Somente à noite escrita por Ys Wanderer


Capítulo 12
Liberte-se




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Eu sempre me questionei sobre qual o critério que nos faz ser amigos de certas pessoas e não de outras. Muita gente passa pela nossa vida ao longo dela, mas apenas alguns poucos escolhidos ficam. Marcam. Tornam-se especiais.

Por que será?

Lembro–me da primeira vez que dei de cara com Conchito. Ele havia acabado de chegar de outra cidade e estava procurando por um quarto para alugar na casa da minha avó, além de uma chance de poder ser e mostrar quem ele realmente era. Conchito estava usando roupas apertadas, carregava uma mala gasta e tinha no olhar o medo da vida e a alegria de poder enfrentá-la. Éramos diferentes, desconhecidos.

No entanto, em nossa primeira conversa lhe contei todos os meus segredos. E ele retribuiu me falando sobre os dele também.

Certo dia um gringo meio perdido entrou na padaria em que estávamos e pediu uma indicação para poder sair dali. Quando Alex e minha avó se olharam simplesmente começaram a rir e em cinco minutos estavam conversando sobre os mais variados assuntos, como se fossem velhos amigos. Melhores amigos.

E assim seriam até hoje. E provavelmente serão para sempre.

O que eu descobri então é que nunca imaginamos quem serão nossos melhores amigos e como nós iremos os conhecer. Quando eu esbarrei com um garoto encapuzado na primeira vez em que pisei naquela escola, uma profusão de desenhos caiu no chão e eu me lembro de ter me impressionado muito com eles, me impressionado ao ponto de sonhar com as cores. Mas eu pensei que nunca mais na vida veria aquele garoto. O garoto dos desenhos.

O garoto que agora caminhava lentamente ao meu lado.

— Por que você está me olhando? — Davi perguntou e só então me dei conta de que eu estava olhando fixamente para ele.

— Nada — respondi, disfarçando. Lembrei então que Conchito havia dito que eu não sabia pensar dentro da cabeça e por isso prometi a mim mesma que naquele instante iria aprender a manter as coisas que pensava dentro de mim. Porque olhar para uma pessoa enquanto se pensa algo sobre ela não é algo agradável depois que ela percebe. — É que você não usa mais óculos escuros o tempo todo — continuei.

— Pois é — Davi coçou a cabeça. — Parei de usar depois que alguém me disse para eu parar de esconder os olhos.

— Muito sábia essa pessoa — eu gracejei porque estava me referindo a mim, já que quem havia dito essas palavras a ele havia sido eu. — E o que mais ela disse?

— Que eu também ficava mais bonito sem eles — ele continuou e lembrei que eu havia dito isso também.

Porcaria.

— Bom, isso já me faz duvidar um pouco da sabedoria dessa pessoa. Mas não se preocupe, Davi, pois eu sou sua amiga e acredito em beleza interior com toda a certeza — dei duas batidinhas de leve em seu ombro e ele balançou a cabeça, fingindo que estava triste por isso.

— Agradeço a sua imensa consideração.

— Não há de quê.

Infelizmente o céu não estava muito bonito naquele dia e não havia lua, por isso estava até um pouco escuro o caminho. Davi olhou de um lado para o outro e colocou as mãos nos bolsos com preocupação.

— Anna, existe uma linha tênue entre a covardia e a prudência, sabia? Bom, o que eu quero dizer é que eu acho que aqui é muito isolado.

— Você está sendo covarde ou prudente? — debochei.

— Acho que estou sendo covardemente prudente. Aqui me parece perigoso.

— Sei disso. E é por isso então que eu trouxe o Anderson Silva.

— Quem?

— Ele — apontei para o taco que eu estava carregando e em seguida o apoiei no ombro, exatamente como os homens das cavernas carregavam os seus. — Se alguma coisa acontecer é só você correr que eu começo a rodar isso aqui. Garanto que amanhã o que não vai faltar é bandido indo ao dentista consertar a boca.

— Eu corro e você bate? — ele repetiu. — Nossa, isso feriu e muito a minha masculinidade. Espere aí um momento enquanto eu vou procurar um buraco para enfiar a minha cara depois dessa.

— Você mesmo vai ferir a sua masculinidade se continuar com esse drama — reclamei. — Qual o problema de ter uma guarda costas furiosa carregando uma arma letal com o nome de um lutador?

— Nenhum. Nenhum se ela tivesse mais do que um metro e meio — Davi colocou a mão abaixo da cintura e deu leves palmadinhas como se tivesse batendo na cabeça de uma criança imaginária.

— Sabia, garoto, que se eu enterrar o seu corpo na areia ninguém vai achar?

— Tudo bem. Agora imagine a manchete: Jovem Davi Mendes some após sair com um indivíduo desconhecido e de alta periculosidade — ele mesmo narrou como se fosse um repórter de um daqueles programas sensacionalistas. Era ridiculamente engraçado.

— Alta periculosidade? Adorei ser chamada assim — falei e logo depois parei. — Espera aí, seu sobrenome é Mendes?

— É. Por quê?

— Fala sério — comecei a rir. — Achei que você tinha um sobrenome mais oriental.

— Tipo o quê?

— Tipo Naruto, Goku, yakissoba, Jackie Chan...

— Hei, eu posso ter essa cara, mas sou bem brasileiro. Herdei os olhos de alguns parentes distantes.

— É... até que combinam com você — eu disse.

— Isso quer dizer que você acha eles bonitos?

— Não, isso quer dizer que eu estou sendo legal — respondi e ele revirou os olhos com divertimento. — Mas não se acostume.

Andamos pela calçada que levava à praia por vários minutos e o vento soprava suave, bagunçando os nossos cabelos. Faltava pouco para alcançarmos a areia e assim que chegamos eu estendi as mãos para frente, apresentando o horizonte.

— Bom, é isso — disse e imediatamente tirei meus sapatos. Davi fez o mesmo e caminhamos vagarosamente pela areia, sentindo-a engolir nossos pés, até chegarmos quase próximos da água.

— É perfeito — Davi disse quando sentamos no chão.

— Pena que está escuro. Não dá para ver muita coisa.

— Mas dá para ver o suficiente — ele continuou com os olhos fixos nas ondas. — É estranho sentir isso.

— Sentir o quê?

— Essa paz. Eu nem lembrava mais como era essa sensação.

— Eu te entendo. Também não tenho muita paz com todo aquele barulho em casa, pois sempre tem alguém gritando — comentei e ele permaneceu calado. Percebi então que ele não deveria estar falando desse tipo de paz, o silêncio. Provavelmente ele estava falando da paz da alma. — Davi... — chamei e ele me olhou. — Me fale de você.

— Falar o quê?

— Qualquer coisa. Apenas... fale.

— Bom... — ele hesitou, fazendo círculos na areia. — Eu sou alguém que tem uma vida bem complicada.

— Por quê? — insisti.

— Porque não existe coisa pior do que ser cobrado o tempo inteiro. Sabe, eu não sou perfeito e não tenho como ser. E esse é o problema.

— Davi, ninguém é perfeito. Não se sinta obrigado a ser.

— Explica isso para a minha mãe — ele soltou e fez uma expressão de mágoa.

— Vocês não se dão bem? — questionei e ele não respondeu, apenas abaixou a cabeça. — Tudo bem, não diga nada que não queira. Mas se quiser conversar saiba que pode confiar em mim.

— Eu sei que posso — devolveu. — Só ainda não sei como começar a falar com alguém sobre essas coisas. Sobre mim.

— Bom, para começar, diga então uma coisa bem esquisita.

— Que tipo de coisa esquisita? — Davi perguntou e senti que ao tirar o foco do assunto ele ficou visivelmente mais confortável.

— Tipo... sabia que quando eu tinha cinco anos eu quase matei um gato intoxicado?

— Sério? — ele arqueou as sobrancelhas. — Não brinca! Como foi isso?

— Eu queria ter um gato igualzinho ao Garfield, mas ao invés disso minha avó me deu um gato preto. Então, eu peguei descolorante de cabelo e passei no pelo do bichano para que ele ficasse amarelo. Resultado: o coitado lambeu a mistura de pó com oxigenada e quase acabou morrendo. Eu fiquei tão desesperada que desmaiei de susto, e a minha avó me deixou de castigo por mais de dois meses.

— Nossa, você não deve ter sido uma criança fácil. E o que mais você quase matou?

— Hei — soquei o ombro dele com força. — Falando assim até parece que eu sou uma serial killer de gatos.

— Claro que não, mas nunca deixarei você chegar perto de gato nenhum. Vai que você tem uma recaída? — ele falou, com seriedade, mas acabamos gargalhando alto.

— Você tem razão. Então, se eu começar a sentir vontade de matar alguma coisa vou descontar em garotos chatos. O que você acha?

— Por mim tudo bem, eu sou legal mesmo — ele se defendeu.

E tinha toda razão.

— Davi, agora é a sua vez.

— Eu nunca matei nenhum animal.

— Sério — reclamei risonha.

— Bom... — ele pensou um pouco. — Eu só comi algodão doce uma vez na vida.

— Não acredito.

— É verdade.

— Por quê?

— Sei lá, me dá uma agonia olhar para aquele troço de açúcar. Sinto a mesma sensação como se eu tivesse com a boca cheia de terra.

— Nossa, isso sim é realmente estranho.

— Não tanto quanto quase matar gatos intoxicados.

— Eu só tinha 5 anos... —  me defendi e rimos juntos novamente.

Depois disso ficamos apenas ouvindo o silêncio e a sua música noturna, sem sentirmos necessidade de dizer mais nada naquele momento. A paz realmente era maravilhosa e eu comecei a me sentir sonolenta. Deitei-me na areia fria e coloquei ambas as mãos atrás da cabeça, fechando os olhos e sentindo o nada.

— A minha mãe é o tipo de pessoa que sempre sonhou em ter uma família perfeita — Davi começou a narrar e eu prestei atenção. — Ela queria ter mais filhos, mas acabou tendo complicações no meu parto e ficou impedida de me dar irmãos. Como filho único, ela queria que eu fosse o exemplo e o melhor em tudo, então imagine o desespero dela ao saber que eu era “defeituoso”.

— Davi, você não é defeituoso — articulei enquanto sentava ao seu lado.

— Só que é assim que ela faz eu me sentir. Ela não tinha um filho para lhe trazer medalhas do futebol para casa, ela não tinha uma criança perfeita para lhe dar orgulho. Só tinha um garoto fraco que vivia indo constantemente ao médico. Acho que na verdade ela queria um boneco de louça para exibir, isso sim.

— Não diga isso, ela é sua mãe.

— Nem me lembre disso — ele suspirou com amargura.

— Deve ter sido difícil para ela enfrentar uma situação como essa.

— E para mim não foi? Sabe, a Sandra podia ter feito mais por mim do que me trancar em casa.

— Você nunca parou para pensar que ela estava talvez tentando te proteger? Às vezes as pessoas erram na intenção de fazer a coisa certa — tentei amenizar.

— A gente nunca conversou sobre nada, Anna, nunca trocamos uma palavra de carinho. E por causa disso nos tornamos dois completos estranhos que vivem na mesma casa — ele falou baixinho. — Acho que essa é uma rachadura que nunca vai ser consertada.

Aquilo me doeu um pouco, pois naquele momento eu vi o quanto Davi se importava com isso. Seu coração era bom, mas ele nunca ia se entregar a nada se não resolvesse tudo aquilo que o machucava.

— Davi... — chamei e ele não me olhou. — Davi, olha para mim — insisti e ele enfim me fitou. — Sei que tudo isso é muito duro e muito triste, e eu realmente sinto muito mesmo. De coração. Mas se infelizmente a sua história tomou esse rumo torto só você pode colocá-la de volta nos eixos.

— Como? — fungou.

— Você não é mais aquela criança frágil, agora já é um jovem de quase dezessete anos. É forte, um grande amigo e uma pessoa muito boa e muito legal. Você se afasta das pessoas achando que todas são iguais a sua mãe e que vão te julgar, mas o que eu percebi é que todos aqueles que te conheceram, mesmo que pouco, gostam muito de você. Davi, está na hora de você se libertar disso. Talvez um dia a história com a sua mãe se resolva, mas até lá você não pode viver assim. Viva a sua vida em função de você mesmo, não dos outros. Liberte-se.

Davi ficou me olhando falar, calado, e quando terminei ele respirou fundo e fechou os olhos. Eu não sabia o que ele estava pensando e por isso fiquei apreensiva.

— Isso não é o que eu esperava ouvir — ele por fim disse depois de um tempo.

— Sei disso. Geralmente quando reclamamos de algo para uma pessoa esperamos que ela mostre piedade e chore junto com a gente. Isso é o que você espera. Porém, amigos de verdade não dizem o que você espera, mas o que você precisa. E o que eu acho é que chega de autopiedade na sua vida, chega de ver o mundo por detrás dessa cortina grossa. Então, você tem duas escolhas: ou você continua a viver assim, carregado de tristeza e achando que nada vai dar certo, ou você começa a chutar o balde e a viver do modo que te faça feliz.

— Do jeito que você fala até parece que a culpa disso tudo é minha...

— Não, não é — coloquei a mão em seu ombro e deixei que ele sentisse a firmeza de minhas palavras. — A culpa não é sua, mas a escolha sim. Sabe, Davi, você reclama que as pessoas não estão fazendo muito por você. Tudo bem, isso é verdade e eu entendo. Mas e você? O que você tem feito por si mesmo?

Confesso que fiquei com medo de tê-lo magoado, no entanto essa era a única maneira de fazer com que ele percebesse que, apesar de tudo, só nós mesmos podemos mudar o rumo das nossas vidas.

— Me desculpe se fui dura com você — suavizei.

— Tudo bem — Davi deu um riso triste. — Não é a primeira vez que você me dá um choque de realidade.

— Está chateado?

— Não — ele colocou a mão no ombro, por cima da minha, e a apertou. — Só que é meio difícil eu conseguir mudar alguma coisa a essa altura do campeonato.

— Você fala como se fosse um velho de oitenta anos — eu disse e Davi sorriu. Era bom saber que podíamos conversar qualquer coisa sem medo. — Nunca é tarde para nada. Se aproxime das pessoas, faça mais amigos. Não espere o perdão da sua mãe, perdoe-a primeiro. Talvez se você der o primeiro passo ela enfim perceba o quanto você é especial.

Uma onda bateu na costa. O barulho do vento era tranquilo.

E houve alívio em seus olhos, como se um grande peso houvesse sido tirado de suas costas.

— Obrigado, Anna. Realmente eu não esperava ouvir isso. Mas foi exatamente o que eu precisava — Davi disse quando nos levantamos da areia e então me surpreendi quando ele me deu um abraço.

Era um abraço fraternal, entre amigos, mas eu não fazia ideia do que fazer. Eu ainda estava de olhos arregalados quando percebi que minhas mãos estavam abaixadas, por isso as depositei – completamente constrangida — em suas costas e dei leves batidinhas, exatamente como fazemos quando consolamos alguém. Ele apertou ainda mais o abraço e então acabei apoiando a minha cabeça no ombro dele, o que me trouxe uma sensação gostosa. Ele tinha um cheirinho suave de shampoo e...

— Tá bom, tá bom, já chega — eu desfiz rapidamente o abraço. — Vamos parar com essa “melosidade” antes que uma chuva de pétalas caia sobre nós e a gente coloque vestidos cor-de-rosa para o chá das cinco — completei e ele sorriu. — Desse jeito você acaba com a minha reputação de bad-girl.

— Anna, você é mesmo uma piada. Fico feliz em ter te conhecido.

— Eu também fico feliz em me conhecer. Agora vem comigo — convidei enquanto pegava meu sapato e o taco que estavam no chão. Nós andamos até uma espécie de balsa, presa com troncos grossos ao chão e que se estendia pela água, e que era usada para o desembarque de barcos e por pessoas que iam até ali para pescar. Parecia ser o lugar perfeito para...

— Você sabe nadar? — perguntei.

— Na verdade não.

— Tudo bem, aqui é raso mesmo.

— Ai, meu Deus, você não vai fazer isso! — ele exclamou quando viu a minha intenção.

— O que você acha? Até parece que a gente vai ter todo esse trabalho para vir até aqui e não vamos entrar.

— Sem chance, não vou molhar a minha roupa. Como eu vou entrar em casa todo ensopado?

— A gente não vai molhar a roupa porque vamos tirá-las antes de entrar, óbvio.

— Eu não vou ficar pelado! — ele se espantou.

— Quem falou em ficar pelado aqui, seu tarado! — devolvi. Mesmo estando quase escuro deu para perceber que a cara dele ficou mais vermelha do que um tomate. — Você não usa roupa de baixo não?

— Hã... hum — Davi resmungou, abriu a boca e depois fechou. — É... hã...

— Ah, tudo bem, faz o que você quiser — disse enquanto tirava a minha roupa e ficava só com a roupa de baixo. Ele imediatamente virou de costas com todo recato, e eu pulei na água. — Isso é patético, entra logo! — gritei.

— Nem morto!

— Eu juro que não olho para você.

— Negativo.

— Davi, deixa de frescura. Vou virar de costas, olha.

Virei-me e fiquei esperando, com a água mais ou menos na altura do pescoço. Ouvi um farfalhar de roupas e logo o barulho de que ele enfim havia cedido.

— Posso olhar? — perguntei e ninguém respondeu. — Davi? — eu olhei para trás, para a água, e não havia ninguém. — Ai, caramba, Davi, cadê você? — procurei e nada dele aparecer. Meu coração começou a disparar só de imaginar o pior.

— Bu! — alguém gritou atrás de mim, me espantando.

Como reflexo, meti a mão na cara dele.

Com toda a força.

— Ai, Anna, calma, eu estava brincado — Davi reclamou. — Não precisava me bater!

— Desculpa — eu disse sem graça enquanto massageava o lado do rosto dele que eu havia estapeado. — Você me assustou, não foi intencional. — Comecei a rir porque a situação era muito tosca. — Foi mal mesmo. Melhor? — continuei passando a mão suavemente no rosto dele e só então me dei conta da nossa proximidade. O cabelo dele caia molhado sobre o rosto e isso me pareceu muito... sexy.

What?

— Melhor irmos embora, está tarde — eu cortei.

— Você tem razão — ele aquiesceu. — Primeiro as damas — disse e então se virou.

Saí da água e me vesti apressadamente, avisando-o quando estava pronta. Fiquei de costas e esperei até ele subir na plataforma.

Juro, juro que tentei resistir, mas não evitei dar uma olhadinha.

— Huumm, vermelha. E até que você é bem fortinho.

— Anna! — ele se espantou, colocando a camisa em frente ao corpo como uma virgem da ordem dos pés descalços.

Maldição! Maldição! Maldição! Maldição!

— Desculpa — eu gargalhei. Era engraçado ver que enquanto eu não tinha um pingo de vergonha na cara Davi parecia ser tão recatado quanto um padre. — Não vou mais olhar.

— Agora você já viu! — ele reclamou.

— Qual é, esqueceu que eu convivo com travestis e strippers em uma boate gay? Isso significa que eu já vi muita gente pelada na vida. E você nem tava pelado — continuei a rir, até que ele se colocou ao meu lado, já vestido.

— Acho que esse é o pior dia da minha vida — Davi disse, mas eu vi que não era sério.

— Então espero que tenhamos dias tão ruins quanto esse.

De repente, um barulho ensurdecedor ecoou e me assustei, pois não sabia de cara do que se tratava. Logo outras explosões começaram e o céu escuro se encheu de cores, me fazendo perceber, para o meu alívio, que eram apenas fogos de artifício.

— O que será que está acontecendo ali? — Davi questionou ao ver que os fogos vinham de barcos que estavam se aproximando da praia. Algumas pessoas foram se aproximando da areia enquanto cantavam, um espetáculo simples e bonito de se ver.

— Cara, você deu muita sorte hoje. Essa é a procissão das ondas.

— Procissão das ondas?

— Sim. Os pescadores e suas famílias fazem isso para agradecer a natureza pelo alimento e pedirem por coisas boas. Vamos deixar nossas coisas aqui enquanto vamos até lá — convidei guardando nossos sapatos e outras coisas num canto escuro.

Andamos até onde as pessoas estavam e vimos que todas elas cantavam e carregavam flores e velas acesas. Uma senhora idosa se aproximou de nós e, sorrindo, colocou um único colar de flores em torno de nós dois.

— Que lindo casal — ela disse. Tentamos explicar que não éramos um casal, entretanto a idosa não deixou. Ela então nos entregou duas velas, uma azul e uma branca, contudo elas estavam grudadas. A mulher pediu para que as separássemos e assim fizemos, mas cada uma ficou com fragmentos da outra. — Vejam, meus jovens, que ao separar essas velas pedaços de uma permaneceram grudados na outra. Essa vela nunca mais será totalmente azul depois de ter contato com a branca e vice versa. Assim é a nossa vida quando conhecemos outras pessoas, pois sempre levamos um pedacinho de cada uma delas com a gente. Agora, acendam essas velas juntos e façam um pedido em voz alta. Porém, vocês não podem desejar nada para si mesmos, mas sim um para o outro — ela instruiu. Olhei para Davi e ele riu sem mostrar os dentes. Eu também sorri.

A idosa estendeu a chama da sua vela e nós dois acendemos as nossas ao mesmo tempo. Ela então seguiu o seu caminho e ficamos ali, pensando no que dizer.

— Eu não sei se acredito nisso — Davi falou enquanto olhava para o fogo que crepitava pequenino em sua vela azul.

— Pois devia. Coisas boas sempre podem acontecer. Então, o que você deseja para mim? — quis saber.

— Eu desejo que... desejo que você sempre tenha o privilégio de desfrutar da minha companhia — ele disse e eu respirei fundo. Analisei seu desejo e entendi que na verdade era ele quem desejava ficar próximo a mim.

E eu gostei disso.

— Bom, Davi, eu desejo então...

Parei e pensei no que eu mais gostaria naquele momento.

— Desejo então que todos os seus desejos se realizem.

 

 


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