Efêmero escrita por Virginia Storm


Capítulo 1
Eterna Mariposa


Notas iniciais do capítulo

História intensamente inspirada nas músicas "Longe do Meu Lado" e "Mil Pedaços", ambas da banda Legião Urbana.



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“As gotas de água que caem do céu são lágrimas, minha pequena. Lágrimas de tristeza. Dizem que são vertidas dos olhos dos próprios anjos”.

Olhando para a janela, imaginou se assim seria. Havia certa melancolia no modo em que a fina torrente manava do céu enegrecido. Cada gota trepidava como pesados diamantes ao cair da vastidão azul e cinza, para amainar no chão duro como uma fruta madura que despenca de uma árvore.

O pêndulo do relógio a alertava cada segundo. O tic tac a lembrava a pulsação incansável de uma chaga aberta. Levantou-se.

Pegou um pano de feltro ilustrado com estrelas amarelas. Limpou cada móvel, cada livro, cada objeto. O porta-retratos de moldura extravagante estava ali, sobre a pilha de livros de Dostoiévski. Vislumbrava seu sorriso frágil, os olhos ambíguos e vazios. E ao seu lado estava ele, — a ferida se agitou em protesto — os lábios macios esticados sobre os dentes, o brilhoso cabelo encaracolado e o braço longo e lindo gentilmente pousado em seus ombros ossudos. Desviou os olhos. Não queria pensar nele — a ferida ardeu.

Foi até a cozinha tentando não pensar no único e solitário prato que habitava na mesa. Seu coração ardeu, como se o próprio sangue o corroesse por dentro. Seria assim agora? Sempre que comesse à mesa se lembraria.

Tentou não lembrar. Mas fracassou, no banheiro notou o xampu para bebês e lembrou-se. Na varanda viu a bicicleta — velha e nunca usada — recostada na parede e sua garganta se fechou como se um punho se trincasse em seu pescoço.

Entrou no quarto de olhos fechados. Era inútil. Ele — a ferida queimou — estava em toda parte. Ele era a decoração, o teto e o cheiro. Era seu lar e sua essência.

Mas era teimosa. Tão teimosa! Permaneceu lá, deleitando-se na lancinante agonia que era lembrar. Varreu e limpou, arrumou e reajeitou. Atingiu seu objetivo: cansou-se. As pernas e braços jaziam moles, sôfregos. Estava suja.

O banho foi longo, quente no início e frio quando os minutos se tornaram horas. Não se importou. A sujeira não era visível em sua pele dura e rígida, mas sentia-se torpe e asquerosa, imunda e impossível de ser lavada. Por quê?

Enxugou-se, a toalha nova arranhando ao invés de secar. Não se importou. Colocou um vestido leve e transparente. O contrário de sua alma. Passou o perfume que mais gostava, mas o cheiro que sentia era o do desprezo. Desprezo e cólera.

Sentou-se no sofá e tentou pensar no nada. Era difícil. Deitou-se quando dois longos minutos se passaram. Virou-se de ponta a cabeça quando mais minutos se foram. Cochilou e acordou. Duas vezes. Em seus sonhos céleres via-se sozinha, só ela e as mariposas. As duas opacas e pouco apreciadas. Esperava-se que virassem borboletas belas e admiráveis, mas por culpa do destino não era assim. As mariposas eram como ela. Ela era como as mariposas.

Acordou num átimo, ofegante e suada. Tocou a pele úmida enojada e aliviada. Prendeu os cabelos longos que colavam-se na testa e pescoço. Limpou a pele grudenta na almofada que viera de Paris. Secou o canto dos olhos que minavam o mais quente dos líquidos. Sentia o sabor salgado delas. Suas companheiras devotas. Perguntava-se quando elas iriam embora. Como todos os outros se foram.

A campainha tocou. Soando como uma última badalada. Sentiu o estômago gelado como o mais frio dos gelos. E era doloroso como a mais dolorosa das dores. Era ele — maldita ferida! . O coração bateu forte, galopando. Pesado. Como se trezentos gramas pesassem agora trezentos quilos. Puxando a carne fibrosa e pulsante para baixo. Expandindo-se além do normal. Oprimindo o estômago. O que era? Ânsia? Medo? Não sabia.

Avançou até a porta com furor, regozijando-se de um súbito arrojo que não soube descrever. Mas no momento que tocou o metal frio, tudo se esvaiu. A coragem súbita e dúbia e o ar que lhe enchiam os pulmões. Os dedos finos, esquálidos e feridos apertavam a maçaneta com uma veemência que se equiparava a um soldado segurando uma granada sem pino. A pele delicada estava friamente úmida, como a parte exterior de algo que tirara do congelador.

Mas não poderia adiar para sempre. Não. Não podia. Então, resgatando todo o ar que podia, escancarou a porta de uma vez só. Ele estava lá, certamente. Estagnado, inócuo, airoso como uma flor orvalhada durante a manhã fria. Não era o seu.

Ele não falou, só olhou a profundamente. Os olhos castanhos como a terra do seu canteiro de tulipas. Cílios garbosos, alongados, negros e espessos. Não era o seu. Os lábios finos e rubros, dentes tortos e reluzentes, pêlos grossos brotando embaixo dos lábios e nariz. Lembrava-se da textura, da sensação que tinha ao tocar sua pele fina, sua pele íntima.

O abraçou. Sentiu o calor acolhê-la. Quente, aconchegante. Não era o seu; Olhou para o rosto, amplo, maravilhoso. Seu anjo-homem. Seu Adônis. Não era o seu. O sorriso formoso, franco, fresco. Não era o seu.

Não mais.

Quando separou os lábios — unidos pelo tempo que estiveram fechados — ressequidos e sem vida, a voz simplesmente não saiu. Agoniada, estava sufocada pelas palavras que tanto evitara. As palavras costumavam galgar em sua língua. Desesperadas. Ansiando serem proferidas. Podia ouvir o som da própria voz, gritando, gemendo, sussurrando em seu ouvido, em sua mente, em seu cerne.

Diga.

Só diga. Por favor.

Não quero.

Não suporto.

Não mais.

Ele ficou confuso. Seu anjo. Pegou seus ombros, fechando os dedos longos e fortes em seus braços. Sentiu-se suja. Desviou o olhar, mas os dedos novamente tocaram sua pele, segurando o queixo. Mantendo-o sob a visão perscrutadora. Tudo que não queria. Mas não evitou. Olhou no fundo da íris brilhosa e rútila. Devia aquilo a ele, devia muito mais. Mas era a única coisa que podia lhe dar. Aquilo e nada mais. Então sussurrou. Numa voz que mais parecia um suspiro:

— Precisamos conversar. — E seu coração se esmagou sobre si mesmo quando percebeu que mais um anjo se amotinaria para banhar a terra com lágrimas frias.


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Notas finais do capítulo

Aguardo feedbacks!