Somente à noite escrita por Ys Wanderer


Capítulo 22
Brincando com fogo e gasolina




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/580013/chapter/22

De acordo com o que havíamos estudado, o teatro tinha sido muito importante para a história da humanidade espalhando a cultura entre os povos e mais um monte de blá blá blá. Porém, o que estávamos fazendo ali não tinha nada da antiga grandiosidade dos palcos, pois parecíamos mais um monte de macacos se balançando para lá e para cá do que atores do que quer que fosse. Fiquei olhando para o teto, enquanto bocejava e pensava nessas coisas, até que me assustei com a potência da voz.

— JÁÁÁ CHEGA!!! — Thays, a diretora da peça, gritou tão alto quanto pôde e todos nós ficamos chocados com a sua explosão, já que ela tinha uma carinha meiga e pacífica. — Me digam uma coisa: será que vocês não sabem fazer nada direito? Sério mesmo, mas qual a dificuldade em encenar uma peça que todas as crianças sabem de cor?!

— Escuta aqui, queridin...

— Escuta aqui o quê? — ela interrompeu Patrícia bruscamente, fazendo-a se calar imediatamente, algo bastante raro. — Parece até que estou lidando com o jardim de infância, porra! — a garota brigou, impaciente, e jogou o roteiro no chão. — Quer saber, vão se foder... — xingou e só ficamos olhando ela sair porta afora, sem nos mexermos, sabendo que se ela continuasse ali provavelmente seu pequeno coração estouraria de raiva. Ouvimos todo o ataque dela sem dizer nada, pois sabíamos que éramos culpados e, além disso, a garota era boa no que fazia. Segundo Davi, ela já tinha dirigido as melhores peças da escola, sendo a única pessoa capaz de dar um jeito em nós.

Porém, no nosso caso, acho que nem Steven Spielberg daria conta de tanta gente burra reunida.

— Nossa, para que tanta grosseria? — Patrícia disse com voz melíflua (palavra que eu ouvi na aula de português e quer dizer suave, uma palavra fresca o suficiente para ser aplicada a ela), e Andressa revirou os olhos. — Qual o problema com ela?

— O problema não é a Thays, o problema é a gente — Davi respondeu, arrancando a coroa da cabeça e jogando num canto qualquer. Não estávamos vestindo o figurino, no entanto tínhamos que colocar algo que dissesse qual personagem éramos. E como o meu personagem era o Zangado dei um jeito de entrar na escola com um machado de verdade. — Somos uma bela porcaria — Davi completou.

— A culpa e toda sua, André! — Andressa ralhou, arrastando a capa da Rainha Má atrás de si, e meu amigo apenas sorriu. — Você tinha que fazer gracinha daquele jeito?

— Qual é, eu só estava tentando ajudar — André se defendeu. — Ela pediu sugestões e eu apenas disse que a peça poderia ser mais adulta e que podiam rolar umas cenas mais quentes, sei lá, só para dar uma animada — André começou a fazer uns movimentos pélvicos imorais e todo mundo riu. Patrícia riu ainda mais, praticamente vibrando de alegria, e só aí eu entendi por quê.

— Você tem toda razão, bem que poderiam rolar umas cenas mais quentes — ela se insinuou para André e só então ele percebeu a burrada que tinha dito. Se ela era a princesa e ele o príncipe, isso significava que...

— PAUSA! — eu gritei antes que algo pudesse acontecer. Bom, embora eu adorasse uma confusão e sempre sentasse para assistir de camarote, a perspectiva de ver todos os meus amigos metidos em uma não foi tão legal assim. — E, você, vai atrás da Thays e pede com jeitinho para ela vir logo tentar dar um jeito nessa zona — ordenei para outro anão que estava quase cochilando de tédio e ele saiu correndo.

— Eu ainda não decorei algumas falas porque ainda não entrei no clima, pô. Ser o príncipe é muito difícil — André tentou se explicar e eu olhei torto para ele, empunhando o meu machado ferozmente em sua direção.

— Então, amigo, você tem dez minutos para aprender, pois eu juro que se não conseguirmos dessa vez, ao invés de apresentarmos a “Branca de neve” apresentaremos “O massacre sangrento na floresta encantada!”.

— Calma, Anna, pega leve — Davi tocou no meu ombro e eu respirei bem fundo. — Você não é a única aqui que quer que um meteoro caia em cima de nós, pode apostar. Bom, pelo menos estamos melhores do que ontem, pois a Andressa e a Patrícia hoje nem se xingaram...

— É, vendo por esse lado — respondi. — A Andressa e a Patrícia ainda não saíram no tapa.

Ainda.

Enfim, nós já estávamos ali há uma eternidade e nunca conseguíamos avançar, pois algo sempre dava errado. Davi esquecia a fala do rei quase todas às vezes; Andressa interrompia todos os diálogos de André com Patrícia – já que Thays teve a brilhante ideia de pôr o príncipe na história desde o começo para que diminuísse o impacto de um cara beijando uma morta desconhecida; Patrícia abraçava demais Davi nas cenas entre o Rei e a princesa e com isso eu acabava soltando algum palavrão que nos obrigava a recomeçar... Fora que a maioria dos outros anões estavam com a personalidade completamente trocada: o Feliz estava de TPM, o Soneca era hiperativo, o Dengoso odiava contato humano e o Mestre – que devia ser o mais inteligente – ficava fazendo bolhas com o chiclete até estourar, rindo feito um maníaco por causa do barulho.

Íamos com toda certeza pagar o mico do ano.

Do ano não, do século.

— Sinceramente eu não sei o que acontece comigo, mas toda vez que eu chego perto dessa menina minha irritação sobre num nível absurdo — Andressa falou no meu ouvido e eu concordei, pois Patrícia parecia ter o dom de fazer até um monge tibetano gritar de estresse.

— Relaxa que isso já já vai acabar e todos nós vamos viver felizes para sempre — eu caçoei e minha amiga me deu um tapinha na nuca. — Fica fria, são só mais alguns ensaios e estaremos livres disso — falei tentando soar positiva e Davi fez uma expressão de alívio pelo fim iminente daquele castigo dos infernos.

Ainda esperamos um bocado de tempo até que a diretora da peça enfim voltou – um pouco menos estressada, mas ainda com uma cara de que nos mataria a qualquer deslize. Tentamos recomeçar com calma e dessa vez até que fizemos tudo direitinho, sem interrupções e seguindo o roteiro fielmente.

Estava tudo dando certo pela primeira vez em dias.

Mas, como o diabo gosta de uma treta, inevitavelmente chegamos à última cena: a do beijo.

— Então, como vai ser a cena? — Patrícia perguntou com a cara mais cínica do mundo. — Um beijo longo? Demorado? Com pegada?

Viiiixe...

— Ah, eu vou matar essa bandida! — Andressa gritou e André a segurou bem a tempo, pois ela estava disposta a tirar o esmalte das unhas na cara da rival. — Qual é o seu problema, hein, sua piriguete?

— Do que foi que você me chamou? — Patrícia se ofendeu como se fosse inocente.

— De bandida, piranha, piriguete!

— Olha, garota, se eu perder a paciência vou acabar dando na tua cara!

— Vem, pode vir! Assim eu aproveito e te mostro logo como é que se morre de verdade! — Andressa conseguiu se soltar de André e praticamente voou em cima da outra.

Foi um deus no acuda e, antes que eu percebesse, as duas já estavam rolando no chão. Os meninos até tentaram apartar a briga, mas eram covardes demais para isso, então eu acabei tendo que me meter ali pelo meio e fazer o serviço todo sozinha. Puxaram meu cabelo, arranharam meu braço e até me morderam, mas ao menos consegui tirar a Andressa de cima da Patrícia antes que fosse tarde.

— PAAAAREM! — Thays por fim interveio e as duas ficaram quietas, já que ela estava com uma cara de que ia dar com a prancheta na cabeça delas. — Onde vocês pensam que estão, hein? — Ela levantou os punhos e deu uma espécie de grunhido de impaciência. — Andressa, sem baixaria, ok? No dia em que isso aqui virar a casa da mãe Joana você pode falar o que quiser, mas agora se contenha e tenha respeito! E, Patrícia, isso aqui é uma peça teatral e não uma novela, então pare de ser oferecida e faça somente o que está sendo pedido no roteiro, entendeu? Vocês entenderam? — As duas balançaram a cabeça e ninguém teve coragem de dizer uma única palavra. — AGORA FORA DAQUI, SUMAM DA MINHA FRENTE! — a garota gritou num ímpeto e todos nós fugimos dela como baratas fogem do inseticida, cada um indo desorientado para um lado diferente. — EU JURO QUE AINDA MATO VOCÊS! — ainda conseguimos escutar ela berrando de longe, e eu confesso que pela primeira vez na vida fiquei com medo de alguém.

— Caramba, eu não corro assim desde que quebrei o vaso chinês da minha mãe — Davi ofegou, as mãos nos joelhos por causa do esforço. E eu, como uma boa sedentária, já estava sentada em um banco tentando não morrer. — Acho que nem o Flash conseguiria percorrer o caminho entre o auditório e o refeitório em tão pouco tempo.

— Olimpíadas, aí vamos nós! — eu tentei levantar a mão num gesto de vitória, mas descobri que gastaria toda minha energia vital no processo. — Será que mais alguém sobreviveu? — perguntei enquanto procurava por sinal de vida nos arredores, mas o refeitório estava completamente vazio.

— Eu acho que não — Davi respondeu devagar. Então a tensão da fuga se dissipou e ele começou a gargalhar daquele jeito horroroso que era típico dele, uma mistura de engasgo com tosse e asma brônquica.

Bom, o amor poderia ser cego, mas ainda não era surdo.

— Davi, você tem a gargalhada mais feia que eu já ouvi na minha vida — falei já morrendo de rir, pois era impossível ouvi-lo sem cair na risada. — Sério, ainda bem que eu já gostava de você antes de te ouvir rir assim pela primeira vez. Se eu tivesse ouvido isso antes juro que daria no pé.

— A sua sinceridade magoa, sabia? — ele fez o ofendido. — Quer saber, você pode não gostar da minha gargalhada, mas tem gente que acha ela bem bonitinha.

— Quem, a sua avó? — zombei.

— É, pior que é só ela mesmo... — ele fez uma expressão suave e deduzi que estava pensado na avó mesmo. Davi então se sentou ao meu lado e colocou os braços ao meu redor, e pela cara dele eu já sabia que não viria boa coisa. — Mas, então, mudando de assunto...

— Hum — eu arqueei as sobrancelhas, já imaginando do que se tratava.

— Você já decidiu se vai à minha casa?

— Ainda não.

— Por quê?

— Porque ainda estou juntando coragem.

— Juntando coragem para ir?

— Não — respondi. — Estou juntado coragem para pedir ajuda...

***

— Então é isso, preciso muito da ajuda de vocês — eu disse, mas me arrependi amargamente depois de ver a cara sonsa de Conchito. Jeferson era ainda pior, pois ficava me olhando de cima abaixo demoradamente e fazendo umas caretas esquisitas.

— O que você acha? — Conchito perguntou ao outro, que ficava dando voltas ao meu redor.

— Não sei. Vai ser muito difícil transformar isso aí em uma dama. Sinceramente, prefiro adestrar um pitbull com as mãos nas costas.

— Hei, eu estou aqui e estou ouvindo! — bufei. — Ah, quer saber, esquece...

— Negativo! — Conchito deu um pulo, me interceptando antes que eu saísse do seu quarto. — Você vai jantar na casa do boy, docinho, então deve passar uma boa impressão.

— Primeiro, pode não parecer, mas eu sei muito bem como me comportar, não sou nenhuma daquelas personagens dos filmes de romance que não sabem nem como pegar em um garfo — falei. — E eu não estou a fim de passar uma boa impressão para ninguém, pelo menos não mostrando algo que eu não sou. Então eu não preciso de nada disso, só quero que vocês me arrumem uma roupa bacana e um daqueles sapatos chiques de vocês. Simples.

Os dois se olharam e ficaram conversando silenciosamente. Pois é, sei que isso parece loucura, mas é a única explicação para o jeito que olhavam para mim, se olhavam, balançavam a cabeça e se olhavam de novo.

— O azul? — Jeferson perguntou.

— Não sei, acho que não combina com o tom de pele dela.

— Mas é mais bonito que o verde, não é?

— É sim, mas acho que o vermelho vai cair melhor — Conchito se dirigiu ao seu armário e ficou procurando por algo lá. Depois de jogar na cama uma infinidade de paetês, coletes, vestidos exuberantes e pedrarias ele enfim achou o que procurava. — Ah, aqui!

— O que é isso? — perguntei já com medo, pois lembrei tardiamente da última vez que eles haviam feito eu usar um vestido.

— É um Gregory Bathiste, baby.

— E o que isso quer dizer?

— Isso que dizer que você vai usar algo que custa mais ou menos o preço de um rim — Jeferson olhou com devoção para o vestido. — Anda, experimenta logo!

Olhei para a “coisa” e quando toquei no tecido percebi que era um modelo complexo demais para vestir. Mas, como eu estava necessitando de um conselho feminino, resolvi fazer tudo calada.

Mentira, eu jamais iria vestir aquilo sem questionar.

— Olha o tamanho dessa fenda na coxa! — questionei levantando o pano na altura dos olhos. — O que raios vocês tem contra roupas decentes? Eu não vou pôr isso nem morta, isso aqui é algo que somente uma prostituta da babilônia usaria.

— Ah, qual é, é só um teste — Jeferson argumentou. — Imagine que vai ser legal mudar um pouco. Então? O que me diz?

Pensei, pensei e já que estava ferrada mesmo...

— Ok, fazer o que, né...

— Espera! — Conchito me interrompeu. — Por que a gente não faz igual àqueles filmes americanos? Que tal você colocar o vestido, calçar esses sapatos e depois descer as escadas como uma deusa?

— Vocês não vão fazer isso comigo! — eu berrei, mas eles já tinham me deixado sozinha.

— Te esperamos aqui em baixo! — os dois gritaram em uníssono. — Não demore.

O diabo da roupa tinha tantas tiras e tantos buracos que eu meti umas dez vezes a cabeça no lugar da manga direita. Havia uns recortes e umas coisas estranhas, mas torci que fosse aquele tipo de vestido que se ajeita depois em cada parte do corpo. Depois de respirar fundo e juntar minha vergonha do chão, calcei os saltos e desci as escadas como o pedido, lentamente e fazendo cara de poucos amigos.

— Nossa! — Conchito disse de boca aberta.

— É... — Jeferson o imitou.

— Você está... horrível! — Conchito começou a rir feito um louco, pondo a mão na barriga para controlar os espasmos. — Anna, se eu fosse o Davi e te visse assim correria para Marte na mesma hora.

— Definitivamente não é igual aos filmes de Hollywood em que a baranga troca de roupa e se transforma na Megan Fox. Você está parecendo uma pata depois de ser atropelada por uma bicicleta! — Jeferson imitou Conchito nos gestos.

— Seus filhos de uma... — xinguei enquanto atirava cada par do salto na cabeça deles. — Vocês são dois escrotos, sabia? — por sorte havia um chinelo perto do primeiro degrau e eu consegui acertar os alvos dessa vez. — O que vocês ganham brincando com a minha cara?

— Não estamos brincando com a sua cara — Conchito controlou o riso. —  Eu pensei que caberia em você, mas a barra ficou enorme. Quem manda ser baixinha?

— Peguem esse vestido e enfiem bem fundo no c... — eu tirei o vestido e joguei no chão, ficando só de lingerie no topo da escada. — Quer saber, eu vou desse jeito aqui, aposto que vai ser bem mais interessante.

— Eu concordo! — alguém disse e eu desejei ardentemente ser atingida por uma bala perdida, míssil, dengue, zika vírus ou qualquer coisa que pudesse me matar. Mentalizei bastante, para ter certeza de que aquilo era uma espécie de pesadelo ou uma realidade paralela, mas Davi era real e estava parado no canto da minha sala com uma cara de tarado. — Desculpa entrar sem bater, mas a porta estava aberta...

— POR QUE CARALHOS VOCÊS NUNCA FECHAM ESSA MALDITA PORTA! — eu gritei tão alto, mas tão alto que minha garganta ardeu. Peguei o vestido do chão e tentei inutilmente cobrir o meu traseiro com ele enquanto subia as escadas, espumando de vergonha e ódio. — Eu odeio vocês, odeio todos vocês! Espero que morram e vão para o inferno e que lá sejam comidos pelo próprio capeta! — vociferei essa e mil outras pragas até conseguir chegar ao meu quarto e quase quebrar a porta ao fechá-la.

Respira, Anna, respira... Na próxima vida quem sabe o seu carma melhora...

Eu podia ouvir as risadas lá embaixo e isso só aumentava ainda mais a minha raiva. Me encostei na porta do meu quarto e deslizei até o chão, dramatizando o meu destino tão cruel. Então, para me acalmar, comecei a imaginar os três girando em um espeto com uma maçã na boca enquanto eu jogava gasolina.

O resultado foi tão bom quanto tomar um chá de camomila.

— Anna, tudo bem? — Davi perguntou do outro lado da porta e eu imaginei que maravilha seria empurrá-lo de um precipício...

— Se está tudo bem? E claro que está tudo bem. Agora vá embora, por favor, para que eu possa morrer em paz.

Dois minutos de silêncio...

— Me desculpe, Anna.

— ...

— Eu não devia ter entrado sem bater...

— ...

— Mas, bom, é que eu nunca pensei que...

Davi parecia mal por saber que eu estava mal, então a vontade de matá-lo foi se dissipando um pouco. Pensando melhor o coitado não tinha culpa pelo ocorrido, pois com certeza na casa dele não havia ninguém sem juízo como aqui.

— Não precisa falar, eu sei — respondi sabendo o que ele queria dizer, pois provavelmente quando se entra na casa de alguém você espera se deparar com coisas normais e cotidianas e não com uma bagunça generalizada. — Eu sei, e é isso o que me dá mais raiva.

— Como assim?

— Espera — eu falei e fui procurar algo para vestir. Então, juntei toda a coragem que tinha para abrir a porta.

— Oi — ele disse tímido quando me viu.

— Olha, eu sempre soube que você queria ver a minha bunda, mas nunca pensei que ficaria me espionando — proferi logo uma asneira para tirar a vergonha que dançava no ar. — Que baixaria, Davi!

— O quê? — ele ficou logo vermelho e isso me divertiu muito. — Anna, eu...

— Calma, eu estou brincando — dei espaço para ele entrar no meu quarto e ele obedeceu. — Mas sei que hoje você não vai consegui dormir.

Recebi um olhar que dizia que provavelmente ele pensaria nisso, então desviei o foco e sentei na minha cama. Davi então sentou ao meu lado e ficamos em silêncio por algum tempo.

— Então... — ele iniciou. — O que você quis dizer com: “eu sei, e é isso o que dá mais raiva”?

Respirei fundo antes de responder.

— Que provavelmente a cena que você viu hoje e mais um monte de coisas que você não acreditaria se eu contasse... que isso não são coisas que se vê numa casa normal.

— Isso quer dizer então que você gostaria de viver em outro ambiente?

— Às vezes, mas só quando estou com raiva — eu sorri. — Porém, tem horas que a minha paciência esgota e confesso que tenho vontade de largar tudo, sabe?

— Eu entendo... — ele se deitou e eu o imitei. — Por mais esforço que a gente faça, família é algo difícil de lidar. Tem momentos que eu olho para a minha e me pergunto onde foi que nos perdemos um do outro.

— Já foi bom um dia, Davi?

— Sim — ele deu um sorriso triste. — Mas e os seus pais? Você nunca me falou sobre eles. Quer dizer, exceto quando me disse que havia sido comidos por onças na Amazônia — ele lembrou e rimos bastante. — Onde eles estão na verdade?

Fiquei fitando o teto por alguns segundos.

— Bom, a minha mãe sempre foi meio revoltada, sabe? Ela nunca aceitou bem o passado da vovó e todo o resto que veio depois. A vovó também nunca contou quem era o pai dela e isso só piorou a situação entre as duas. Enfim, ela conheceu o meu pai quando tinha somente dezessete anos. Os dois se apaixonaram e ela foi embora com ele para o interior. Mas só que a minha mãe era muito novinha, tinha sonhos, vontade de conhecer o mundo... acabou voltando um ano mais tarde. Um mês depois ela descobriu que estava grávida, e a vovó disse que com isso ela mudou e parecia ter “tomado juízo”. Mas, o tempo foi passando, a vida dela também... e quando eu tinha sete anos ela criou coragem e foi embora para São Paulo.

— Nossa — Davi virou e olhou para mim. — E o que aconteceu com ela?

— Eu sinceramente não sei. Ela sempre vinha me visitar, me ligava, mandava presentes. Mas depois de um tempo ela sumiu e eu só tenho notícias dela de vez em quando.

— E isso te magoa? Você tem raiva dela por isso?

— Não — respondi tranquilamente.

— Não? Por quê? Como você consegue?

— Davi... — eu baixei meu tom de voz. — Eu consigo entender tudo o que ela passou e porque fez tudo o que fez. Essa vida que eu tenho não é para qualquer pessoa, então eu não a julgo. Ela engravidou cedo, teve uma infância conturbada... não posso culpá-la por querer ser livre.

Davi então ficou meditando no que eu havia falado, provavelmente tentando compreender. As coisas que eu havia dito, cada palavra, era total verdade, pois eu não gostava de cultivar nada de ruim no meu coração. Bom, eu tinha uma vida só minha para viver, então não gastaria meu tempo tentando decifrar as coisas que o destino faz.

— Você é uma guerreira, sabia? — eu vi que havia lágrimas em seus olhos e isso me comoveu muito. — Eu no seu lugar já teria surtado.

— E quem disse que eu não surtei? — brinquei e isso quebrou a tristeza. — Eu deixei de ser normal há muito tempo.

— Concordo — ele me puxou e eu deitei no peito dele. — Mas e o seu pai? Você me disse que ele havia ensinado você a dirigir. Quer dizer então que vocês têm contato?

— Não tanto quanto eu gostaria, pois agora ele mora no interior do Mato Grosso. Ele não tinha como ficar comigo, então fiquei com a minha avó. Ele vem me ver sempre que dá e eu vou para lá sempre que dá também. Depois de um tempo ele casou de novo, se ajeitou e me chamou para morar com ele, mas eu não aceitei porque não queria deixar minha avó sozinha. E também por causa da minha madrasta.

— Ela é má?

—Não, é justamente o contrário. — Davi fez uma careta de incompreensão. — A Camila é maravilhosa e uma super mãe, então ela me colocava na linha. Lá eu tinha hora para acordar, para dormir, para comer, tomar banho e aqui, você sabe, tudo é a maior bagunça — eu ri. — E eu também não queria sobrecarregá-la, pois ela já tem que cuidar da minha penca de irmãos.

— Penca? — ele arregalou os olhos.

— É. Cinco.

— Não brinca! — ele exclamou e eu levantei para procurar o álbum de fotografias no criado mudo.

— Olha — mostrei uma foto com cinco crianças, formando uma escadinha pela idade.

— Caramba... — a cara dele era puro espanto. — Parecem com você. Qual o nome deles?

— Não vou falar.

— Por quê?

Eu pus a mão no rosto e respirei bem fundo, lembrando de como eu era feliz por minha avó ter escolhido o meu nome. Meu pai era muito fã de música sertaneja...

— Esse aqui — eu pigarreei — é o Zezé, de onze anos. O de cabelo grande é o Luciano, de dez. Essa — apontei para uma menininha de vestidinho rosa — é a Sandy, de oito. E esses aqui — mostrei dois pestinhas sem os dentes da frente — são o Bruno e o Marrone, os gêmeos de seis anos.

Davi tentou segurar o riso, deu para ver o esforço, mas não conseguiu.

— Eles são lindos — Davi conseguiu falar depois de parar de rir. — Eu gostei dos nomes, são bem originais. Você tem muita sorte, Anna. É incrível saber que você não está sozinha.

Eu gostei de ouvir o que ele havia dito sobre não estar sozinha. Eu gostava muito daquelas crianças e elas de mim, mas acabava evitando me lembrar delas por causa da saudade. Porém, eu sabia que poderia contar com elas no futuro se continuasse cultivando o amor.

— Pois é... incrível mesmo — fechei os olhos e ouvi a risada delas na minha mente. — Eu adoraria viver com eles, mas a minha avó precisa mesmo de mim.

— É muito bonito isso que você faz por ela, Anna. Não sei se outra pessoa seria capaz.

— Obrigada — eu disse controlando a vontade de chorar.

— Por que você nunca me falou essas coisas? — ele perguntou curioso. — Por que você me fez ver somente a sua superfície?

— Eu não sei — falei com sinceridade. — Acho que eu precisava ter certeza de que você merecia saber como eu sou por dentro.

— Eu prometo que vou sempre fazer o possível para merecer saber tudo sobre você — ele tocou no meu rosto com carinho. Você é a melhor coisa que já aconteceu na minha vida.

Há certas frases que dispensam respostas em forma de palavras, por isso apenas me aproximei mais e colei a minha boca na dele. A sensação foi estranha dessa vez, mais intensa, pois eu estava com todos os sentimentos à flor da pele, então antes que me desse conta eu estava sentada em seu colo, suas mãos segurando meus cabelos com força. A camiseta que eu estava usando era muito curta e, quando ele pegou na minha cintura, eu estremeci com o contado da sua pele na minha. Aquele tecido todo parecia não ter utilidade ali e eu nem tentei controlar a vontade de tirar a roupa dele, por isso puxei a sua camisa e a retirei rapidamente. A pele dele era tão firme, tão minha, e eu quase tive um treco quando Davi mordeu o meu pescoço, seus braços ao meu redor não deixando nenhum centímetro entre nós. Comecei a perder o ar, a temperatura pareceu subir uns cem graus e eu senti que ele estava...

— Parem com a safadeza e venham comer a pizza antes que esfrie — Conchito gritou do outro lado da porta. — Essa é uma casa de família, então espero que só estejam jogando cartas aí dentro!

Parei bruscamente o que estávamos fazendo para olhar para a porta, respirando aliviada ao vê-la trancada. Quando voltei a olhar para Davi ele estava todo vermelho. Foi a coisa mais fofa do mundo.

— Eu espero que isso que eu estou sentindo aí embaixo seja o seu celular — brinquei, minha voz ofegante denunciando as coisas que eu sentia.

— Você parece que tem prazer em dizer coisas constrangedoras para mim, não é?

Isso era como brincar com fogo e gasolina.

— Só um pouquinho — sorri. — Agora é melhor irmos logo — tentei agir com naturalidade, pois aquela não era hora para pensar no que poderia ter acontecido, mas foi bem difícil não lembrar das sensações toda vez que ele me olhava.

Mas, enfim, o que poderia ter acontecido?

Simples.

Gasolina e fogo sempre acabam explodindo.

 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!