Somente à noite escrita por Ys Wanderer


Capítulo 1
Leoa


Notas iniciais do capítulo

História criada com intuito de me divertir e divertir vocês, queridos leitores. Boa leitura!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/580013/chapter/1

Seis e quarenta da manhã. As portas do colégio ainda estavam fechadas e me praguejei quando percebi que havia chegado cedo demais. Eu estava mudando de escola mais uma vez naquele ano e só pela fachada do prédio já cheguei à conclusão de que não me adaptaria ali. Com certeza logo o lugar estaria cheio de gente de nariz em pé, e se tem uma coisa na vida de que eu tenho raiva é de gente rica. Riqueza e hipocrisia são quase sinônimas para mim.

Contudo, refletindo mais uma vez, percebi que fazer a vontade de minha avó era a coisa certa a fazer. Ela só não quer que eu tenha o mesmo destino incerto que ela e minha mãe tiveram e por isso faz o possível para que eu possa um dia almejar um futuro decente. Então, depois de muitas ligações e uma certa dose de favores cobrados e pedidos, Dona Sarah conseguira para mim uma entrevista no renomado Colégio Bechara, e agora apenas algumas perguntas e uma falsa impressão me separavam de uma bolsa de estudos.

— Por você, vó — suspirei, arrumei o rabo de cavalo perfeitamente alinhado e alisei blusa e saia. Não via a hora de poder voltar a usar minhas roupas surradas e frescas, mas como vovó dizia: a primeira impressão é a que fica, e por causa disso tinha sido obrigada a vestir uma roupa cafona e com cores mais tristes que um dia de chuva. "Rico gosta de nude, minha filha", a memória de fala de vovó me fez sorrir, pois eu retrucara dizendo que sabia muito bem qual tipo exato de nude os ricos realmente gostavam e acabei levando um beliscão pelo desaforo.

Como a entrevista estava marcada para as sete e meia e não havia nada para fazer resolvi aproveitar e conhecer o colégio enquanto ele ainda estava vazio. Aproximei-me do portão principal e cumprimentei o vigia sonolento.

— Bom dia  — saudei e o pobre homem, que devia ter uns 80 anos, olhou de um lado para o outro, acordando de um cochilo. —  Como vai?

— A senhorita tá falando comigo?

— Estou sim, ué.

— Nossa, moça, que susto — ele respondeu, com a mão no coração, e eu fiquei com dó dele. Ele parecia um senhor bondoso e de bom coração.

— Então, seu Márcio — repeti o nome escrito no crachá dele —, parece que em breve eu serei aluna daqui. Posso entrar?

O vigia sorriu.

— Ah, hoje “é” as entrevistas para as bolsas. A senhorita veio fazer? Mas ainda não tem ninguém na secretaria, está muito cedo.

— Me chame de Anna — corrigi, sendo polida para ver se o homem me deixava entrar logo. — Eu vim para a entrevista, mas acabei me adiantando demais e não tenho nada para fazer. Eu poderia entrar e conhecer logo o colégio?

O homem abriu o portão de bom grado e agradeci enquanto observava bem o lugar. Paredes bem pintadas, com acabamento de primeira e algumas estátuas assustadoras de ícones históricos, feitas em bronze, davam boas vindas a quem entrava. Senti-me mais como se estivesse em um museu do que em uma escola particular, as paredes centenárias cobertas de quadros de alunos ilustres e as luminárias com certeza datavam pelo menos umas cinco décadas.

Pavoroso.

Segui em frente e tentei imaginar como seriam meus dias ali, provavelmente a rede de informações me delataria e em pouco tempo todos saberiam da minha vida. Decidi que tentaria não ligar, como todas as vezes, mas torci para que ninguém se metesse em meu caminho e eu fosse obrigada a quebrar alguns narizes, como em algumas vezes. Se fosse expulsa de mais uma escola minha avó me mataria com requintes de crueldade e me ressuscitaria para matar-me de novo, de novo e de novo. Não que eu tivesse culpa por ter nascido com um pavio relativamente curto.

Eu era Anna Fernandes e as Fernandes são conhecidas justamente por isso.

Eu ainda devaneava quando esbarrei em alguém e me assustei, papéis de todos os tamanhos se espalhando pelo chão. Senti um pouco de medo ao ver a figura ali parada, escondida embaixo de um capuz e usando óculos escuros em um ambiente quase sem luz, e me preparei para a briga, achando que era um assaltante ou coisa do tipo. Mas antes que eu fizesse alguma coisa o rapaz se desculpou.

— Desculpe, eu não vi você. Ninguém costuma andar por aqui tão cedo — ele disse e percebi pelo seu tom de voz o quanto era tímido.

— Tudo bem — respondi ainda aflita, ajudando-o a recolher os papéis, e nós ficamos em silêncio. — Então, você pode me... — comecei a falar, mas parei assim que percebi o conteúdo deles. — Nossa, que desenhos incríveis! — deixei escapar ao observar melhor os traços de uma paisagem bucólica e colorida retratados no papel grosso. Os outros eram rostos de super heróis e havia até alguns desenhos abstratos, mas maravilhosamente bem feitos. — São mesmo muito bons!

— Ah, obrigado — o garoto respondeu ao receber os papéis quando os estendi. — Eu agradeço.

— É sério. Você é muito talentoso.

O garoto então riu e vi que ele deveria ser muito bonito. Estranhei o fato de ele estar completamente vestido daquela maneira estranha, mas em um lugar como aquele isso deveria ser normal. O relógio na parede bateu e só então me dei conta de que faltavam apenas quinze minutos para a minha entrevista. Uma horda de alunos começou a entrar e imediatamente me senti deslocada.

— Droga, está na hora. — Resmunguei para mim mesma. — Você poderia me dizer onde fica a sala do diretor, por gentileza?

— Claro, claro. Siga no corredor e depois vire à esquerda, à direita e por fim à esquerda novamente. Entre na terceira porta e uma vez lá dentro bata na segunda porta ao lado da estante — ele indicou.

— E no final desse labirinto eu encontro um Minotauro? — brinquei, pois não havia entendido nada do que ele havia dito. Eu era péssima no quesito “encontrar locais escondidos através de referências”. — Não faço ideia de como chegar lá, mas obrigada pela informação.

— Por nada — o garoto sorriu novamente e logo saiu apressado, deixando-me em meio à profusão de alunos.

No caminho até a sala do diretor eu observei melhor o que iria enfrentar pela frente. Parecia que eu estava em um filme da sessão da tarde: havia garotas loiras acompanhadas de seu séquito de peitudas plastificadas, garotos com caras de idiota e uniformes esportivos, e também uma turminha cheia de aparates tecnológicos, todos zanzando para lá e para cá como se para defender seus espaços. Todos com olhares superiores me analisavam de cima a baixo.

Eu sorri irônica, estava em uma selva.

Mas eu sabia mais do que nunca agir como uma leoa.

 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Somente à noite" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.