Somente à noite escrita por Ys Wanderer


Capítulo 2
Eu prometo tentar




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— Senhorita Anna, o diretor Bellini está lhe esperando — uma secretária de voz doce anunciou e me segurei para não torcer o nariz. Em uma hora eu já havia descoberto que detestava aquele lugar, mas era o meu penúltimo ano escolar e estavam no início do segundo bimestre, ou seja, apenas mais um ano e alguns meses e estaria livre. Minha avó merecia esse orgulho.

— Obrigada — respondi usando o mesmo tom e me dirigi à sala do diretor, passando por outros três candidatos assustados. Mas eu não estava assustada, pois minha vaga estava garantida e a entrevista só fazia parte da burocracia. Tudo graças a minha avó, uma mulher extremamente... peculiar.

Um homem de traços aristocráticos, cabelos escuros e sobrancelhas grossas me esperava com um ar irrequieto, e me cumprimentou quase diplomaticamente. Ao canto da sala uma senhora, que logo depois fiquei sabendo ser uma psicóloga, convidou-me para sentar. O diretor apenas observou e retornou para a sua mesa.

— Anna Fernandes, dezesseis anos. Essa é você? — a mulher de rosto bondoso perguntou.

— Até hoje de manhã sim — ri e a psicóloga acompanhou.

— Eu me chamo Isadora e vou fazer algumas perguntas, tudo bem? — a psicóloga perguntou e apenas balancei a cabeça. — Essa é a segunda escola onde você almeja ingressar esse ano e vi em sua ficha que você quase nunca consegue se adaptar em lugar nenhum. Qual o motivo das suas duas últimas expulsões? — questionou e eu sorri, timidamente, pensando em como responder isso sem me encrencar...

— Bullying — fiz voz de vítima e a mulher estreitou os olhos com pena. Contudo, pensei que ela não deveria ter pena, pois apesar do que faziam comigo o motivo de minhas expulsões eram sempre as minhas vinganças nada sutis. Se colocássemos em uma balança, com certeza eu havia feito muito mais estrago em quem me dirigiu a palavra do que eles haviam feito comigo com suas grosserias.

— O que aconteceu? —  perguntou. Eu dei de ombros.

— É que... eu tenho uma família não muito convencional e os outros não aceitavam tudo muito bem, desse modo acabei tendo problemas de relacionamento — continuei. — Mas como o colégio Bechara é super renomado e disciplinado, creio que não irei sofrer esse tipo de problema aqui — barganhei com voz suave e pela expressão da psicóloga soube que já havia ganhado o jogo.

A entrevista durou cerca de meia hora e foi baseada em perguntas sobre família, notas, relacionamento e comportamento, as quais respondi variando o tom de voz e a expressão de acordo com o que queria passar.

— Entraremos em contato amanhã — o diretor disse ao final, apertando minha mão enquanto a psicóloga anotava várias coisas em uma ficha. Após as despedidas saí da sala orgulhosa de mim mesma e jurei diante do retrato de Machado de Assis, pendurado no corredor, que jamais iria me meter em confusão.

Mas Machado de Assis não era santo pra garantir isso para mim.

Meu telefone tocou quando eu já estava a caminho da parada de ônibus e na tela do aparelho reluziu a foto de uma senhora vestida com paetês e batom vermelho, cheia de colares coloridos em torno do pescoço. Dona Sarah não era o tipo de avó que fazia tricô e se reclamava de dores nas costas.

— E aí, Anna, como foi? Embora a vaga já seja sua, você sabe, né? Vai que algo dá errado...

— Tudo certo, vó — respondi, contente. — A senhora é uma velhinha perversa, sabia? Chantagear o diretor não é algo que uma mulher de família faça.

— Velhinha é a sua avó — ela gargalhou do outro lado da linha. — E desde quando sou uma mulher de família? Ah, e não tenho culpa se um diretor tão sério de uma escola tão séria não pareça ser tão sério assim. Eu não chantageei ninguém, só disse a ele que minha neta precisava estudar e que gostaria que fosse em um lugar renomado como a escola dele. E depois disso, apenas perguntei o que os pais ricos e frescos diriam se soubesse que seus gestores gostam de frequentar meu estabelecimento, caso alguém ficasse sabendo disso. O homem achou que eu estava falando isso com segundas intenções e acabou oferecendo logo uma uma vaga para você, e eu é que não ia dizer que não era nada do que ele estava pensando. Simples.

— Simples como você, só que não — acompanhei sua risada rouca e continuamos a conversa até a chegada do ônibus. Assim que ele chegou, desliguei o celular e embarquei.

Após a longa viagem cheguei em casa faminta e logo fui me livrando das roupas sem graça. Então, ao me olhar no pequeno espelho da cômoda, percebi que não era mais a mesma menina de antes, minha vida agora seguia em linha contínua e com isso as responsabilidades chegavam junto com os dias que passavam. — Anna, é hora de crescer — pensei sozinha.

— Você fica linda com essas roupas chiques! Por que insiste em se vestir feito uma mendiga? — uma criatura de um metro e oitenta, trajando um vestido colado cor-de-rosa e com a barba por fazer, me perguntou enquanto eu colocava um macacão com cara de que havia pertencido um soldado em meio a um tiroteio.

— Conchito, seu inconveniente, eu já falei para você não entrar no meu quarto desse jeito? E não está muito cedo para você estar com essa roupa? Além do mais, faça a barba antes de bancar a mãe — falei saindo de meus devaneios e arremessei um travesseiro no rosto do meu amigo, que se desviou, ofendido.

— Eu vim saber como foi a sua entrevista, desnaturada, e tentar dar um jeito nessa sua cara sem blush. E estou vestido assim porque é dia de arrumar o figurino — Conchito respondeu enquanto pegava uma escova, e, vindo em minha direção, começou a pentear os meus cabelos.

Quando me referi na entrevista com a psicóloga sobre ter uma família nada convencional eu não estava brincando. Minha avó, Sarah, é dona da boate gay mais famosa da cidade, a Êxtase Star, que conta com diversos espetáculos de entretenimento que vão desde striptease a shows com transformistas que fazem covers de divas famosas.

A casa que moro com minha avó é bastante grande e conta com quatro quartos disponíveis. Eu e ela ocupamos dois dos aposentos e os outros dois são regularmente alugados para os artistas. Muitos vem e vão, ficam alguns dias e no máximo alguns meses, mas Conchito já faz parte da família e mora conosco há cerca de cinco anos. Ele é responsável pelo show mais rentável e importante da boate e brilha todas as sextas e sábados imitando a Cher. Eu o adoro e por mais peculiar que seja ele é quase um segundo pai, mesmo tendo somente vinte e sete anos.

— Que cena linda! Agora tira esse vestido e saia daqui que eu quero falar com a minha neta — Dona Sarah serpenteou quarto adentro com a sua felicidade costumeira e empurrou um Conchito nada contente porta afora. — Me conte tudo. O que achou do lugar? Você foi bem tratada? Porque se não foi eu...

— Calma, vó, correu tudo como você queria. Acho que dessa vez vai dar certo — peguei suas mãos e as beijei respeitosamente.

— Eu sei, querida, mas eu só quero que você tenha a oportunidade de ter um futuro, de ser alguém melhor — ela pausou longamente antes de continuar. — Melhor do que eu.

— Vó... — suspirei impaciente — se eu for como você terei muito orgulho do que me tornei. A senhora sempre fez tudo por mim e sou muito grata por isso.

— E quanto a todos os problemas que você tem que enfrentar? — ela me cortou. — Os olhares de reprovação dos outros, as mães que te afastavam dos filhos. Tudo isso por minha causa... Se isso não fosse um problema para você, você não vivia metida em encrenca.

— Eu me meto em encrenca porque é necessário. Eu só faço me defender da maldade alheia. Não temos culpa da hipocrisia dos outros.

— Então está na hora de você começar a aprender a relevar algumas coisas, do contrário jamais conseguirá seguir em frente. Prometa-me que fará amizades, que não se isolará e que, principalmente, não quebrará mais o nariz de ninguém — ela ralhou, mas não conteve um leve sorriso.

— Eu prometo tentar — respondi e nos abraçamos.

— Você é igualzinha a mim quando era mais jovem — Sarah disse com nostalgia, acariciando meu rosto. — Mais até do que sua mãe. Espero que não cometa os mesmos erros.

Nós duas éramos relativamente parecidas, embora os anos nos separassem com bastante nitidez. Eu, assim como minha avó, sou dona de uma pele bem escura, cabelo castanho e ondulado, olhos de mesma cor e um sorriso que Conchito diz que é o cúmulo da ironia. Não sei o que significa, mas acho legal. Posso dizer que sou tranquila, no entanto só há uma coisa no mundo capaz de me fazer perder a paciência: quando tocam no nome de minha avó de forma errônea. Isso me transforma numa fera sem limites.

Muitos nos julgam pelo fato de minha avó não ser uma dona de casa tradicional e também pelo fato de ser dona de um estabelecimento dito pelos conservadores como "promíscuo". Minha avó pode não ter tido um passado cor-de-rosa como o de muitas mulheres que hoje se acham perfeitas, mas pelo menos nunca fez nada de errado e nem julgou os outros pelas suas escolhas. O fato de ela ter se prostituído no passado não a torna indigna de nada, do contrário, só mostra o quanto sofreu em uma época machista.

— Eu acho que não há certo e errado nessa vida, vó — disse, continuando a conversa, e ela sorriu. Ela então me deixou sozinha e fiquei pensando no quanto essa mulher merecia coisas boas. E se para isso fosse preciso que eu me comportasse como uma princesa, uma princesa eu seria. Bom, não tão exageradamente assim, mas quase isso.

*

O telefone de casa tocou dois dias depois da minha entrevista e quem atendeu foi Jeferson, o mais novo inquilino e artista da boate, que nas noites de terça e quarta faz um show de transformismo com a alcunha de Corina Dom. Ao contrário do que todos diziam, o meu lar era ordenado e cheio de pessoas boas e direitas, que só viviam uma vida diferente. E apenas aqueles que faziam shows covers e tinham uma ficha impecável eram admitidos na casa.

Após atender, Jeferson saiu gritando aos quatro ventos que eu havia sido admitida e que agora poderia terminar os estudos numa escola bacana e virar gente. Ele tagarelava feliz junto com minha avó e enquanto isso apenas achei graça do exagero dos dois.

— Eu espero que lá tenha uniforme, porque se depender dessa aí ela vai para essa escola chique de chinelo de dedo — Conchito alfinetou. — Que desgosto!

— Pode parar de drama — me sentei à mesa, gargalhando. — Eu não sou tão desleixada assim.

— É sim, tem dias que tenho vergonha de você — ele continuou e acabou recebendo um pedaço de pão na testa.

— Jeferson, quando começo? — questionei e me assustei ao perceber que estava feliz.

— Amanhã de manhã. Isso significa que dá tempo de tentarmos fazer uma reforma em você.

Não tive como escapar de uma dolorosa depilação com cera fria e Conchito quase me enfiou alvejante goela abaixo depois da quantidade de palavrões que proferi. Jeferson ficou a cargo das sobrancelhas e quase teve a mão arrancada.

— Que merda! Eu vou estudar, não ir para um concurso de miss! — gritei atirando frascos de esmalte por cima da cabeça dos dois. — Agora me deixem! — empurrei-os para fora do quarto e deitei bruscamente sobre a cama.

Havia algo errado, eu podia sentir. Era como se algo novo estivesse esperando por mim. Estava ansiosa demais e pela primeira vez preocupada com o rumo que daria a minha vida. Fechei os olhos e pensamentos aleatórios dançaram dentro de minha cabeça: uma roda gigante na feirinha, a capa do meu livro favorito, o perfume adocicado que vovó usava em ocasiões especiais e um garoto sem rosto e sem nome que desenhava super-heróis e paisagens coloridas. Com essas imagens serenas eu dormi tranquilamente, sem saber que nos dias seguintes começaria a maior aventura de minha vida.

 


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