada cliente. Seu perfume exalava o desejo e seu corpo teria sido feito para o pecado. Sempre andava com os pés no chão e suas vestes remetiam a uma pureza tentadora.

Quando indagada, ela respondia sempre a mesma frase: ”a liberdade é a maior expressão da pureza”. Entretanto, apesar de valorizar tanto a liberdade, o coração de Laylla era prisioneiro e aprisionava outro. Ela era dona do coração de um dos damasos.

Melchior e Laylla se conheceram ainda adolescentes, nesse tempo a garota ainda não era cortesã.  Também andava de pés descalços, mas, nessa época, o motivo era a miséria. Como Melchior sempre possuiu um grande coração, ele fugia durante a noite para levar mantimentos para a família da garota e aproveitava para ver sua musa. Ela o apelidou carinhosamente de uvas negras, por causa de seu cabelo encaracolado e negros. Seus olhos, também negros, sempre ficavam vidrados no rosto de Laylla quando estavam juntos, e sua pele branca se arrepiava a cada toque da garota. Foi uma época bastante afortunada espiritualmente e fisicamente para aquele homem.

Nesse tempo, ele acreditava que a esperança ainda existia. Para ele, era possível uma pessoa encontrar a felicidade, mesmo com tanta desgraça e sofrimento. Contudo, sua alegria acabou quando Mosheh descobriu os encontros noturnos de Melchior.

Assim que soube, o damaso da água logo o delatou para o seu antigo tutor. Mosheh fez isso, pois sempre foi muito obediente e centrado em sua função. Na sua percepção, o que seu amigo teria feito era simplesmente um ato insano, ou pura fraqueza. “Damasos não podem possuir sentimento, muito menos por uma mulher.” Ele sempre repetia isso para Melchior.

Mosheh também foi o mais dedicado e, por isso, tornou-se o mais habilidoso. Sempre espionava seus amigos para verem se estavam desobedecendo alguma ordem. “Eu estou fazendo o melhor para ele”, sua mente se justificava assim.  Ele, diferentemente de Melchior, nunca possuiu uma boa aparência. O que tinha de excesso em sua dedicação, faltava-lhe na beleza.

Talvez isso colaborou para que ele fosse tão dedicado a domar a água, que era a sua única companheira e amante. Quando ele se tornou adulto, nada mudou, pois as mulheres que iam até o forte procuravam apenas os outros damasos. Sempre o dispensaram.

O dia mais humilhante, em sua opinião, foi quando os outros damasos o convenceram a descer até à sala que as garotas estavam para cortejá-las. Entretanto, no momento em que Melchior falou a elas que o seu companheiro seria Mosheh, as mulheres se levantaram e a mais desinibida falou: “Ninguém quer ficar perto de você! Observe-se! Você é um narigudo de olhos caídos e cabelo da cor de estrume. Acha mesmo que você vai alisar minha pele? Quando vim para cá, eu pensava que iria ficar com algum dos outros. Mosheh, você não me merece”, e foram embora resmungando.

Jordi, nesse dia, sentiu-se péssimo por Mosheh. Ele apreciava aquele homem e, assim como os outros, o considerava como irmão. Entretanto, sem dúvida nenhuma, possuía uma afeição maior por ele.

Esse damaso da terra possuía a pele negra e cabelo crespo. Isso lhe dava o aspecto de maturidade. Traços justos e expressão serena sempre o acompanhavam, pois além de maduro, sempre soube se portar nas diferentes situações.  Fato que o auxiliou e o permitiu ser o mais sensato dos quatro.

Uma curiosidade sobre esse damaso é a falta de quatro dedos da sua mão esquerda. Ele os perdeu por causa de um vampiro que usava uma espada, mas não sabia manuseá-la. A intenção da abominação era de atingir o coração, mas conseguiu apenas arrancar seus quatro dedos.

No início, isso dificultou muito a domação da terra, mas então passou a utilizar mais os pés para, enfim, realizar plenamente a arte de domar. Quem o auxiliou nisso foi Eurípedes, pois ele sempre gostou de mover mais os pés.

Apesar desses ensinamentos, Eurípedes nunca se aproximou muito de Jordi, pois sua afinidade maior era com os outros quatro damasos que morreram na queda do imperador. No dia da morte de seus amigos, sua alma foi retirada e ele se tornou apenas um assassino de vampiros. Melchior até tentou conversar com Eurípedes para consolá-lo, mas foi em vão. Pois ele centrava-se apenas em dobrar o ar. E cada vitória que ele conseguia em batalha o alimentava mais e sua sede de vingança apenas aumentava.

Quando guerreava, ele não enterrava as cabeças dos vampiros que matava. O destino dos crânios, para ele, era enfeitar a muralha periférica do império. O gozo que esse damaso possuía quando via aqueles crânios decepados rodeando a muralha era inimaginável para qualquer pessoa comum.

Isso também foi feito no dia seguinte ao pedido de suicídio de Achille. Após isso, às oito horas da manhã, Eurípedes chegou de sua última batalha do mês. Ele soube do paradeiro do general e o visitou. Ofereceu seus pêsames e o auxiliou em alguns procedimentos do ritual, como invocar os deuses na cerimônia de partida. Apesar da ajuda, ele não ficou até o final, pois não aguentaria ver mais um de seus amigos morrendo.

Eurípedes então se dirigiu ao seu quarto e foi interceptado por alguns guerreiros.

— Senhor, fomos até a casa do professor – falou um dos guerreiros que estava voltando da casa de Sachiel.

— E então? – Respondeu Eurípedes – O que conseguiram?

— Absolutamente nada, meu senhor.

— Como? Nada? Não é possível, aquele homem passou mais de cinco anos de sua vida estudando os deuses e nada sabe?

— Assim ele falou – Respondeu o guerreiro.

— Acredito que ele está falando a verdade – falou Melchior – eu passei uma boa parte da minha vida pesquisando sobre isso, pois eu queria fugir daqui. Nada encontrei.

— E por que fez isso? – Eurípedes parecia curioso com o que Melchior havia dito.

— Eu queria saber se minha alma era reencarnação de outro damaso, queria saber também se isso ocorria com os civis, talvez eu e Laylla..

— Entendi muito bem – Interrompeu Eurípedes, que agora mostrava desinteresse – Eu ia para meu quarto, mas depois dessa notícia, decidi treinar meu prodígio, cuide-se.

— Eu também preciso ir, até mais. – Respondeu Melchior.

O próximo damaso a ir para a batalha era Melchior, ele estava fazendo um favor a um amigo, não era seu mês, mas sempre que podia, esse homem ajudava.

 Ele estava de partida para além das fronteiras. Sua ultima visão foi o aceno de um de seus irmãos, depois, caminhou para fora do forte.

Eurípedes, que acabara de chegar da guerra, após a partida de seu companheiro, dirigiu-se ao espaço para treinamento, mas novamente foi interceptado pelo mesmo guerreiro.

— Senhor, antes que você saia daqui, eu ainda preciso lhe informar dos boatos que estão correndo por todo o império.

— Pois não? – Falou o damaso do ar.

— Os cidadãos que conversamos demonstraram uma imensa insatisfação com os senhores.

— Explique melhor.

— Nesses últimos anos, desde que os senhores descobriram que o verdadeiro prodígio estava perdido, Vossas Altezas Imperiais têm tomado atitudes impensadas, e até insanas. Para eles, esse terceiro ano de inverno está trazendo apenas fome e mais pobreza para as famílias. A violência também aumentou, pois a maioria dos guerreiros que ficavam nas cidades cuidando da segurança está em batalhas ou foram mutilados.

— E você concorda com isso?

— Eu fui feito para a luta, não discuto questões políticas, meu senhor.

O damaso ficou um tempo em silêncio refletindo aquela notícia e pensando em uma situação plausível e racional para tamanha desconfiança. Qualquer passo em falso poderia arruinar o período regencial daqueles domadores.

O damaso estava cansado, queria treinar seu prodígio e depois dormir. Tentou novamente se desloca com a esperança de não ser interrompido novamente.

— Vossa Alteza Imperial?

— Pois não? Ainda há algo que tu queres me falar?

— Sim.

— Pois diga e dessa vez fale tudo! – Eurípedes falou com a voz um pouco alterada, ele estava cansado e temia que essa notícia fosse ainda pior.

— Alguns, não todos, mais alguns falaram que diante dessa insanidade – o soldado limpou a garganta e continuou – não confiam mais na vossa capacidade de liderar e, por isso, mesmo que eles soubessem quem era o prodígio perdido, eles nunca iriam delatá-lo. Eles acreditam que o último prodígio estaria mais seguro longe do forte.

Eurípedes, em um momento de fúria, socou a parede pétrea. O soldado observou aquele momento sem nada falar

— Isso é tudo?

— Sim.

— Espero que você se retire agora – falou o damaso.

☾☾☾

— Com tantos problemas que temos de enfrentar, surge mais um! Se esses civis soubessem o que se passa nesse forte, não falariam tal blasfêmia! – Jordi, de forma exaltada, expôs sua indignação. Para ele, aqueles falatórios eram uma enorme falta de senso e pouca visão de justiça. Eles foram treinados para isso! Sua vida se resumia a lutar por aquele povo.

— Ingratos! Isso é o que eles são! – Completou Eurípedes. – O inverno tem ajudado na luta e na procura do prodígio, será mais fácil de identificar o prodígio quando sua capacidade de domar se manifestar.

— Mas eles não veem isso, meus caros. – Jordi falou com deboche.

— Se eles nos acham insensatos sem motivos, vamos mostrá-los o que é insensatez e facilitar nosso trabalho. Se vocês concordarem, nós podemos ordenar aos soldados que levem para o maior e mais próximo porto, todos os meninos de quatro a dez anos de todo o império. E assim, iriamos nós quatro avaliaríamos todos os garotos que poderiam ser o prodígio – Articulou Mosheh

— Mas como isso facilitará a procura? E para que um intervalo de idade tão grande? – Perguntou Jordi.

— Essa medida facilitará a procura, por que todos os possíveis prodígios estarão no mesmo local. O intervalo de anos será para evitar possíveis fraudes na idade da criança perdida e o local vocês já sabem, é um ponto estratégico.

— Isso é loucura, não temos condições de pôr todas as crianças do império em um mesmo local! – Eurípedes advertiu.

— Mas nós somos loucos para eles e é apenas isso que nós queremos comprovar.


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