Somente à noite escrita por Ys Wanderer


Capítulo 19
A tal magia do amor




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— Eu já disse que não sei! — berrei pela milésima vez naquele fim de tarde fatídico, enquanto emaranhava meus cabelos com ambas as mãos, feito uma maluca. — Será que dá para vocês calarem a boca, não consigo pensar se vocês não pararem de cacarejar!

— Quem cacareja é a galinha da sua avó! — Sarah deu um puxão forte na minha orelha, me fazendo gritar um sonoro “ai”, e me perguntei se essa vida atual era resultante de alguma coisa que eu havia feito em uma vida passada, tipo um carma.

Ah, sim. Acho que em minha última vida eu fui uma serial killer bebedora de sangue, e agora estou recebendo o castigo pelos pecados cometidos pela minha alma obscura...

— Como você é besta, Anna! — Conchito ignorou o fato de minha avó ter xingado a si própria e continuou a falar. — Eu no seu lugar já tinha mostrado para o bofe como se dança o “lepo lepo” — ele disse, sem nenhuma vergonha na cara, e eu decidi matá-lo com o primeiro objeto que estivesse ao meu alcance. Por sorte dele e azar meu estávamos na mesa da cozinha e a única coisa que havia perto de mim era um pote manteiga.

E, infelizmente, não encontrei um meio de cometer um crime hediondo com isso.

Respirei fundo, engoli em seco e repassei mentalmente tudo o que havia acontecido.

Por algum motivo que não sei explicar – e que agora estava fazendo eu me arrepender amargamente – eu havia contado para aqueles três malucos que eu chamava de família o que havia acontecido na biblioteca pela manhã, e agora eles estavam me pressionando para saber se eu estava mesmo tendo “alguma coisa” com Davi.

Eles queriam uma resposta objetiva.

Mas como responder algo que nem eu mesma sabia?

— Gente, vocês precisam entender que eu não sei se quero compromisso, pois para manter algo desse tipo a gente precisa ser paciente, doce, compreensiva, tranquila, meiga e todas aquelas chatices que eu não sou e nunca serei.

— E quem disse que você não é tudo isso? — vovó pôs as mãos na cintura com irritação. — Você foi paciente com o Davi esse tempo todo, é doce e compreensiva com os amigos que estão com problemas, mantém a tranquilidade quando precisamos de ajuda e sabe ser meiga para fazer a gente se sentir melhor. Você fica fazendo a durona, mas eu te conheço muito bem e sei que o seu coração é mais mole do que gelatina. Então, para de frescura e aproveita, menina! — ela aconselhou e eu até dei um sorrisinho, sabendo que ela tinha toda razão.

O problema é que eu não sabia ainda como agir diante desse meu lado mais... sentimental.

— Aproveita mesmo, pois as estatísticas apontam que há cerca de sete mulheres para cada homem, ou seja, você só tem uma chance em sete, aproximadamente 0,1428571429%, de ficar com um bofe no meio de tanta concorrência — Jeferson falou e ficamos estáticos diante de tamanha “sabedoria” matemática. Olhei para vovó, que olhou para Conchito, que olhou para mim e nós três olhamos para nossa mona “estudada” antes de cairmos na risada.

A vida era mesmo uma caixinha de surpresas.

— Eu não sabia que você tinha feito telecurso. Ou foi o supletivo? — caçoei e Jeferson revirou os olhos. — Acho que ainda há esperança para a humanidade. Quem sabe você até consiga chegar ao congresso se continuar desse jeito! Não tivemos a primeira presidente mulher? Talvez você pode ser a primeira dançarina eleita!

— Ha ha ha, engraçadinha. E por que todo mundo acha que toda bicha tem que ser burra? — Jeferson chamou nossa atenção. — Sabia que já passei em uns cinco vestibulares? E que eu até cursei um ano e meio de contabilidade antes de começar a dançar na boate? Eu só parei porque não era mesmo a minha vocação, já que eu nasci para brilhar... Mas, pare de desviar a atenção do assunto, Anna, e diga logo o que vai fazer — ele bateu palmas, trazendo o foco de volta para mim. Três pares de olhos carregados de rímel me fitaram e eu entortei a boca.

Pensei, pensei, e então respondi:

— Vou conversar com o Davi, mas vai ser apenas uma conversa entre amigos. Então, vamos ver o que acontece depois, mas não garanto nada a vocês. Eu já disse que não vou namorar e ponto final. Fim de papo.

— Quando? — vovó perguntou.

— Hoje.

— Aposto uma rodada de caipirinhas que você volta apaixonada e compromissada! — Conchito enunciou todo alegre e ele e Jeferson bateram as mãos.

— E eu aposto uma de tequila! — vovó ajudou e eu sorri.

— Ok, mas preparem-se para perder — retruquei.

Os três se deram por vencidos e eu tratei logo de pensar em um lugar aonde pudesse ir com Davi sem corrermos o risco de acabarmos “nos agarrando” antes mesmo de conversamos sobre nossa situação. Teria de ser um lugar respeitoso, calmo e...

O cemitério!

Sim, eu podia usar como pretexto o trabalho da escola para saber como seria sair com ele outra vez depois de tudo. E, bom, provavelmente não haveria a menor possibilidade de acontecer qualquer coisa no meio de tanta gente morta.

Não é?

*

Tomei um banho demorado, daqueles que nos faz meditar sobre as filosofias da vida, e me dei conta de que por mais que gostasse muito de Davi eu não sabia se conseguiria manter um compromisso. Fiquei pensando em todas as coisas pelas quais iríamos passar e se isso tudo valeria a pena...

E mal eu sabia que em breve iria descobrir o quanto valia.

Enrolei-me numa toalha e entrei no meu quarto despreocupadamente, enquanto enxugava os cabelos com outra. Abri o guarda-roupa, procurando algo para vestir, e então olhei para a parede.

Dei um grito de desespero.

Bryan Adams havia sido sequestrado.

— ONDE ELE ESTÁ? — berrei quando entrei no quarto de Conchito e ele fez pouco caso de mim. — ONDE ESTÁ? — perguntei novamente e ele por fim se levantou.

— Onde está o quê? — o maldito perguntou olhando para as unhas da mão e tive que me conter.

— Onde está o pôster gigante do Bryan Adams que eu mandei fazer? — questionei entre dentes e ele sorriu.

— Ah, sim... bom, como estamos apostando, achei que tudo bem se nós apelássemos um pouco...

— Como assim? — eu já estava com medo do que viria a seguir.

— Nós só vamos te devolver o pôster com uma condição — ele remexeu numa gaveta e me estendeu uma coisa rosa. — Que você vá falar com Davi usando isso.

Peguei o treco que ele me ofereceu e quando abri não pude evitar rir. Mas meu riso era puro sarcasmo.

— Vocês não esperam que eu use esse vestido, né? Qual é, e ainda é rosa! Sem chance — estendi o pequeno pedaço de pano de volta e Conchito revirou os olhos.

— Ou usa isso ou nunca mais vê o seu pôster. Ah, eu te contei que peguei os discos também? — ele contou e eu juro que senti sangue nos meus olhos.

— Eu. Vou. Te. Matar! — vociferei e sai correndo atrás dele. Como as pernas dele eram mais compridas, ele logo conseguiu sair do quarto e eu tive que persegui-lo pela casa, só de toalha. Parecia que o próprio Hades estava no meu corpo e a minha vontade era pegar aquela intrometida e fazer picadinho de purpurina. Mas, como ele era um filho da mãe sortudo, minha avó apareceu para apartar a briga e salvar seu couro das minhas mãos sedentas por glitter.

— Chega, vocês dois! Não quero briga na minha casa.

— Vó, eu vou acabar com ele! Manda ele me devolver o que roubou! — implorei e ela riu.

Ela riu.

Merda!

— Anna, fizemos uma aposta, não vou me meter. Aliás, quem você acha que está guardando tudo?...

Por fim, engoli a raiva, o orgulho e toda a minha dignidade e vesti aquela coisa horrível em troca de ter minhas coisas de volta.

E agora eu tinha certeza que estava pagando todos os pecados de umas duzentas vidas passadas.

— Olha, é uma garota! — Conchito gracejou quando cheguei à sala e lhes lancei meu olhar mais feroz. Se um olhar pudesse matar, juro que os três estariam torrados no mesmo instante.

— Sinto como se estivesse indo para o bordel mais próximo — disse de má vontade, tentando puxar o vestido mais para baixo. — Estou parecendo uma das meninas da Madame Soraya.

— Ah, para com isso, você está linda! — minha avó traidora elogiou, mas não liguei.

— Vocês ainda vão me pagar! — falei para eles e bati a porta, prometendo aos céus que iria me vingar da forma mais dolorosa possível. — Vocês ainda vão me pagar! — exclamei mais uma vez.

Ah, se iam!

*

Quando se espera por uma pessoa, a expectativa nos deixa mais nervosos do que nunca. Eu havia ligado para Davi e pedido que me encontrasse no lugar de sempre, mas agora estava mais do que arrependida. Tomei a decisão de que nada me abateria e que tudo voltaria a ser como antes, sem que nenhuma mudança fosse feita. Por isso, quando Davi desceu daquele táxi e ficou me olhando com aquela cara de cachorro diante do açougue tive que agir como se não estivesse completamente constrangida.

Porém, os olhos dele sobre mim estavam me deixando tão quente que foi difícil me manter consciente. Percebi então que deveria passar o constrangimento para ele.

— O que foi, por que está me olhando assim? — perguntei irritada.

— Nossa... — ele disse, me olhando de cima abaixo novamente. — Você foi abduzida? — ele brincou e cruzei os braços.

É, parece que ele agora sabia muito bem como escapar dessas situações.

Para não contar que havia sido chantageada, inventei que estava usando aquela coisa somente porque não havia outra opção. Davi deve ter imaginado alguma bobagem quando falei que “ou usava o vestido ou avental da cozinha”, pois percebi quando seu rosto ficou vermelho e ele logo desviou o assunto, querendo saber o que íamos fazer aquela noite. Fomos conversando durante todo o caminho e, antes de me dar conta, já estávamos de mãos dadas.

Perguntei-me se eu conseguiria resistir e pedi aos céus que não me deixassem ceder...

Mas, por sorte, ninguém lá em cima me ouviu.

Davi se mostrou corajoso e me fez parar de agir como se nada estivesse acontecendo. Eu havia passando o tempo inteiro fingindo que tudo estava bem, tentando achar uma brecha para escapar, mas ele me fez ver a realidade das coisas.

O que a gente estava sentindo era forte demais para ignorarmos.

Então, o fato de estarmos em um cemitério não evitou que eu o puxasse pela gola da camisa, até ficar imprensada entre ele e o mármore frio, e o beijasse como eu estava com vontade há muito tempo. Parecia que nada mais existia além de mim e Davi, e a sua respiração na minha pele deixava tudo ainda mais difícil de controlar.

E eu senti, finalmente, que qualquer coisa valia a pena por ele, que ser jovem era a melhor coisa do mundo e que eu queria sentir aquilo para sempre.

Era a tal magia do amor que todos costumavam falar.

Magia do amor? Eu disse mesmo isso?

***

“Até que enfim!”

“Aeeee, japa!”

“Olha, a Anna desencalhou!”

Olhei para o portão e Davi ficou envergonhado com a loucura dos meus amigos, me deixando com vontade de morder suas bochechas. Eu também estava constrangida, mas a minha vida era assim e a gente ia ter que se adequar um ao outro para que desse certo.

Durante o caminho inteiro até em casa nós havíamos ficado bem juntinhos e eu me sentia como se estivesse prestes a flutuar. Nós nos despedimos e ele me apertou forte, o cheiro dele ficando impregnado na minha roupa.

— Tchau. Não espere uma resposta — eu ri e ele retribuiu, sabendo que eu não precisava lhe dar uma resposta porque era desnecessário. Entrei em casa sem olhar para trás e assim que fechei a porta encostei ambas as mãos e a cabeça nela, como se para sentir o que eu havia deixado do outro lado.

Agora não tinha mais volta.

— Gente, olha isso — alguém sussurrou.

— Ela está parecendo aquelas mocinhas de filme, que ficam assim quando se despedem do seu grande amor.

— Nunca pensei que fosse viver o suficiente para presenciar essa cena — acho que foi minha vó quem disse.

— Olha para ela, nem está prestando atenção em nós.

— Estou sim — respondi e sorri para eles, que me olharam com muita curiosidade.

— Ganhamos? — perguntaram e eu dei de ombros. — Ahhh, ganhamos! — Conchito e Jeferson se abraçaram e começaram a dar pulinhos. — Ganhamos mesmo?

— Sim, ganharam — respondi e vovó vibrou.

— Isso significa que vocês estão namorando? — ela perguntou cheia de expectativa. Mordi os lábios, fechei os olhos e me lembrei de como era bom ficar ele.

— Bom, eu acho que agora sim...


 


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