Somente à noite escrita por Ys Wanderer
Eu não sei como foi que chegamos ao meu quarto, o caminho simplesmente desapareceu no meio do nosso desejo. Loucura, insanidade, calor. As carícias e os beijos foram ficando cada vez mais intensos e eu sentia como se meu corpo houvesse sido feito somente para aquele momento. Boca, cabelo, pele, suor. Éramos tudo. E também éramos nada.
Senti quando a sua mão se infiltrou pela minha blusa e toda uma onda de sentimentos me invadiu, me fazendo gemer como uma meretriz. O tecido desapareceu como em um passe de mágica e logo éramos apenas eu e ele. Foi então que senti quando ele estava pronto, eu estava pronta, e enfim eu vi o quanto era enorme e duro o seu p...
— Posso saber que pouca vergonha é essa aqui na minha casa?! — eu me espantei quando abri a porta da sala e a primeira coisa que ouvi foi a voz de Jeferson narrando sem nenhum pudor uma cena bizarra para uma pequena plateia que suspirava encantada. Cheguei bem a tempo de ouvi-lo falar algo sobre chicotes e vibradores cobertos com chantilly, por isso a minha cara estava mais vermelha do que os batons da minha avó.
— Pouca vergonha? — ele interrompeu a leitura e a plateia, composta por Conchito e duas manicures, bufou impaciente. — Isso aqui é literatura, gata. Literaturaaa eróóootica — uma risadinha depois de falar com uma voz misteriosa e suave. — Foi você mesma que disse que a gente precisava ler mais, então...
— Cinquenta pontos do prazer provocante? — li o título e nem me admirei ao constatar que na capa havia um cara mega gostoso seminu agarrando uma garota pelos cabelos. — Chame isso de literatura mais uma vez e o coitado do Machado de Assis vai se revirar na tumba!
— Olha, Anna, você não pode se achar melhor do que a gente só porque lê esses livros cheios de palavras difíceis — Conchito veio em defesa do grupo. — Me admiro que justo você venha com esse tipo de preconceito! Quanta decepção... E, você não pode falar de algo que não conhece, pois essa é uma linda história de amor, calor e desejo e sedução...
Um suspiro coletivo fez eu coçar a cabeça e pensar que realmente cada um deve fazer e ler o que bem entender. Como sempre meus amigos fizeram eu perceber que estava errada em dizer tais coisas e por isso me resignei, mesmo tendo que ouvir o restante da história que agora estava em uma parte que deixaria uma atriz pornô corada como uma donzela. Como estava super cansada de passar a tarde inteira na rua, deixei o grupo em sua sessão “literária” e subi as escadas pensando na noite terrível que provavelmente me esperava. Mas, como sorte não é o meu forte, Conchito deu um grito tão alto que eu desci os poucos degraus que já havia subido aos tropeços, quase caindo no meio do caminho.
— Paaara tuuuuudo! — ele correu e arrancou as sacolas que eu carregava das minhas mãos. — Isso é o que eu estou imaginando?
— É, é sim — recuperei as sacolas e o fôlego de volta e voltei a subir, lamentando o fato de minha avó ter ido resolver outras coisas e me deixado sozinha com a curiosidade daquelas borboletas. — E não é para o bico sem noção de vocês. Agora que finalmente eu tive a ajuda certa não vou precisar me vestir como uma prostituta de vermelho! — alfinetei, lembrando-os da vez em que me fizeram pagar o mico que fez Davi ver o meu traseiro.
— Ah, Anna, você ainda está remoendo isso? — Jeferson veio ajudar a xeretar e não pude lutar contra dois. — Deixa para lá. Seu bofe bem que gostou do que viu, aquele safadinho — os dois riram como hienas no cio e eu os olhei do mesmo modo que olhei minha professora de química quando ela perguntou o nome do vigésimo quinto elemento da tabela periódica. Mas, como eles nunca estavam nem aí para minha vontade de matá-los, continuaram a revirar minhas sacolas, analisaram o vestido azul e o sapato de salto que minha avó comprara e reclamaram, efusivamente, da falta de fendas e decote. Como eu expliquei pela milésima vez que eu iria a um jantar de família (e que a sogra era uma monstra), eles enfim se conformaram, mas não sem antes me arrastar até as manicures que pareciam estar ansiosas pelas minhas unhas.
E pela carne em volta delas.
— Se você arrancar mais um bife eu desisto! — reclamei e a “açougueira” me ignorou, arrancando feliz e sorridente mais um pedaço de mim. Conchito e Jeferson mexeram e remexeram no meu cabelo, minha avó chegou pouco depois para terminar de me revirar do avesso e depois me obrigou a tomar um banho com produtos que sequer imaginei que existissem.
— Olhem, meninas, ela não está parecendo uma princesa? — minha avó fez cara de choro junto com Jeferson assim que me viu arrumada e eu fiz um barulho parecido com pfff. Conchito então disse em tom de brincadeira que enfim eu parecia gente e até a Funerária, que desde a sua chegada se mostrou uma enjoada preguiçosa, deu um miado de aprovação.
— Conchito, essa gata é tão bizarra quanto você — reclamei e juro que a bichana entendeu. Sério, acho até que ela apertou os olhos e depois sorriu cinicamente, aquela demônia. — Cruzes, estou pensando seriamente em mandar exorcizá-la!
— Que nada, a bichinha só está te elogiando porque você não está parecendo um aparador de grama, não é, fofinha? — ele pôs a Funerária no colo e eu pude sentir a aura negra que emanava dela.
— Anna, pare de implicar com a coitadinha — vovó veio em defesa e eu me perguntei se essa criatura na verdade não era uma bruxa sugadora de almas disfarçada. — Agora, vamos voltar ao que interessa — ela interveio antes que eu esganasse gata e amigo. — Está pronta?
Se eu estava pronta?
Claro que não, mas eu não ia admitir isso em voz alta. Então, apenas fiquei sorrindo e acenando, rezando para não ter a alma sugada nem pela Funerária nem pela mãe do Davi.
*
— Ok, então. Obrigada por tudo, desejem-me sorte e chispem daqui! — eu ordenei a todos que estavam no carro e eles fizeram aqueles barulhinhos que a gente faz quando se ofende.
— Hum, quanta pressa para se livrar de nós. Já está com vontade de comer um tempero japonês?
— Vó, não começa! — ralhei e ela deu de ombros. — É só que...
— Você quer logo ver o seu boy magia, não é? — Conchito piscou, cúmplice.
— Sim, mas não é só isso — falei. — Tenho que aproveitar que ainda estou com coragem para fazer o que deve ser feito.
— O Davi já contou para a mãe dele que nós somos... diferentes? — Jeferson perguntou e eu mordi os lábios, preocupada.
— Não. Ele bem que quis, mas eu não deixei.
— Como assim? Por quê? — Conchito se exaltou. — Ficou com vergonha de nós, foi?
— Como é que é? — fechei logo a cara. — Escuta aqui, você lembra o que aconteceu quando eu estava na sétima série? —perguntei, minha voz já alta. — Se não lembra então faça o favor de lembrar! — apontei o dedo na cara dele e Conchito desviou o olhar. — Pois é, a próxima vez que você disser que eu tenho vergonha de vocês é bom estar preparado, porque eu vou enfiar o meu salto bem fundo lá naquele lugar!
Olhei para frente, vovó olhou para um lado e Conchito para o outro. Ficamos uns segundos emburrados, em silêncio, e se não fosse por Jeferson, que desatou a perguntar, passaríamos a noite toda ali.
— Gente, alguém me situa que eu tô perdido.
Silêncio...
— Alô, por que é que ninguém fala?
Mais silêncio...
— Pelamor de Madonna, o que diabos foi que aconteceu quando a Anna estava na sétima série!?
— Bom... — vovó pigarreou, dando uma respirada em cada pausa. — A Anna foi parar no ambulatório... com o olho inchado e dois dedos quebrados... por brigar com umas garotas bem mais velhas do que ela.
— E o que tem de novo nisso, gente, essa aí briga com todo mundo mesmo — Jeferson, nada sutil, interrompeu e quase foi fritado pelo olhar supersônico da dona Sarah.
— É que... a Anna brigou com elas por nossa causa — Conchito começou a falar meio tímido, braços cruzados. Só depois de muito tempo ele continuou. — Elas atiraram pedras em nós, me chamaram de “viadinho” e outras coisas horríveis e ficavam repetindo que a Sarah era... uma “puta”— Ele narrou, triste, sem me olhar. — A gente não estava fazendo nada demais, estávamos apenas passando pela praça...
— Sério? — Jeferson continuou, com a mão no coração.
— Hum hum.
— E o que aconteceu?
— A gente até foi até a polícia, mas ninguém pareceu se importar. Então a Anna esperou uma hora em que ninguém estava prestando atenção nela e... eu disse para essa doida deixar para lá, mas ela ficou tão indignada que antes que eu pudesse... — ele ficou calado e baixou a cabeça. No entanto, de repente, do nada ele começou a rir. Uma daquelas risadas altas e malucas mesmo. — Você acredita que ela chegou logo na voadora? — ele enfim conseguiu falar quando acabou de rir, e todo mundo começou a rir também porque não era isso que a gente estava esperando.
— Isso é sério? — Jeferson não pareceu acreditar.
— Pior que é — vovó, que até o momento estava calada, riu junto.
— Ah, não é para tanto, gente, pois essa voadora foi o único golpe que acertei. Conchito, lembra que a minha cara ficou parecendo um tomate quando cai no chão?
— Mas não foi tão ruim, você mordeu o braço de uma delas, lembra? Se eu bem me lembro, quando cheguei para apartar a briga você estava com a cara cheia de sangue.
— Não, não, o sangue era meu mesmo — gargalhei. — Pois é... eu apanhei feio naquele dia... — olhei para todos e percebi que havia algumas lágrimas presas em cada um de nós. — E apanharia tudo de novo se fosse preciso porque vocês são a minha família e ninguém pode magoar vocês. Eu achei que isso já tinha ficado claro faz tempo.
— Ai, Anna. Tá bom, ok, eu já entendi — Conchito limpou os olhos úmidos. — Me desculpa, foi só uma...
— Grande bobagem — interrompi. — É claro que eu não tenho vergonha de vocês e nunca terei. É só que agora eu tenho mais uma pessoa com quem me preocupar. E se o Davi contasse sobre vocês para a mãe dele nem posso imaginar o que ela falaria, como ela o trataria. Mas se ela souber de mim através de mim mesma talvez ela não o maltrate. Isso eu não vou deixar nunca.
— Mas e se ela maltratar você? — vovó perguntou, preocupada.
— Bom, para quem já enfrentou quatro garotas sozinha e saiu viva, enfrentar uma sogra não vai ser nada demais.
— Tem certeza disso?
— Tenho, Jeferson, não chora, por favor — segurei uma revirada de olho ante a sensibilidade exageradíssima do meu amigo. — E vocês dois aí fiquem calmos e sossegados, ok?
— Ai, meu Deeeeeeeus! — Conchito exclamou. — Você é louca?
— Sou — respondi saindo do carro. — E aprendi a ser assim com os melhores — dei um sorrisinho malicioso e pisquei.
Depois de muito insistir – e convencer a minha avó de que eu não precisava de uma arma de choque – eles enfim foram embora e eu me vi sozinha na noite. Lutar era algo que fazia parte das minhas células, então não seria dessa vez que eu iria ficar de braços cruzados.
Atravessei a rua e já comecei a achar tudo esquisito. Geralmente, quando há alguma festa na minha casa ou na casa de algum conhecido é possível escutar o batidão retumbando até na lua. Mas ali na frente da casa de Davi estava tão silêncio que eu conseguia ouvir o meu estômago revirando dentro de mim.
Respira.
Um. Dois. Três.
Ding-dong.
Meio minuto depois Davi abriu a porta e me abraçou tão forte que eu pensei que fosse ser esmagada. Ficamos ali um bom tempo, até nos afastarmos, e eu torci para ele não perceber que eu estava com vontade de sair correndo.
— Você está incrível — Davi disse antes que eu perguntasse algo e só pude sorrir. Ele então ficou me olhando de um jeito estranho, quente, e tive certeza ali de que não importaria o que acontecesse aquele japa era meu e ponto final. Devolvi o olhar dele, e agora que estávamos mais afastados eu pude ver como ele se vestira.
Davi estava usando um...
— Terno? É o seu aniversário ou um coquetel do corpo diplomático da ONU?
— Mais ou menos as duas coisas — ele passou a mão nos cabelos recém cortados. — Pelo menos não tem gravata e a calça é jeans. Mas e aí, como estou?
O desgraçado estava super sexy com aquela roupa e eu comecei a lembrar do livro que os meninos estavam lendo durante a tarde. Davi também estava usando um perfume daqueles bem másculos e eu logo comecei a suar.
— É... você... tá bacana.
— Só bacana? — ele deu uma voltinha e eu conferi todo o “material”.
— Hummm — analisei. — Na verdade você está parecendo um Christian Grey oriental.
E eu adoraria te morder todo.
Mas lógico que essa parte eu não disse.
— Gostei disso — Davi respondeu, safado, e eu corei, me sentindo uma idiota vivendo o seu próprio “crepúsculo” com baixo orçamento. — Bom, é melhor entrarmos logo — ele pegou minha mão e a puxou suavemente, me levando para o Tártaro.
E eu finalmente contemplaria a face de Hades.
— Espera, Davi. O que você acha que devo usar? Armas, espadas, sabre-de-luz ou pedra-papel-tesoura?
— Sabre-de-luz é uma boa pedida — ele fez uma expressão divertida e isso me tranquilizou. — E, Anna, eu só quero te pedir uma coisa — ele ficou frente a mim e vi quando um sorriu surgiu em seus lábios, um daqueles sorrisos que indicam que a gente está a fim de aprontar alguma. — Eu espero que você seja totalmente e simplesmente você mesma aqui, esta noite. Não mude nada. Fale o que tiver que falar.
E se o circo iria pegar fogo a gente com certeza iria se queimar junto.
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