Somente à noite escrita por Ys Wanderer


Capítulo 18
Eu sou um moço de família!




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Davi

Quando se passa muito tempo sozinho a solidão então acaba se tornando sua melhor amiga. Ela não te oprime, não te cobra, não te sufoca.

Mas também não deixa você ser feliz como gostaria.

Eu sempre passei a vida inteira me escondendo das pessoas, mesmo que eu acabasse chamando muita atenção na tentativa de fazer isso. Ser o esquisitão atraia olhares, mas evitava aproximações e questionamentos idiotas e me protegia de responder a inúmeras perguntas desnecessárias. No início eu sentia por isso, mas com o tempo acabei me acostumando.

Até que ela chegou e me desestruturou todo.

Eu até hoje me recordo o havia acontecido naquele corredor escuro. Quando nos esbarramos e eu percebi que ela estava perdida, Anna me pediu ajuda e foi cortês comigo de uma forma que ninguém jamais havia sido, até fez piada com o fato de estar totalmente desorientada naquele colégio. Eu não a conhecia, não sabia seu nome...

No entanto, seu rosto me atormentou de tal forma que eu tive que desenhá-lo.

E agora aquele rosto havia se materializado na minha frente das maneiras mais loucas e inacreditavelmente possíveis.

Primeiro ela me livrou de uma confusão na rua que eu nem sei como começou, e logo depois me deixou entrar em sua casa e invadir o seu espaço, mesmo que eu não a deixasse invadir o meu. Com ela eu tomei meu primeiro porre, andei por lugares onde ainda não havia andado e fui expulso de um cinema com outros amigos.

Seu cabelo esvoaçando na praia. Seu corpo quentinho no meu quando ela adormeceu em meu colo, fazendo meu coração parar ao dizer que gostava de mim. E me mostrando que ser livre era uma opção possível. Que eu não tinha motivo nenhum para me fechar e agir como se o mundo estivesse acabando. Mas, principalmente, Anna fazendo tudo isso sem desistir de mim.

Era a primeira vez na vida que eu me sentia importante.

Era a primeira vez na vida que eu beijara alguém.

Será que ela percebeu?

Quer dizer, tecnicamente, não era a primeira vez que eu beijava uma garota. Na primeira vez lembro de ter dado um selinho em uma menina que fez um trabalho escolar comigo e de não saber o que fazer depois disso. Ela então me disse para “usar a língua” e a sensação havia sido horrivelmente desconfortável. Nojenta até. Márcia – minha única amiga até o momento – foi embora semanas depois e após isso eu me fechei o suficiente para que ninguém mais se aproximasse.

Contudo, acho que uma pequena e única experiência na sétima série não se comparava ao que tinha acontecido naquela noite em que dançamos após o leilão e depois na biblioteca.

Havia sido a melhor coisa que já havia acontecido comigo.

*

— Pensando naquela garota maluquinha outra vez? — a voz envelhecida de Maria soou e só então percebi que havia caminhado até o jardim. Fui até ela, que estava sentada em um banco, e ela deu duas palmadinhas no espaço que havia ao seu lado, me convidando para sentar junto. Apenas uma luz baça nos iluminava.

— Por que a senhora acha isso? — perguntei e ela fez uma expressão sábia, a mesma que as pessoas fazem quando sabem que têm razão.

— Você anda tão mudado, tão diferente, meu filho. Nem parece mais aquele menino com cara de bocó...

— Obrigado pela consideração — fingi indignação e ela abanou as mãos, como se não tivesse nem aí. Nós sorrimos e então ela me encorajou a continuar. — Tudo bem, você me pegou. Acho que não dá pra disfarçar, não é?

— Não mesmo. Você está parecendo aqueles zumbis sem cérebro de filme que ficam olhando para o nada enquanto babam — ela zombou de mim e achei engraçado a forma como ela falava, como se não se importasse com nada. Apesar da idade, Maria tinha um jeito de ser parecido com o de Anna e pensei que se elas se conhecessem melhor provavelmente se dariam muito bem. — Você está gostando mesma dela, não é? — Maria perguntou e eu suspirei. Suspirar era completamente ridículo, mas de uns tempos para cá eu vivia fazendo isso.

Pois é, mais uma novidade pós-Anna.

— Maria, você sabe que tenho meus defeitos e principalmente meus problemas, que me limitam e me impedem de fazer muita coisa — disse e ela balançou a cabeça, concordando. — No entanto, de algum modo, a Anna parece não se importar com nada disso, entende? Na verdade, ela vive a vida de uma maneira tão... — procurei uma palavra que definisse o que eu achava, mas foi difícil achar algo — ...excêntrica — essa me pareceu mais ou menos boa — que parece não ligar para nada que seja considerado fora do normal. E é isso que eu acho mais legal nela. A Anna não se importa com quem as pessoas são ou o que elas têm. Ela simplesmente se importa com elas.

Maria então me olhou com ternura e ficou pensando no que eu disse. Porém, de repente, ela fez uma expressão triste e colocou a minha mão entre as dela com pesar. No mesmo instante senti que ela queria dizer algo que provavelmente eu não gostaria de ouvir, mas que era necessário eu escutar.

— Filho, você sabe que a sua mãe não vai gostar de saber disso, não é?

— Eu acho que já tenho idade suficiente para ter um relacionamento — devolvi.

— Não estou falando disso, Davi, de você ter ou não uma namorada. Mas sim sobre o fato de quem ela é.

— Como assim?

— Bom — Maria pigarreou. — É que pelo que você já me contou deu para perceber que a Anna não é nada... nobre.

Como assim a Anna não era nada nobre? A nobreza era uma das melhores qualidades dela. Eu já ia responder algo quando enfim me toquei que a Maria não estava falando da nobreza de espírito, pois isso não era algo com que a minha mãe se importaria. Maria estava falando de um outro tipo de nobreza.

Status.

— Ah — fiz uma careta e Maria assentiu.

— Essa menina, por melhor que seja, não tem uma família “tradicional”, pois segundo você ela mora com duas drags e a avó, que é dona de uma boate gay — Maria riu no meio da narração, provavelmente achando tudo muito divertido, pois, apesar da idade, ela não era intransigente com coisas do tipo. — Enfim, sua mãe vai ter uma reação... nem quero ver quando isso acontecer.

Minha mãe é do tipo que cultiva a premissa que todas as famílias deveriam ser completas e perfeitas, não admitindo nada de diferente. E, com certeza, ela ficaria feliz se eu aparecesse de braços dados com aquelas meninas nojentas, filhas de suas amigas peruas. Contudo, se eu aparecesse com a Anna no mínimo era teria um chilique e arrancaria os cabelos.

Droga, eu ainda não havia pensado nisso.

Porém eu já estava cansado de ter todos os aspectos da minha vida decididos por outra pessoa, de fugir por aí e ficar andando a esmo.

Agora eu tinha destino certo todas as noites.

— Eu não me importo com o que a Sandra vai pensar. Há coisas pelas quais vale a pena lutar — respondi e Maria sorriu, cúmplice. Se a minha mãe soubesse que ao invés de me vigiar, como ela ordenara, Maria estava me ajudando a escapar do castigo e sair para ver Anna durante a noite nós ficaríamos bem encrencados.

Mas é isso que os amigos de verdade fazem. Se ajudam.

De repente meu celular vibrou no meu bolso e pelo meu sorriso nem precisei dizer quem era. Afastei-me um pouco de Maria, para ter privacidade, e, com apreensão, atendi a ligação.

— Anna? Como va...

— Davi? — ela me cortou. — Onde você está? — a voz de Anna estava agitada e ela parecia ofegante.

Nenhum oi, nenhum cumprimento. Fiquei com receio de que algo tivesse acontecido.

Ou fosse acontecer.

— Em casa — respondi apreensivo. — Por quê?

— Vou estar te esperando naquela praça de sempre, perto da escola. Estou indo para lá. Agora.

Na mesma hora fiquei sem saber o que dizer, apenas senti medo de que ela, num impulso, tivesse vindo até mim para dizer o que não havia tido oportunidade de me dizer na biblioteca.

Poderia ser algo bom.

Como também poderia ser algo ruim.

— Aconteceu alguma coisa, Anna?

— Ainda não. Apenas venha e não se atrase — ela gargalhou e eu fiquei confuso.

Ouvir o som de sua risada me deixou aliviado, pois provavelmente ela estava apenas aprontando mais uma das suas. Não entendi nada do que ela queria dizer, no entanto eu confiava nela. E se fosse chamado para dar uma voltinha em Marte ao seu lado provavelmente iria feliz da vida.

— O que vamos fazer, Anna?

— Sem perguntas, Davi. Se apresse!

— Tudo bem, chego aí em alguns minutos — respondi e ela desligou depois de dizer “ok”.

— Vai sair, gatuno? — Maria perguntou quando me aproximei. — Tome cuidado. Agora corra! — ela meneou a cabeça e percebi que alguém se aproximava. Reconheci a quem pertencia a silhueta e me escondi atrás de umas plantas em uma parte escura. Maria então se levantou e começou a falar com uma roseira.

— Vou regar você amanhã, florzinha. Você vai ficar bonita e feliz...

— Maria, com quem você está falando? — ouvi minha mãe perguntar. Maria então olhou para ela surpresa, como se tivesse acabado de perceber sua presença.

— Com ninguém, dona Sandra. Estou falando com a minha amiga.

— Sua amiga?

— É, a roseira. Falar com as plantas faz elas crescerem fortes...

— Hum — ouvi minha mãe estranhar. — Onde está o Davi?

— Ele já deve estar dormindo — Maria mentiu deslavadamente e eu lembrei que teria que comprar um presente para ela urgentemente. — Pelo visto só vai acordar amanhã.

— Melhor assim, isso significa que ele entendeu que ainda está de castigo por ficar sumindo sem avisar — bufou. — Agora saia desse sereno, você não tem mais idade para ficar aqui fora — Sandra advertiu de forma rude e eu me contive. Minha mãe não conseguia ser gentil com ninguém.

Logo que as duas entraram me esgueirei até o portão e saí sem olhar para trás. Deixei todos os meus problemas dentro de casa e corri até um lugar onde pudesse tomar um táxi. O caminho até a praça me pareceu muito longo, pois eu estava morrendo de curiosidade sobre o que Anna queria com toda aquela pressa. Os livros americanos costumam usar a frase “borboletas no estômago” para indicar nervosismo, mas o que eu sentia no momento não era nada parecido. Na verdade, o que eu sentia mesmo era que as tais borboletas haviam sido trocadas por animais bem maiores e mais ferozes.

*

— Hum, você é mesmo um burguês safado, só sabe andar se for de táxi. Aposto que a primeira vez na vida que andou de ônibus foi comigo, naquele dia que fomos até a ponte. Acertei? — Anna zombou assim que desci do veículo e me aproximei dela, mas eu não consegui devolver a provocação por causa da surpresa que tive ao vê-la. — O que foi, por que você está me olhando assim? — perguntou irritada ante o meu silêncio. Então, ela finalmente percebeu que eu estava prestando atenção em um fato completamente inusitado.

Ela estava usando um vestido.

De alcinha.

Cor-de-rosa.

Bem curtinho.

— Nossa... — foi a única palavra que consegui encontrar dentro do meu cérebro em curto circuito. Percebi então que ela tinha pernas tão... — Você foi... abduzida? — perguntei para disfarçar meu embaraço e ela cruzou os braços.— Não, já sei. Sua mente foi apagada e agora tem um alien controlando o seu corpo, igualzinho naquele livro que você me mostrou — eu ri. Bom, eu não era do tipo que fazia piadas e gracinhas com os outros, mas com ela eu não tinha vergonha de ser uma pessoa mais divertida.

Depois de ter conhecido Anna eu descobrira um senso de humor e um sarcasmo que eu nem imaginava que tinha.

— Cala essa boca — Anna fechou o punho e socou meu ombro, ainda mais irritada do que antes. — É que faz mais de uma semana que está faltando água no bairro, então praticamente todas as minhas roupas estão sujas. Essa porcaria aqui foi a única coisa que achei para vestir. Bom, era isso ou eu teria que usar o avental da cozinha — ela reclamou e, apesar de todas as minhas tentativas de não fazer isso, inevitavelmente a imaginei usando somente um avental. Tive que abaixar a cabeça para que ela não percebesse que eu estava ficando vermelho.

Algumas coisas são meio difíceis de controlar.

— Então... — pigarreei — o que fazemos aqui?

— Vem comigo que depois eu te conto. Não se preocupe, não vamos andar muito — foi a única coisa que obtive.

Caminhamos juntos, sem dizer uma única palavra, até que criei coragem para olhar para ela outra vez. E embora eu tentasse ignorar e até tivesse feito piada aquele vestido estava me enlouquecendo. Anna então me pegou no flagra e sorriu.

Senti vontade de beijá-la outra vez.

— Davi, por favor, pare de me olhar desse jeito, pois eu realmente vou acabar me sentindo um alien como você falou.

— Até que você seria um alien bem bonito — deixei escapar e ela gargalhou. — Eu bem que gostaria de ser abduzido por você — brinquei para quebrar a tensão que tentávamos esconder, pois até agora ela agia como se nada tivesse acontecido. Ou acontecendo.

Eu queria logo resolver a nossa “situação’, mas não sabia como conduzir as coisas. Por isso apenas deixei tudo seguisse o seu curso naturalmente, como sempre havia acontecido. Eu adoraria ter dito algo mais legal, mas eu era uma negação no quesito saber o que realmente dizer para conquistar uma garota.

— Que cantada brega, Davi — ela zombou e não pude deixar de concordar. — Sério, foram os caras da obra que te ensinaram essa?

— Na verdade foram os mecânicos da esquina — entrei na brincadeira.

— Bem se vê. Porém, vou te dar um desconto dessa vez — ela achou graça e senti quando seus dedos entrelaçaram os meus.

É, até que havia funcionado.

Se ela havia feito de tudo para quebrar a minha casca agora era a minha vez de ser persistente.

Andamos de mãos dadas por um bom tempo e eu comecei a ficar impaciente. Então, reconheci o caminho para onde estávamos indo e não acreditei quando paramos em frente ao local.

Será que ela era maluca o suficiente para isso?

— Posso saber por que estamos na frente de um cemitério? — perguntei e, ao ver o seu sorriso travesso, fiquei com medo de ouvir a resposta.

— Você não pôde vir na excursão junto com a turma, por isso eu resolvi trazer você aqui e te explicar tudinho. Sério, vai ser muito legal.

— E por que você não me falou que queria fazer isso, Anna? — respirei várias vezes para me controlar.

— Porque você não aceitaria e daria o mesmo “piti” que está dando agora. Sério, Davi, eu percebi que você gostaria de ter vindo e achei que você poderia. Não achei justo você ter que fazer outro trabalho só porque não pôde estar aqui com a gente.

— Eu não vou entrar nesse lugar de noite — disse e ela revirou os olhos. Confesso que achei a atitude dela muito bonita e essas coisas que ela fazia por mim me deixavam ainda mais apaixonado. Porém, tinha horas que a sua coragem exagerada me fazia parecer um covarde e isso me deixava louco.

E agora? O que fazer?

— Davi, a única coisa que tem aí dentro é gente morta, isso significa que eles não vão poder fazer mal a você — ironizou. — Na verdade, o máximo que pode acontecer é o Michael Jackson aparecer e acordar todo mundo para dançar “thriller” junto com ele. Cara, se isso acontecesse eu iria adorar! — senti que ela falava sério e comecei a ponderar tudo.

Se eu não entrasse, além de estar desprezando algo que ela estava fazendo por mim ainda pagaria de medroso. A fitei e ela estava com aquele ar endiabrado, o que me fez pensar em quando na minha vida eu aprontara tanto quanto desde o dia em que nos conhecemos.

— Você sempre vence, não é? — dei de ombros e ela vibrou. — Então, como a gente entra? Vamos pular o muro? Subir em alguma árvore? Arrombar uma fechadura?

— Na verdade a gente só precisa entrar pela porta como qualquer pessoa normal — ela empurrou o portão de ferro e ele abriu depois de um rangido. — Eu percebi de manhã que ele não tem tranca — ela riu e eu me senti um bobo.

Anna fazia as coisas parecerem tão simples...

Nós entramos no cemitério e dessa vez fui eu quem procurou sua mão. Ela parecia super confortável e me perguntei como ela conseguia ser tão destemida. Contudo, o lugar era bonito e logo eu percebi que não havia mesmo motivos para ficar com medo.

— É, não é tão ruim assim — falei.

— Desde que você não esbarre com o casal das rosas amarelas...

— Casal das rosas amarelas?

— É. Ele é um veterano de guerra e ela morreu louca logo depois de ver e conversar com o espírito dele. Então, os dois se uniram após a morte — ela engrossou a voz. — Dizem por aí que eles vêm aqui e espalham rosas amarelas por toda parte. Acontece que somente quem vai morrer consegue vê-las. Ah, dizem também que, dependendo do dia, você consegue ouvir os dois vagando de mãos dadas por aí...

— Dá para parar? — ralhei e Anna se divertiu. — Isso não tá ajudando.

— Fica frio, é só uma lenda que contaram para a gente. Agora vamos ao que interessa — me puxou para ver uns túmulos e me explicou a quem pertenciam e o que essas pessoas haviam feito para serem importantes e lembradas. Ela, pacientemente, me contou tudo o que sabia e eu me diverti muito com a explicação histórica completamente distorcida dela, pois com certeza o professor não havia usado gírias, palavrões e chamado o nosso primeiro perfeito de “cara de batata”.

Eu nunca imaginaria que acharia um cemitério algo tão legal.

Anna então me levou a um lado onde só havia túmulos luxuosos e cheios de lindos anjos, mas ao invés de ficar encantada como eu ela fez uma careta de desgosto.

— Aqui descansa o desgraçado mais desgraçado do mundo! — ela exclamou, apontando para uma lápide de mármore, e eu me assustei.

— Anna, por favor, respeite os mortos!

— Eu quero mais é que esse aí queime no inferno! Espero que esteja com o traseiro sendo espetado por um garfo gigante pelo próprio capeta! — narrou, tão efusiva quando um padre fazendo um exorcismo.

— Minha nossa, o que foi que ele fez?

— Esse aí é Álvares Cunha, o barão do café. Esse infeliz era muito rico e tinha muitos escravos e era conhecido por sua crueldade com eles. Dizem que ele os fazia trabalhar debaixo de pancada do nascer do sol ao entardecer, sem descanso, e que servia apenas uma única refeição por dia, feita com restos de sua própria comida. Muitos morreram em suas mãos para que a sua fortuna aumentasse e ele ficasse ainda mais abastado, e com esse dinheiro sujo ele comprou muitas terras. Por sorte ele morreu leproso e passou o resto da vida sofrendo e definhando. Bem feito.

— Nossa, como é possível existirem pessoas tão ruins? — eu estava realmente horrorizado com a história.

— Ainda bem que o fim de todo mundo é esse aqui — ela mostrou onde estávamos e o que havia em volta. — Disso não existe barão no mundo que consiga escapar.

— Infelizmente, Anna, a nossa história não é nada bonita.

— E é por isso que a gente tem que conhecê-la. Para tentar não repetir — ela concluiu e ficou em silêncio por um bom tempo. — Acho que isso é tudo — retomou sua fala olhando de um lado para o outro, tentando se lembrar de mais alguma coisa. — Ok, vamos embora. Só Deus sabe o que acontece aqui depois da meia-noite...

— Espera — eu a cortei quando ela ia virando de costas, aproveitando a pouca coragem que eu conseguira juntar. — Anna, por que você não fala comigo?

— Mas eu estou falando com você.

— Não, eu não estou falando de falar. Estou falando de... falar. De saber o que está acontecendo agora e do que vai acontecer depois com a gente. Eu tenho a impressão de que você está fugindo e que inventou tudo isso aqui para mostrar que não se importa. Mas ao mesmo tempo eu acho que você se importa, senão não estaríamos aqui. E isso é tão confuso que eu estou ficando completamente maluco! — coloquei para fora tudo o que estava entalado e ela ficou pasma com a minha atitude.

— Nossa — ela soprou o ar, colocando as mãos na cintura. — Davi... — ela se aproximou de mim e me olhou nos olhos. — Eu... — ela pareceu pensar bastante — eu... — fiquei ansioso por uma resposta sua — eu... não faço a mínima ideia do que te dizer. Não sei o que falar, apesar de querer.

— O pior é que eu também não sei — acariciei o seu braço, subindo do cotovelo até o ombro. — Eu olho para você e... não consigo pensar em nada. Só consigo sentir. Isso é novo para mim, sabia?

— E para mim também, Davi. Para mim também — Anna sussurrou, fixando seus olhos nos meus. — É a primeira vez na vida que eu gosto de alguém como gosto de você — ela foi me puxando lentamente pela gola da camisa, até suas costas baterem numa tumba de mármore.

— Agora é você que está me seduzindo — falei e ela riu. — Você vai me beijar, não vai? — perguntei, enlaçando sua cintura, e ela apenas balançou a cabeça antes de fazer meu coração disparar.

E, embora o lugar não fosse o mais romântico do mundo, aquele foi o nosso melhor beijo.

E o melhor da minha vida até o momento.

Quando se é adolescente as emoções são mais intensas, por isso eu tive que me controlar muito para manter as coisas em um nível, digamos, respeitoso. Mas Anna não ajudou em nada me tocando daquele jeito, puxando meu cabelo e mordendo meu lábio com vontade.

Quase perdi a noção do tempo.

— Anna, é melhor irmos — falei quando nos separamos. — Está ficando muito tarde.

— É, você tem razão — ela ficou um pouco envergonhada ao perceber o estado em que estávamos. — Isso tudo é culpa sua.

— A culpa é do seu vestido, isso sim — devolvi e ela me bateu. Nós caminhamos em direção a saída e eu percebi que novamente não havíamos definido nada, por isso decidi que não esperaria por uma atitude dela. — Então, quer namorar comigo? — perguntei e Anna mordeu os lábios. Contei uns dez passos até ela falar algo.

— Namorada? Tipo, daquelas que mandam mensagem com coração, trocam presentes todo dia doze de junho e ficam chamando de “meu bem” e “chuchu”? — ela fez uma careta.

— É. Eu acho que é isso.

— Se for assim não.

— Hei, eu sou um moço de família, não posso ficar me agarrando com você no escuro toda vez que você sentir vontade — brinquei e ela gargalhou. — Eu quero compromisso sério.

— Vou pensar no seu caso — ela apertou meus dedos e eu sabia que isso significava um discreto sim.

— Quem está aí? — alguém perguntou e eu a empurrei para detrás de um túmulo. A luz de uma lanterna varreu o lugar e então escutamos um miado. — Ah, bicho feio, azarento, vá embora! — o homem atirou uma pedra no gato e ele correu para debaixo das minhas pernas. O vigia então olhou um pouco mais e depois foi embora, indo na direção oposta a que estávamos.

— Essa foi por pouco — ouvi quando ela respirou aliviada.

— Eu achei que você não tinha medo de nada — a provoquei.

— Mas e claro que eu tenho. A diferença entre mim e você e que eu disfarço melhor — ela devolveu com divertimento. — Agora vamos sair daqui.

Estar com Anna era a melhor coisa que poderia ter acontecido na minha vida, pois eu simplesmente esquecia todos os meus problemas quando estávamos juntos. Anna também havia feito eu perceber que a fotossensibilidade era uma coisa tão banal que não havia motivo nenhum para que eu me sentisse incapaz e inútil – como eu fizera a vida toda por causa da minha mãe –, e que eu não tinha motivo nenhum para me isolar de tudo e de todos.

Eu passara a vida inteira achando que tinha problemas, quando na verdade eu não tinha nenhum.

Eu só precisava ter coragem suficiente para viver.

*

— Pronto, está entregue — falei quando estávamos em frente a sua casa. O caminho todo até lá fomos conversando sobre muitas coisas, principalmente em relação as nossas famílias, e agora eu estava triste pela noite ter chegado ao fim.

— Espero que tenha aprendido alguma coisa. Tive que decorar tudo aquilo só para te dizer depois.

Eu aprendi, Anna — respondi, mas não me referia somente as informações didáticas.

— Acho que essa é a primeira vez que temos uma noite normal, não é, Davi?

— Ah, claro, com certeza. Por que passear em um cemitério à noite é algo super normal, faço isso todo dia — zombei. — Eu já me conformei com o fato de que nunca seremos como os outros.

— Eu espero mesmo que a gente nunca seja como os outros — ela me abraçou e quase nos beijamos novamente, mas fomos interrompidos por gritos de: Até que enfim!; Aeeee, japa!; Olha, a Anna desencalhou!— proferidos pelos amigos malucos que moravam junto com ela e que me deixaram muito constrangido. Anna sorriu e escondeu a cabeça em meu peito, para que eu não visse o seu rosto, que também estava envergonhado. — Davi, é melhor eu entrar, antes que eu me mate ou mate um deles. A gente se vê amanhã, ok?

— Ok — respondi e ela me deu um beijo no rosto. — Tchau — a apertei forte.

— Tchau. Não espere uma resposta — ela riu.

Fiquei ali até que ela entrasse e me perguntei se tudo era mesmo verdade, se a garota dos meus desenhos era mesmo real e palpável. Para solidificar o clichê da minha vida, pingos de chuva começaram a cair e eu deixei que eles levassem embora a última parte ruim que havia sobrado em mim.

Que levassem aquela sensação de impotência diante da vida que eu sempre havia cultivado.

Agora tudo seria diferente.

 


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Notas finais do capítulo

http://fanfiction.com.br/historia/561677/O_misterio_das_rosas_amarelas/