Malkuth escrita por Lilith, Sr Paganini


Capítulo 9
O cavaleiro prateado


Notas iniciais do capítulo

Dessa vez demoramos muito mesmo pra postar o oitavo capítulo, mas bem... ele está aqui.
Esperamos que gostem!

Lilith e Paganini



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/575903/chapter/9

Os três andavam lado a lado no frio congelante.

Athame, Rupert e Cycero caminhavam cansados em direção às cinco grandes construções, determinados e pensativos sobre o que breve fariam. Mantinham-se em silêncio, pois não havia nada que pudessem dizer. O que deveria acontecer, aconteceria em pouco tempo, e nada mudaria isso.

Haviam chegado frente às construções.

O local se resumia em uma grande praça antiga onde, tranquila, a poeira repousava nas pedras que cobriam o chão. Nele, estavam depositados quatro grandes obeliscos idênticos e simétricos e, exatamente no centro, a imensa e reluzente pirâmide. Algumas poucas casas encontravam-se ao redor da praça, no entanto pareciam abandonadas. Nem sequer uma única pessoa rondava o local. Grandes e pesadas correntes acobreadas circundavam o lugar.

–Há algum tempo, uma pequena parte do reino morava por aqui, inclusive eu, juntamente com minha falecida esposa e minha filha Judith, até então muito pequena. A minha primeira taberna foi aqui... – disse, apontando para uma construção antiga de madeira que parecia estar caindo aos pedaços. – Só que então... tivemos que partir. Todos nós. A igreja nos pôs para longe deste local e, até hoje, ninguém vem até aqui.

–Rupert, perdoe-me a pergunta... mas, a sua mulher; o que a levou a falecer?

–Uma grave doença... durante o pior inverno que tivemos. Ela simplesmente não resistiu... – O homem baixou seus olhos com pesar, enquanto continuavam a seguir em direção às construções.

Chegaram enfim frente aos monumentos que os aguardavam silenciosos.

Os três ficaram imóveis ao admirar aquela grandiosidade. Pouco tempo depois, Athame despertou de seu entorpecimento momentâneo e pôs-se a rodear lentamente cada um dos quatro imensos obeliscos.

–O que faz aí? – Cycero aproximou-se dela sem entender, enquanto Athame observava com cautela a superfície de pedra lisa das torres, uma de cada vez.

–Procuro sinais. Algo que indique por onde devemos começar. Um nome, um símbolo...

–Sim, sim... isto faz muito sentido. – Rupert aproximou-se também e começou a acompanhar os movimentos da garota.

Após algum tempo de busca, os três já estavam exacerbadamente cansados, sedentos e famintos, levando em conta a largura de cada obelisco, a distância entre eles e o fato de serem quatro. Athame e Cycero sentaram-se no chão, exaustos, enquanto Rupert ainda examinava minuciosamente com a mão em seu queixo.

–Acho que encontrei algo...

Athame e Cycero levantaram vagarosamente e seguiram para onde Rupert estava, parado, examinando a pedra lisa que compunha a construção. Ao chegarem perto, notaram uma irregularidade na superfície plana.

Algo como um desenho.

–Mas... o que significa isto? – Athame aproximou-se apertando os olhos tentando distinguir a figura que se destacava em alto relevo na superfície lisa da torre. Passou levemente a ponta dos dedos sobre a irregularidade ali esculpida.

Uma face entalhada com o intuito de representar o divino. O grande deus cristão. Seus lábios estavam entreabertos, e deles saía uma espécie de sopro.

–O sopro divino... – Rupert murmurou pensativo. –O sopro de deus que deu a vida ao primeiro homem... – Repentinamente, o homem pôs-se a contornar novamente os quatro obeliscos observando com bastante atenção cada um deles. Parou de supetão no quarto e disse, em êxtase. – Exato! Isso faz mesmo muito sentido.

–O que faz tanto sentindo, Rupert? – Athame caminhou até ele. – Diga!

–Veja... – O homem segurou o pulso da garota e puxou-a consigo enquanto caminhava de volta para o segundo obelisco. Apontou para um ponto da superfície lisa. – Cristo caminhando sobre a superfície das águas. – Correram para o que seria o suposto terceiro monumento. – Consegue distinguir as quatro figuras corpóreas dentro das chamas de fogo?

–"E estes três homens, Sadraque, Mesaque e Abednego, caíram atados dentro da fornalha de fogo ardente. Então o rei Nabucodonozor se espantou, e se levantou depressa; falou, dizendo aos seus conselheiros: Não lançamos nós, dentro do fogo, três homens atados? Responderam e disseram ao rei: É verdade, ó rei. Respondeu, dizendo: Eu, porém, vejo quatro homens soltos, que andam passeando dentro do fogo sem sofrer nenhum dano; e o aspecto do quarto, é semelhante ao filho de deus. " – Uma voz masculina repleta de desdém recitou tais versículos inesperadamente. Athame e Rupert viraram-se e viram que Cycero os acompanhava; ambos olhavam para ele com um misto de surpresa e descrença. – O quê? Certo, não precisam ficar tão surpresos. Caso eu não tenha mencionado, sempre fui à igreja. E bem... algumas coisas realmente ficam gravadas na memória.

–Que seja... – Rupert fez um movimento com uma das mãos dispensando explicações e caminhou até o último obelisco. Apontou para uma figura belamente esculpida exatamente no mesmo ponto onde as outras se encontravam, cada uma em seus três monumentos. A figura mostrava uma frondosa árvore, cheia de folhas e frutos. – "Pois será como a árvore plantada junto a ribeiros de águas, a qual dá o seu fruto no seu tempo; as suas folhas não cairão, e tudo quanto fizer prosperará. ".

–Os quatro elementos... – Athame balbuciou quase inaudivelmente. – Mas... onde se encontra o espírito?

Os três olharam então para a imensa construção que se encontrava no centro dos quatro obeliscos.

A grande pirâmide era reluzente, mesmo em meio à densa neblina.

O exuberante monumento possuía um pesado portão, que estava fechado.

–É ali que está escondida a estrela? – Athame perguntou.

–Exato. Logo abaixo.

–E devemos entrar pelos portões...?

–De maneira alguma. Ali dentro reúnem-se os líderes do reino. Se notarem nossa presença aqui, seremos mortos.

–Então por onde entraremos? Não vejo nenhuma outra entrada.

–Quem sabe se você evocar os elementos abrindo um círculo, uma resolução nos apareça... você pode tentar?

–Posso. Mas... e se essa não for a resposta? As figuras são cristãs, não pagãs. E se nada ocorrer?

–As figuras são cristãs porque os líderes quiseram que fossem cristãs. Mas e se as mãos que as talharam não foram mãos cristãs? Esses elementos aqui dispostos nessa ordem... isso não pode ser mera coincidência ou obra do acaso. – Rupert voltou a franzir o cenho. – E se eles foram deixados aqui propositalmente por alguém que quisesse deixar um auxílio sem que pudesse chamar atenção dos cristãos? Pense bem...

–Tem certeza?

–Apenas tente.

Athame voltou então para o primeiro obelisco que indicava o ar. Pôs-se à frente dele, fechou os olhos e respirou fundo. Sua cabeça dava voltas e voltas, e em meio ao medo e a confusão que sentia, uma voz suave pairou em sua mente.

Filha, não tenha medo. Eu estou contigo. Disse que estaria, e sempre estarei.

–Ar. Tu que és vida, que és fôlego e frescor; peço que venha até nós e nos agracie com sua presença.

Uma brisa leve soprou seus cabelos para longe de seu rosto e lhe acariciou as maçãs do rosto. Caminhou rapidamente até o obelisco da água.

–Água. Tu que lavas e refrigera. Que refresca e dá de beber a quem tem sede; peço que venha até nós e agracie-nos com a sua presença.

O cheiro de mar impregnou a atmosfera do local e uma sensação de refrescância tomou conta do seu corpo. Andou até o monumento do fogo.

–Fogo. Tu que esquentas os corpos nas noites frias e que iluminas a escuridão; peço que venha até nós e nos agracie com a sua presença.

Seu corpo sentiu um leve calor. Não um calor incômodo, mas uma onda quente que confortava seu corpo. Correu então para o último obelisco. O da terra.

–Terra. Tu que fortalece todos os seres que sobre ti repousam e que alimenta a todos; peço que venha até nós e nos agracie com a sua presença.

Sentiu cheiro de terra molhada, grama cortada e flores. Passou para o último dos cinco elementos; o espírito. Correndo para a pirâmide reluzente, postou-se frente a ela e sussurrou:

–Espírito. Tu que nos preenche, que nos conforta e que nos transporta cada vez mais para perto da nossa amada deusa; peço que venha até nós e nos agracie com a sua presença.

Sentiu uma imensa felicidade. Seu coração palpitava com rapidez e sentia como se pudesse flutuar.

Abriu então os olhos.

Nada aconteceu.

Athame olhou para os lados e não conseguiu ver nada que pudesse leva-los para baixo, onde a estrela os aguardava.

Desapontada, pôs-se a andar em torno da pirâmide, deixando Rupert e Cycero onde antes estavam. Caminhou durante alguns minutos, sem nenhum sinal de alguma passagem ou portal, até que se viu tombando para dentro da terra. Após alguns segundos, sentiu o firme solo sob suas costas e deixou-se desfalecer.

***

O local era calmo; a paz reinava ali.

As pétalas de frésias repousavam tranquilas na grama vívida e macia, e um belo som de harpa reverberava pelo ar.

A brisa cálida e acolhedora acariciava a face da garota que seguia em frente, procurando a bela mulher de cabelos louros que havia visto ali noutra ocasião. Com as mãos frágeis, ela afastava de seu caminho os ramos de flores e folhas que pendiam à sua frente, caídas do firmamento infindo. Os vincos em sua testa tornavam-se mais visíveis à medida que ela esquadrinhava o ambiente à procura da grande deusa. Não a encontrara. Onde ela estaria? Havia a mãe se esquecido de sua filha?

Avistou ao longe o que aparentava ser um lindo riacho e andou até ele, a longas passadas. Ao chegar à sua margem, pôs-se a olha-lo com atenção. Notou que sua aparência estava diferente; um tanto etérea. No entanto, não deu muita importância a isto. O tempo que passara ali, contemplando a beleza e a vivacidade do córrego, observando suas águas cristalinas e imaginando como seria agradável bebê-las, deixou-a demasiadamente sedenta. Abaixou-se ante o manancial e, com as mãos em conchas, pôs-se a levar o líquido puro até os seus lábios. O frescor fluiu pela sua garganta seca e quente, trazendo conforto.

–Sinto-me feliz por saber que se sente bem em meu lar, filha minha.

A garota de longos cabelos escuros sobressaltou-se ao ouvir a doce voz que pairou no ar. Ao olhar para trás, viu a linda face já familiar e, logo, lançou-se para um abraço. Os braços esguios e macios da deusa retribuíram calorosamente o gesto.

–Que bom que veio até mim. Venha, sente-se aqui ao meu lado. Devemos conversar sobre algumas coisas.

A deusa tomou uma das mãos da garota e, puxando-a gentilmente para junto de si, sentou-se frente ao lago, seus pés brincando na margem de águas transparentes.

–Você irá passar por muitas dificuldades a partir de agora, Athame. Tantas que você não pode imaginar. – A deusa suspirou por uns instantes. – Mas deverá permanecer firme. Eu sei que pode.

–E se eu não conseguir? Sou muito fraca e....

–Eu não a teria escolhido para tal tarefa se verdadeiramente não fosse capaz de exercê-la.

–Mas são tão grandes os desafios... às vezes temo que eu não consiga.

–Você deve conservar uma coisa em sua mente; eu estarei com você. – A deusa acariciou os cabelos da garota com ternura. – Sempre.

E assim, uma densa e alva névoa tomou conta de sua mente.

***

–Athame... Athame...? –A garota sentiu seu corpo ser levemente balançado, enquanto ouviu seu nome ser cantado por uma suplicante voz masculina. ­ –Athame... por favor, acorde... – Uma forte dor impregnou sua cabeça enquanto ela, lentamente, abriu os olhos. –Athame...? Rupert! Ela acordou... venha aqui.

–Só um instante...

Um estreito facho de luz, vindo da abertura acima, iluminava fracamente o local escuro, permitindo que a garota percebesse a silhueta humana que a observava.

–Você está bem?

–Um pouco... minha cabeça dói.

–Garotos, venham aqui. Acho que encontrei algo.

Athame levantou-se com dificuldade, devido à tontura que sentia; Cycero ajudou-a a ficar de pé e ambos andaram até o lugar onde Rupert estava parado, exibindo uma expressão pensativa.

–Isto parece uma passagem... –Disse o jovem, ao examinar mais de perto o caminho estreito e curvo que se estendia a sua frente. – Deveríamos passar?

–É a única opção que nos resta agora. Este é o nosso único caminho.

–É muito estreito. Só se pode passar um por vez, e com extremo cuidado. Sabe-se lá o que pode estar nos aguardando no fim desse caminho...

–Eu serei a primeira.

–Com certeza não. Eu irei primeiro. –Cycero deu um passo à frente. – Não permitirei que se machuque outra vez.

–Cycero, por favor. Você mais do que ninguém sabe que eu posso ir primeiro. Além do mais, não preciso que me proteja de coisa alguma. Sei bem onde piso.

–Faça o que desejar, então. –Cycero abriu espaço para que a garota passasse e fez-lhe uma mesura carregada de sarcasmo.

Athame caminhou lentamente até o início da passagem e prendeu a respiração enquanto se esgueirava pelo estreito caminho. Foram longos segundos de aperto que terminaram assim que ela sentiu seu corpo livre, em um espaço largo e desconhecido. Deu longos passos enquanto admirava com incredulidade o que estava à sua frente.

O grande salão era claro e limpo, como um lugar divino. A grande aura que se estendia sob aquele local era perceptível e transmitia a eles uma sensação de paz. Era quase impossível de acreditar que aquele local era subterrâneo. Possuía quatro cantos; em cada um, havia uma espécie de cripta, nas quais repousavam frios pedestais de mármore, vazios e silenciosos. Archotes iluminavam cada pequeno espaço do salão e, de alguma forma, ainda assim o clima permanecia fresco. Cada cripta, também possuía algumas palavras talhadas na superfície da estrutura. No centro, uma abertura unida a um lance de escadas, levava ao que seria a parte mais inferior do grande losango, e na extremidade oposta à que a garota estava, uma porta dourada permanecia fechada.

–Minha nossa... – disse Cycero com admiração, ao adentrar no salão.

Athame andou até a primeira cripta e analisou a estrutura ali parada enquanto Rupert tentava, com dificuldade, cruzar a estreita passagem. Aproximou seu rosto da superfície plana e leu o que ali estava escrito.

– "A lâmina para decapitar meus inimigos".

– "O cabo para empunhar e governar" – Cycero leu o próximo.

– Exatamente como eu imaginei. – disse Rupert enquanto mancava com uma das mãos na coluna, em direção à próxima cripta– Em cada um desses pedestais está cada uma das cinco partes da estrela. Ou deveriam estar.

– "O pomo para que se ajoelhem perante meu ser" – Disse o jovem lendo rapidamente as palavras escritas no terceiro pedestal e se adiantando para o quarto– "A guarda-mão para ligar o poder à força". Onde está o quinto pedestal?

O trio então olhou para a abertura no chão que levava mais a fundo.

– Deixe que eu desço. – Cycero desceu a escada e então encontrou-se em um pequeno espaço circular com um pedestal. Não havia tochas ali, mas o pequeno local era perfeitamente iluminado por toda a luz que vinha de cima. Ele então leu as palavras talhadas no mármore liso. – "Que Brilhe a estrela de ouro". Que brilhe a estrela de ouro? Qual estrela de ouro? Não tem nada aqui além dessas pedras esquisitas...

– Rupert, o que está acontecendo? Onde está a estrela?

– Só existe uma explicação. Alguém roubou.

– Mas como? É quase impossível alguém saber desta arma, quanto mais chegar aqui e rouba-la.

Rupert agachou-se e pegou algo que havia passado despercebido até então, enquanto Cycero emergia novamente no salão.

Quase impossível. – Passou os olhos pelo pedaço de pergaminho – Parece que alguém fez questão de nos deixar um recado gentil.

– O que diz aí? – Athame aproximou-se com impaciência.

– "Não importa o que vocês façam; este lugar é meu. Sempre foi. E brevemente será legitimamente, mesmo que isso custe vidas. Muitas vidas. Chegou a hora do meu reinado.".

Os três ficaram em silêncio por alguns segundos enquanto uma estranha confusão de vozes e batidas de botas no chão se aproximavam lentamente do salão.

Atônitos, prenderam a respiração quando a porta dourada se abriu revelando a figura de cinco altos e fortes soldados.

– Acho que vocês vão querer dar uma explicação ao nosso Soleus.

– Quem é esse? – Athame cochichou para Rupert.

– É o homem que pode nos matar.

Os soldados então agarraram os três e os arrastaram porta a fora.

***

Como sempre, chovia em Malkuth.

A fina chuva caía lentamente e repousava sobre as pedras do chão e sobre os telhados das casinhas tortas e amontoadas do reino.

Dentro do casebre, na apertada viela, Ernestine preparava um café no fogão, enquanto Elisabeth estava sentada na mesa, mordendo um pão duro e balançando as pequenas pernas.

As duas haviam passado a noite no chão, no canto da sala, mesmo após John ter insistido muito para que dormissem na cama. Ele estivera disposto a dormir no chão, porém Ernestine não queria que ela e sua filha se deitassem na mesma cama onde provavelmente se deitaram várias prostitutas. Não queria deitar-se nos mesmos lençóis onde tinha sido vítima de tantas agressões.

Acordara junto com o primeiro raio de sol, pois seu plano era fugir com sua filha de volta para a fazenda de sua mãe. Deixaria John aos seus próprios cuidados; não se importava mais com ele. Nunca se importara, na verdade. Sempre havia sofrido ao lado dele... a liberdade era agora algo possível e alcançável, e em seus pensamentos felizes, a face de John nunca estava presente.

Quando pegou a pequena Elisabeth no colo para que pudessem deixar o casebre, a porta foi posta abaixo por dois soldados que invadiram a casa de modo furtivo. As duas ficaram paralisadas enquanto os homens se aproximavam.

– Procuramos pelo ex-capitão John Hilder. Onde ele está?

Nenhuma palavra.

– Vamos! Eu ordeno que você nos diga onde ele está!

Ernestine o olhava com fúria, mas uma fúria silenciosa. Colocou sua filha no chão e pediu que ela saísse do lugar. Ela assim fez, passando pela porta e aguardando na chuva.

– Por que você mesmo não o procura, imbecil? Deseja que eu também faça o seu trabalho?

O homem, enfurecido, deu-lhe um forte tapa no rosto.

– Vasculhe a casa e encontre aquele imprestável. – Disse ao seu parceiro. Pegou com força no braço da mulher– E você, vadia, fique sabendo que eu poderia acabar com você agora mesmo. Poderia matar rapidamente você e essa sua filha imunda. Mas não. Hoje não. Dessa vez vim apenas entregar um pequeno recado para o estúpido John Hilder. Mas considere-se avisada; cruze o meu caminho uma vez mais, e saiba: irá sofrer como nunca sofreu.

O outro homem voltou para o ambiente, dessa vez trazendo John semi acordado e ainda embriagado pelo braço, o mesmo sem entender nada.

– Ora, ora... não seria o grande John Hilder? Por favor, você não passa de um bêbado imundo e desprezível... faremos um grande favor ao reino, acabando com você aqui e agora. Você deve pagar pelo modo como agiu perante o reino e perante o nosso senhor misericordioso. E quanto a você – Virou-se mais uma vez para a mulher– saia logo daqui enquanto a minha clemência está transbordando. Que o nosso senhor esteja com você e com a sua filha. – Disse, fazendo o sinal da cruz na testa de Ernestine.

– Quero que você e o seu senhor vão ao inferno! – Deu um safanão na mão do homem a sua frente.

– O que disse? – Falou pondo a mão na espada.

– Ernestine... pegue Elisabeth e fuja... agora. Por favor.

A mulher então lançou um último olhar de ódio para o soldado e saiu do casebre. Virou-se mais uma vez e teve uma última visão de John caído no chão, levando socos e pontapés.

Encontrou sua filha, encostada em um celeiro velho, se protegendo da chuva que havia ficado mais forte. Propôs à pequena, que esperassem a chuva enfraquecer escondidas ali no fétido celeiro. Jurou que logo iriam embora.

A chuva havia passado. Uma espécie de lama pegajosa cobria o chão.

Mãe e filha saíram de mãos dadas de seu momentâneo esconderijo e seguiram em direção à saída do reino.

Elisabeth então, parou abruptamente e franziu as sobrancelhas. Deu meia volta e voltou correndo para onde estavam antes. Não o celeiro; o casebre. Ernestine se viu obrigada a seguir a filha, sem entender o que se passava em sua mente.

Ao entrar na casa, se deparou com uma cena inacreditável.

Elisabeth, dotada de toda a sua piedade, pureza e inocência infantil, estava agachada, velando o seu pai, John Hilder, e acariciando-lhe os cabelos, como outrora fizera com sua pequena boneca puída. Ele estava desacordado e muito machucado; mas não estava morto.

– Temos que leva-lo, mamãe. Não podemos deixa-lo aqui sozinho...

– Elisabeth, você não entende...

– É... eu não entendo. – Olhou para sua mãe, implorando com os olhos. Estes, inundados de lágrimas.

– Filha... não vale a pena.

– Vale. – Ela se levantou com determinação. – Ele é meu pai. E ele me salvou. É minha vez de salva-lo.

Ernestine soube que não teria argumentos que fizessem a garotinha desistir de seu plano, então limitou-se apenas a abaixar-se, levantar o homem caído e leva-lo para fora do casebre, apoiando-o em seu ombro.

Alguns instantes depois, o homem recuperou a consciência, mas não disse uma só palavra. Permaneceu em silêncio até o fim da estrada. Mancando muito e com a ajuda de Ernestine, conseguiu completar o trajeto que durou um certo tempo, até a fazenda de lavandas que há tempos não visitara.

Elisabeth se apressou a bater na porta, à espera da recepção de Elysia, sua terna avó. Mas ela não veio. Ernestine então, tomou a dianteira e abriu a porta.

A casa estava envolvida numa completa desordem. As cadeiras, antes organizadas, estavam partidas no chão. Livros, ervas e potes, haviam sido derrubados violentamente por alguém. Alguém que não havia sido Elysia; Ernestine sabia disso.

– Mãe?

Nenhuma voz além da sua ecoou na casa.

Ela entrou no lugar, vasculhando os quartos e procurando a bondosa velhinha, esperando que ela aparecesse e lhe oferecesse um chá, mas tudo que encontrava era bagunça e sinais de violência.

– Mãe...

Correu então para o quintal, esperando que ela estivesse no quartinho dos fundos, onde guardava seus livros preciosos e entre outras coisas de grande importância. Esperava que ela estivesse sentada em sua poltrona, lendo calmamente um de seus livros de capa de couro.

No entanto, quando abriu a porta, não encontrou nada além de livros e mais livros.

Sentou-se, cansada, em uma das cadeiras que ficava frente à mesa e chorou como a tempos não chorava. Chorou de cansaço, de medo, de desesperança e horror. Chorou de saudade de sua filha, que não fazia ideia de onde estava, e da sua mãe, que não estava ali esperando por ela. "O que aconteceu, deusa? Onde minha querida mãe está? Por favor... seja lá onde ela esteja... fique com ela...".

Levantou então a cabeça, e percebeu que uma folha de pergaminho repousava sobre a madeira lisa da mesa ao seu lado. Uma fina camada de poeira já cobria o papel.

Ela então, tomou-o em suas mãos e leu as seguintes palavras:

"Minha filha,

Você já deve ter percebido que eu não estou mais aqui. Não se preocupe; ninguém me machucou. A deusa me informou sobre o perigo que eu estaria correndo ao continuar aí, então decidi ir embora e me esconder um pouco, então você não terá notícias minhas tão brevemente, mas saiba que estou bem. Provavelmente está uma bagunça, pois devem ter ido me procurar aí. Mas não se preocupe de forma alguma; não chegaram a tempo de me encontrar. Ela disse também que ainda precisa de mim, e que devo me preservar o máximo possível. Mas a casa está segura para vocês; façam bom uso dela.

Por falar nisso, John também é bem vindo aqui. Sei que não nos damos bem e que eu sempre cultivei maus sentimentos por ele, mas não é mais hora pra isso. Sei que no fundo, ele é um bom homem. Mas infelizmente possui uma triste história, que justifica seus atos. Você pode não saber disso agora, mas com o tempo, descobrirá.

Um último lembrete. Você pode não precisar dele, mas ele precisa de você. Muito.

Sua mãe."

***

O lugar era quente. O mais quente ao qual se poderia ir.

Para qualquer lugar que se ousasse olhar, o que se via era apenas areia e mais areia.

O homem de cabelos negros olhava para o sol que se estendia acima de si e pensou que nem mesmo este, era tão grande e poderoso quanto ele.

Durante todo esse tempo, tinha guardado consigo todo o ódio e sede de vingança que havia acumulado dentro de si. Mas em breve, venceria de uma vez por todas. Ela havia prometido.

Ela.

A linda mulher dos longos cabelos negros que ele encontrou nas redondezas do grande deserto de Daath há alguns anos, quando perdeu a batalha e fugiu ferido. Teria morrido se não fosse por ela.

Ela o havia dado esperanças de uma grande vitória. Pediu que esperasse por um tempo – e admitia que por momentos a paciência lhe faltava e o sangue lhe subia a cabeça, pois ansiava o poder que acreditava ser completamente seu, mas sempre calava-se e obedecia, afinal devia-lhe a vida–, mas agora havia lhe dado o aval para que ele pusesse seu plano de vingança em prática.

Tinha feito tudo como ela havia lhe instruído; subiu em seu dragão à noite, voou até Geburah, entrou na parte subterrânea da pirâmide, por trás – através de um buraco que ele cavou–, pegou as cinco partes da arma tão peculiar, chamada estrela. Pediu então que voltasse para Daath e esperasse por novas ordens. E então, ali estava ele. Andando de um lado para o outro, impaciente, aguardando o momento em que ela entraria na tenda e o mandaria abraçar sua vitória.

Mas ele decidiu então, que não iria mais esperar. Ele iria atrás dela. De um jeito ou de outro, aquele seria o dia em que ele, Tésio II, tomaria seu lugar de direito. Ninguém ficaria em seu caminho. Ninguém.

Saiu de sua tenda e desceu as rochas que levavam ao ponto mais profundo do abismo. Enquanto caminhava até onde poderia encontrá-la, imagens de um passado distante vinham à sua mente. Como seu irmão era sempre o preferido de seus pais, que o tratavam com carinhos e mimos, quanto a ele só restavam as broncas. Como o seu querido irmão era o mais cortejado, era quem possuía mais amigos, quanto a ele só sobrava malmente a si mesmo para conversar. Desde cedo, o trono estava destinado ao seu irmão. O mais alto, mais forte, que lutava melhor.

Mas ele sempre fora o mais inteligente. O que lera mais livros. O que mais entendia de estratégias de batalha e de governo. Sempre esteve sentado aos pés de seu pai e dos homens do conselho quando estes se reuniam, e aprendia absolutamente tudo que poderia aprender, enquanto seu nobre irmão saía com os amigos para beber em tabernas, caçar e violar mulheres. Sempre esteve óbvio que, mesmo sendo o mais novo, ele era o mais apto a governar.

Ouvira várias notícias de que o reino estava decaindo. A pobreza, a fome e a sede governavam agora. Se pegou pensando várias vezes que se ele estivesse à frente de Geburah, nada disso teria acontecido. E estava convencido disso. Brevemente ele estaria sentado no trono, no centro daquela construção megalomaníaca. Seu plano era invadir Geburah de surpresa, render o Soleus Césio II, seu irmão, e mata-lo, tomando assim, o seu trono.

Havia chegado aonde costumava encontrá-la às vezes. Um lugar semelhante a uma gruta, entre as pedras, mas menos profunda. Ele entrou, porém logo parou de caminhar, pois notou que mais alguém estava ali com ela. Escondeu-se atrás de uma pedra e pôs-se a escutar a conversa.

– O imbecil ainda está aguardando as minhas ordens. Esses humanos são tão frágeis que basta uma pequena ajuda, e eles já lhe entregam suas vidas como gratidão. Colocam suas pobres vidas à disposição, e então nós podemos fazer o que quisermos com elas.

– Ora, ora Aradia... nunca imaginei que você tivesse esse lado tão... tão amargo. – Disse um homem, que já vira vagando por ali e conversando com ela algumas vezes, embora nunca lhe tenha dirigido a palavra. Olhar para ele, o causava calafrios, mesmo que este fosse de uma beleza extrema. Possuía um rosto simpático emoldurado por cabelos negros e sedosos, que contrastavam com sua pele e suas roupas, extremamente brancas. A sua voz era grave e melódica. Ao passo que era suave, se metamorfoseava atingindo um tom assustador.

– Deixe de ser hipócrita, Lúcifer. Você sabe muito bem que é a pessoa mais doentia da qual eu já ouvi falar.

– Mais respeito com o seu velho pai – O homem disse, sarcasticamente. – Eu sou um ser incrível, diga-se de passagem. Você puxou a beleza da sua mãe... – Aproximou-se, acariciando-lhe o maxilar–... Mas possui todo o meu sadismo e minha acidez. Gosto disso. Embora nunca tenha visto todo esse seu ódio se manifestar em algum outro momento. O que houve, pequena estrela?

– Você sabe. Não entendo porque ela insiste em mandar aquela humana nojenta fazer um trabalho que, perceptivelmente, não está ao seu alcance. Você não consegue ver? Eu já tentei salvar essa raça da outra vez e veja... nada adiantou. Como ela pode achar que uma humana fraca pode fazer o que eu não fiz?

– Ah sim, sua mãe. Aradia, eu lhe peço mais uma vez que não ligue para o que ela diz. Está louca há tempos. Não fala nada com nada. Não suportou perder. E eu não perco mais o meu tempo com ela...

– O problema, Lúcifer, é que de alguma forma misteriosa ela realmente os ama e não vai desistir de salva-los. Ela não entende que eles merecem sofrer. Esse é o destino deles.

– Esplêndido. Mas vamos direto ao assunto, afinal não vim até aqui pra falar sobre seres humanos. Que assunto mais desinteressante... – O homem revirou os olhos e balançou uma das mãos, dispensando o assunto. – Onde está a estrela?

– Ela está com o humano.

– Você é burra? Deixou que a tolice tomasse conta do seu cérebro? Como pode deixar uma arma divina por tanto tempo na mão de um verme humano? – O homem, visivelmente furioso, avançou para cima da garota, segurando o seu punho, com força.

– Ele não vai fazer nada. Não sem as minhas ordens. Eu já tenho a estrela aqui em Daath e não tive de mover um único dedo para isso. Ele fez todo o trabalho. E na hora certa eu irei trazê-la de volta para as minhas mãos. Nem que eu tenha que mata-lo para isso. Não vai ser nenhum esforço, aliás. Não preciso mais dele pra mais nada.

– Ouça o meu conselho, Aradia. Recupere essa arma o mais rápido possível. Os humanos são fracos, mas podem ser muito astutos quando querem. Você não pode correr esse risco.

Tésio não acreditou no que tinha ouvido.

Havia acreditado e confiado naquela mulher e posto sua vida em suas mãos, quando ela só o estava usando para fins pessoais. Ela pretendia mata-lo. Decidiu que não ficaria ali nem mais um segundo. Muito menos a estrela.

Saiu de lá o mais depressa que pôde e alcançou rapidamente a sua tenda. Entrou ofegante, e se apressou a abrir um baú antigo, cravejado de joias. Dentro da arca, a espada repousava fria. Ele tomou-a em suas mãos e saiu no mesmo instante dali.

O ar quente e seco entrou com dificuldade em seus pulmões fatigados enquanto ele soltava as correntes que prendiam o dragão, negro como a noite. A sua armadura prateada brilhava ao ser tocada pelos fortes raios solares.

– Vamos, Mugo. É chegada a hora.

Montou então no dorso do dragão, com grande facilidade, enquanto colocava o elmo prateado em sua cabeça.

"É chegada a hora."


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

E então, gostaram? Deixe seu review com as suas críticas e opiniões. São de extrema importância para nós.

Lilith.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Malkuth" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.