Malkuth escrita por Lilith, Sr Paganini


Capítulo 8
Desespero


Notas iniciais do capítulo

Desculpem mais uma vez pela demora :c
Estava defendendo a minha tese de doutorado em astrofísica e não tive tempo de postar o capítulo, mas ele está aqui agora. Espero que realmente gostem e continuem acompanhando :3
P.S.: Tentaremos postar com mais frequência daqui pra frente.
Lilith e Paganini



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O dia frio e nublado já havia amanhecido, no entanto a taberna ainda não havia sido aberta. Rupert encontrava-se ainda em seu quarto. Juntamente aos jovens Athame, Cycero e, sua filha, Judith, observava de forma desconfiada a garota que repousava em uma das camas. Havia chegado por volta das duas horas da madrugada, atordoada e com ferimentos graves. Parecia estar fugindo de alguém; ou de algo, mais especificamente. Desacordada, foi posta sobre uma das camas e logo seus ferimentos graves foram gentilmente tratados por Judith. Um grande furo em seu ombro direito parecia ter sido causado pelo disparo proposital e certeiro de uma flecha, que já havia sido retirada dali de forma brutal. Sua armadura acobreada coberta de fissuras fora retirada de seu corpo magro, deixando à mostra uma fina blusa branca masculina bastante suja e ensanguentada que logo foi retirada também. Ataduras cobriam então o ombro da garota e a sua testa. Repousava em um sono tranquilo enrolada em cobertores velhos, porém limpos.

Às seis horas a garota mexeu-se pela primeira vez desde que deitara. Ao acordar, foi possuída por um terrível acesso de tosse que lhe tirou o fôlego; passou apenas quando Judith entregou-lhe um copo d’água e o líquido desapareceu por completo do recipiente.

Quando abriu seus olhos cansados, viu que os desconhecidos a observavam esperando por alguma explicação. Após alguns momentos de silêncio, o homem com uma expressão fadigada, perguntou-lhe.

–E então? Quem é você, o que houve e o que faz aqui?

–Meu... nome é... Joana...

–Sim, disso eu sei; a senhorita já nos disse. Quero saber quem realmente é você.

–Isso pode demorar um pouco...

–Temos tempo de sobra. – Disse o dono do lugar sentando-se aos pés da cama e cruzando os braços sobre o peito.

–Como eu disse, meu nome é Joana. Joana Romée. – A garota sentou-se na cama fazendo com que o lençol que a cobria escorregasse de seu corpo, deixando à mostra o tronco fino que, assim como seus ombros e sua cabeça, estava enfaixado. – Eu não venho de muito longe... sou do povoado de Binah, à noroeste daqui.

–E o que exatamente veio fazer aqui?

–Estou... me escondendo.

–Se escondendo? De quem?

–Dos guardas... digamos que eu não sou muito... querida, por lá... não nos últimos tempos, pelo menos... Ai! – Resmungou quando um movimento involuntário fez com que seu ombro doesse ainda mais.

–Como assim? O que você fez? Algo muito ruim?

–Pra eles sim... – Disse, se concertando. – Vejam... eu trabalhava na guarda do reino.

–Ah sim, isso explica a armadura ali. – Rupert acenou com a cabeça em direção aos restos da armadura jogada em um canto.

–Sim... explica.

–Mas porque está tão quebrada? E o que houve com você para vir parar aqui e ainda mais neste estado?

–É uma história bastante complexa...

–A julgar que você está sendo cuidada pela minha filha, e está repousando na minha cama, eu acredito que você me deva algumas explicações. Então, por favor, trate de descomplicar e me dizer logo.

–Tudo bem, tudo bem... – Disse levantando as mãos, em rendimento. – Eu conto. Mas vocês terão de ter paciência. A história pode ser um pouco longa. – Suspirou ao ver os quatro pares de olhos sobre si. – Então... nasci e fui criada em Binah. Binah é um povoado bastante conhecido pelo modelo de liderança familiar um tanto distinto dos outros. Enquanto os outros reinos e pequenas províncias possuem o modelo patriarcal, Binah conservou um dos pouquíssimos aspectos da civilização pagã que habitou neste continente há algum tempo; o modelo matriarcal, graças à grande valorização do sexo feminino por parte dos, digamos... bruxos. Vocês me entendem, eu acho... sabe, a deusa deles é uma mulher... não é incrível? – A garota olhou para os demais com excitação, esperando receber em troca os mesmos olhares de surpresa, ficando desapontada ao não obter sucesso. – Meus pais se chamavam Isabelle e Jacques, e eram extremamente católicos. Exigiram que eu tivesse toda a instrução possível sobre a religião e mesmo eu não sabendo... bem, não sabendo ler e nem escrever, sei de cor o nome de todos os santos. Mas bem... acho que isso não importa muito...

–E o que houve?

–Meus pais morreram por causa de uma peste incontrolável que se pôs a assolar as terras de Chesed e Binah. Foi horrível... morreram muitas pessoas. Eu ainda era uma criança e por muito pouco escapei da morte. Fui resgatada por algumas freiras e levada para um convento. Lá fiquei até os meus dezesseis anos... quando comecei a escutar a voz.

–Voz? Que voz?

–Uma linda voz... – Seus olhos se perderam no espaço à sua frente. – Uma voz tão doce... me dizia de forma calma e bela... que eu deveria sair e ser alguém. Ser conhecida... ser forte. Eu deveria... deveria fugir...

–E então...?

–Então eu fugi. No meio da noite eu saltei a janela do quarto e rumei para Chesed. Eles estavam ajuntando pessoas para um treinamento. Entende? Para a guarda do reino... a voz me disse que eu deveria me juntar à eles... que era o certo. Foi o que fiz. Como eles não aceitavam mulheres nem mortas na guarda, disfarcei-me de homem e consegui o que pretendia. Comecei a lutar com a guarda em algumas pequenas guerras por território; os superiores percebiam que havia um grande potencial em mim. Notaram que eu era muito boa, e assim me puseram à frente das tropas. No entanto, isso não durou... muito tempo. Hoje eu tenho dezenove anos. Descobriram os meus maiores segredos. Descobriram que, além de ser mulher, escuto vozes. Uma única voz, na verdade. E não é a voz do deus. É uma voz feminina. Eu não sei bem o que isso significa, mas gostaria muito de saber o que ela quer de mim, seja lá quem ela for. – As pessoas olhavam-na com exacerbado interesse agora. – Venho escondendo-me desde Chesed até aqui, e eles vêm seguindo meus rastros. Querem acabar comigo; me acusam de heresia. E bem... é por isso que estou aqui.

–Como posso saber se devo confiar em você? – Disse Rupert, desconfiado.

–Você pode optar por me entregar agora mesmo aos soldados... não tenho nada mais a perder, de qualquer modo.

–Não. Tudo bem. Confiamos em você. – Athame pronunciou-se pela primeira vez dirigindo um olhar significativo para Rupert. – Muito prazer, chamo-me Athame. Acredito que você possa nos ser útil. – Levantou-se e caminhou até a mesa, pegando então um papel que repousava trêmulo, devido ao vento, sobre ela. – Podemos lhe dar respostas se você nos der respostas.

–Farei o que estiver ao meu alcance para ajudá-los.

–Tudo bem então... tome. – Disse, entregando o papel para a garota. Joana ficou olhando sem reação para o papel e em seguida para Athame. Após repetir várias vezes esse ato, Athame recolheu o papel. – Ah, perdão... havia esquecido-me. – Então sentou-se na outra cama e pôs-se a ler o poema e explica-lo. – Mas então... essa última parte é que nós não entendemos e acho que pode nos ajudar.

–Ah, sim... o cavaleiro prateado... ouvi falar bastante dele quando criança. O santo guerreiro. Aquele que matou o dragão e que protege a todos.

–Bem... me parece que ele não o fez.

–E por falar em dragão... – A garota franziu o cenho, lembrando-se de algo. – Algo muito estranho aconteceu neste lugar ontem à noite enquanto eu chegava aqui à procura de um local pra esconder-me...

–Estranho? Pois conte-nos o que houve... – Disse Rupert, ficando mais atento às palavras da garota.

–Bem... pra falar a verdade, não sei ao certo o que houve de fato. Eu estava fugindo dos guardas, como disse, quando notei que havia chegado aos portões de Geburah, trancados e com dois guardas à sua frente; estavam cochilando. Ultrapassar as muralhas parecia uma ideia um tanto insana. Então esperei por alguns segundos, até que esconder-me entre as árvores me pareceu uma boa ideia... então um grande estrondo fez-se audível, e em seguida algo como um bater de imensas asas. Mas eu não podia ver nada. Estava tudo muito escuro; as tochas que estavam perto dos soldados quase se apagavam com o frio. Os guardas acordaram assustados, e questionaram a minha presença ali. A voz em minha cabeça me dizia o que fazer, o que falar com os homens. Quando os portões estavam sendo abertos para que eu passasse, o guardas que me perseguiam há dias me avistaram e puseram-se a correr em minha direção e a gritar. Tive sorte em poder entrar a tempo no reino. No entanto, não só os guardas vindos de Chesed me perseguiam; haviam se unido aos de Geburah na corrida e nas flechas. Uma delas foi certeira. – Disse olhando para o ombro enfaixado e encolhendo-se. – Com a dor da flechada eu perdi a concentração na fuga e caí. Eles vinham em minha direção e eu sabia que havia acabado pra mim. Foi então que...

–...Que? – Cycero perguntou com curiosidade e excitação.

–Um dragão... ou provavelmente poderia ter sido um. Não o vi, pois estava muito escuro e ele poderia ser ainda mais escuro do que a própria noite. Só alguns archotes iluminavam fracamente o caminho. Também não fez nenhum barulho; não rugiu, não urrou ou seja lá qual for o barulho de um dragão... ele não o fez. Permaneceu em silêncio. Rondando, à espreita. A única coisa que o anunciava era o barulho inconfundível de grandes asas e em seguida... o fogo que caía do céu. Que era lançado, na verdade. Dava pra ver a bocarra da criatura enquanto expelia aquelas terríveis chamas que se estendiam para nós. Os soldados, atordoados, se esqueceram de procurar por mim e começaram a levantar seus arcos e sacudir suas espadas em direção ao alto, sem nada ver. Foi então que fugi e cheguei até aqui. Mas, a propósito, porque o interesse de vocês é tamanho?

–Digamos que... também temos uma história bastante complexa para contar.

–Temos tempo de sobra. – Joana então exibiu um meio sorriso.

Athame sentou-se ao seu lado e com a ajuda de Cycero e Rupert, contou sua história desde Malkuth até o que deveriam fazer. Após uma longa conversa, Joana mantinha-se calada absorvendo tudo quanto fosse capaz de reter.

–E então? Acredita e confia em nós? Seria capaz de nos ajudar?

–Saibam que o que estiver ao meu alcance para ajudá-los eu farei. Com toda a certeza.

–Exato. Mas nesse momento, você deverá repousar. Está mal e tem que recuperar-se.

Após deixar as recomendações feitas, Rupert rumou para a taberna. Aliás, o que seria desse lugar sem mim? O que seria dos homens desse lugar sem um bom vinho, uma boa música e algumas prostitutas? Riu consigo mesmo.

Ao chegar ao interior da taberna, dirigiu-se para a porta de entrada e destrancou-a. voltou para seu balcão e pôs-se a fazer suas atividades costumeiras. Agrupar copos em cima do balcão e afugentar a fina camada de poeira que repousava sobre eles. Sua filha Judith o havia seguido e limpava as mesas do local, recolhendo copos e garrafas vazias que haviam sido deixadas da noite anterior. Até que um grande tumulto fez-se notório do outro lado das janelas da taberna. Pouquíssimas coisas realmente assustam o povo de Geburah. O que será que houve?

–Judith, minha filha, vou olhar uma coisa aqui fora. Por favor, fique aqui dentro. Se por acaso alguém chegar aqui, sirva o vinho daquele odre. – Disse apontando um recipiente atrás de si. Deixou o pano puído que segurava, cair desleixadamente no balcão e saiu da taberna encarando o congelante ar do reino.

Pessoas corriam em direção à esquina da rua. Dobravam-na, surpresos, e agrupavam se no centro da pequena praça onde havia a igreja. Rupert estava confuso. O que afinal aconteceu por aqui? Atravessou o grupo de pessoas chegando ao centro e percebendo o que atraíra as pessoas até lá.

No centro da praça, rubramente marcada por todas as execuções feitas ali, corpos repousavam no frio chão de pedra. Corpos de soldados.

Dois corpos foram facilmente reconhecidos; Aaron e Bauron, os guardas do grande portão de Geburah. Rupert lembrava-se deles. Estavam entre eles, outros cinco, não identificados. Não aparentavam ser deste reino.

A cena era estranha. Os corpos sem vida repousavam jogados de forma doentia no chão, suas pernas e seus braços exibindo uma posição desagradável, estando retorcidos. Não havia sangue no local. No entanto, mais assustador do que qualquer sangue que pudesse haver ali, eram as marcas do atentado.

Marcas pretas e cinzas enfeitavam o solo.

Os corpos estavam queimados, quase chegando ao ponto da carbonização.

***

A porta abriu-se repentinamente.

Athame e Cycero que estiveram conversando entrosadamente com Joana durante os últimos minutos, assustaram-se quando Rupert entrou abruptamente no quarto arfando.

–Rupert? O que... – Athame pôs-se de pé, preocupada.

–Meninos... eu acho que a hora é chegada.

–Hora? Como assim? – Cycero levantou-se ficando ao lado de Athame.

–Quando fui abrir a taberna... – Rupert disse andando de um lado para o outro - ...Notei que havia um tumulto na cidade. Algo diferente. Resolvi seguir as pessoas e bem... algo bastante estranho aconteceu de ontem pra hoje. – Disse, olhando nos olhos de Joana. – Algo que você viu acontecer. Os soldados estão mortos no chão da praça e seus corpos jazem queimados. Ouviram? Queimados! Isso é um sinal, Athame. Nós temos que ir.

A garota respirou fundo, preparando-se para atitude que brevemente iria tomar. Trocou um olhar cúmplice com o garoto ao seu lado e ergueu a cabeça, olhando para Rupert.

–Estamos prontos. Diga-nos por onde devemos começar.

–Bem... venham aqui. – Disse, caminhando para um pequeno móvel com gavetas que abriu e pegou dois papéis. Em seguida sentou-se à mesa. – Vejam. Sabemos que vocês tem que matar essa fera; isto é um fato. O que aconteceu aqui esta noite, não deve mais se repetir. Este é o motivo de vocês estarem aqui.

–Eu irei. – Cycero olhou para a garota e pôs a mão em seu ombro. – Você fica. Não quero que se machuque de forma alguma.

–E eu não quero de forma alguma escutar essas tolices que você ousa dizer. – Athame tirou a mão do garoto de si. – É óbvio que eu irei.

–Mas você parece tão frágil, e...

–Cycero... – Athame semicerrou os olhos. -... Cale essa merda de boca.

–Prestem atenção. O poema fala claramente sobre as construções da cidade; as quatro torres e a pirâmide. Sabemos que vocês têm que encontrar a estrela, e que essa estrela está escondida dentro da pirâmide. Sabemos também que é com ela que você – Disse olhando para Athame – deve matar o dragão.

–Entendo. Mas, se as torres são idênticas, como vamos saber qual a ordem de uma para a outra?

–Há uma parte aqui – Apontou Rupert para o papel – que diz que as torres se comunicam. Penso que deve haver algum enigma, algo que irá conduzi-los de uma torre à outra.

–E como saberemos qual é a primeira, se são simétricas? Não há uma posição que defina a primeira ou a última. – A garota continuou com seus questionamentos, franzindo o cenho.

–Espero que haja algo que possa diferir na questão ordem. Bem... isso só veremos quando chegarmos lá.

–Chegarmos? Mas...

–Claro. Achou que eu não iria participar disto, garoto? – Rupert levantou-se e abriu o armário pegando dois objetos compridos e estreitos enrolados em panos. – Tomem. Suas espadas.

–Eu também irei com vocês. – Joana disse fazendo menção de pôr-se de pé.

–Não. Você fica. Está muito machucada. - O homem acenou com a mão, admitindo que aquilo estava fora de cogitação. -Acho que devemos ir neste exato momento; não temos tempo a perder. Em um piscar de olhos a noite chegará e a desgraça se derramará sobre este lugar. – Rupert andava de um lado para o outro. – E acho apropriado que peguem seus pertences. É provável que não voltem mais aqui.

–Rupert... muito obrigado pelo que fez e continua fazendo por nós, mas... por favor, não venha conosco...

–Athame – Rupert segurou as mãos da garota – eu disse que faria o que fosse possível para ajudá-la... para contribuir. Eu jurei à deusa. Eu disse a ela que daria tudo de mim e que, se necessário, morreria por isso. Esse é o meu caminho.

–Tem certeza?

–A mais absoluta certeza. Agora, vamos. Temos que chegar lá o mais rápido possível.

Rupert e Cycero despediram-se de uma Joana tristonha e rumaram para a taberna, deixando Athame ali, para que pudesse trocar-se. Em seguida a garota caminhou para a taberna também. Rupert abraçava a sua filha Judith, ambos entre lágrimas.

–Filha, quero que saiba que eu amo você. Sabe muito bem disso, não sabe? E... Quero que me perdoe filha, se eu alguma vez a magoei... você me perdoa?

–Claro, papai... eu também o amo...

–Quero que tome conta da taberna, sim? E da Joana também. Acha que consegue?

–Sim, senhor. Tudo bem...

E após uma breve despedida, os jovens e Rupert saíram da pequena taberna já cheia de clientes e foram determinados em busca dos quatro grandes monumentos.

***

A pequena garota fora levada para um lugar mais escuro e fétido do que antes estivera.

Vinha sendo mantida sem comida alguma e nenhuma gota d’água chegava a lhe tocar a língua. Correntes mais pesadas e grossas lhe prendiam os punhos e os tornozelos, deixando-os imóveis. O ódio quase animalesco crescia dentro de seu âmago. No entanto nada podia fazer para aquietar a fome, a sede, a dor e o ódio que sentia. Não tinha forças para acalentar a esperança de algo de bom lhe pudesse acontecer. Desistira de escutar a voz que lhe pedia calma, resistência. Já estava entregando-se à morte que lentamente caminhava para busca-la.

A porta foi aberta repentinamente fazendo com que um feixe de luz se esgueirasse para dentro do local. Uma silhueta masculina não muito alta e um tanto encurvada permaneceu parada no portal com a palma repousada na soleira da porta. Falava com alguém do outro lado da parede, a voz baixa e abafada. Depois de ter dito o necessário, virou-se com desdém para a garotinha e disse, a raiva gotejando em sua voz.

–Chegou a sua hora.

Em seguida, guardas entraram no local e levaram-na dali.

***

Um casebre em uma rua apertada de Malkuth.

Dentro dele, uma mulher esperava preocupada o seu, então, esposo. Parada frente à janela entreaberta, observava a fina chuva que caía do céu cinzento. A porta foi aberta atrás de si e logo foi fechada. Em seguida, mãos tocaram sua cintura descendo pelo seu quadril. A mulher virou-se e encarou firmemente o homem que lhe tocava segurando com força seus punhos.

–John. Você sabe o que quero. Nós fizemos um trato. Eu fico aqui como sua esposinha e faço tudo o que você quer. E você vai lá buscar a minha filha.

–É complicado... – O homem desviou o olhar.

–Como? Você por acaso está me dizendo que eu estou aqui fazendo absolutamente tudo o que você manda e você simplesmente me diz que é complicado? Seu imundo...

–Como ousa se referir a mim dessa forma, sua puta? – Vociferou, erguendo a mão para feri-la com um forte tapa, como sempre fazia. Ernestine segurou seu braço, impedindo o golpe.

–Como você acha que pode falar comigo dessa forma? Se eu fosse você, John, passava a me respeitar a partir de agora. Eu posso fazer coisas que você nem imagina com essa sua existência desprezível. – Empurrou com valentia o peito do homem. Apontou o indicador na direção do rosto de John. – E acho melhor você ir agora mesmo buscar a nossa filha.

Depois de mais alguns momentos de discussão, John decidiu que se quisesse viver por mais tempo, teria de fazer aquilo logo. Sabia que a probabilidade de aceitarem seu pedido era mínima, mas deveria tentar. Não deixava transparecer, mas temia a presença de Ernestine; temia mais ainda a presença furiosa da mulher. Saiu então do casebre com ela em seus calcanhares.

Ao chegarem na praça central de Malkuth, Ernestine e John notaram uma movimentação estranha no lugar. As pessoas aproximavam-se da enorme cruz de madeira que estava fincada frente à igreja. Ambos aproximaram-se também, com mais rapidez.

Dois homens com armaduras acobreadas amarravam na cruz um pequeno corpo imóvel para ser queimado.

Ernestine não pôde se conter ao correr e empurrar as pessoas para verificar de quem era o corpo ali à frente e se ainda estava vivo. Surpreendeu-se ao encontrar o frágil corpo infantil da sua pequena Elizabeth, magro, débil e com apenas um pequeno resquício de toda vida que antes tivera. Seu fino abdome oscilava lentamente devido as vagarosas respirações que conseguia efetuar. O fio de vida que ainda lhe restava acabaria em pouco tempo, seja pelas chamas que estavam prestes a consumir seu miserável corpo, ou pela fome e dor que aparentava estar sentindo, mesmo estando imóvel.

Enquanto empurrava com desespero as pessoas que lhe serviam de obstáculos em seu caminho, o líder religioso, que possuía uma tocha acesa em uma de suas mãos, dizia palavras que os fiéis ouviam calados e atentos; algo sobre heresia, bruxaria, e sobre o seu deus não aceitar tais práticas. No momento em que o homem estava prestes encostar as chamas vívidas na palha seca que rodeava a grande cruz, a mulher irrompeu no local.

–Elizabeth! Não! – vociferou a mulher ao tentar empurrar o homem para longe de sua filha, sendo detida por guardas que a seguraram firmes. A menina abriu seus olhos cansados e viu que a sua mãe estava ali, à sua frente.

–Mamãe! Mamãe, é você?

–Ah, então aqui está a mãe da filha do satã... a concubina do diabo... Conte-nos como foi entregar-se para ele e conceber a este demônio...

–Cale a boca, seu velho filho da puta! – Ernestine cuspiu nos pés do homem, fazendo com que os soldados apertassem-na ainda mais. – E solte minha filha! Agora!

–Mas quem é você? E por que acha que pode se referir à mim desta forma? Com tamanho... desrespeito? – Estalou a língua, desaprovando a atitude. – Tão selvagem e irreverente quanto a filha... Guardas, levem-na para o calabouço. – Disse, voltando-se para sua tarefa de acender a fogueira.

–Parem!

John esgueirou-se por entre a multidão e apareceu diante do homem. Os guardas que arrastavam uma Ernestine em desespero, pararam de súbito ao som da ordem de uma voz conhecida.

–Capitão Hilder? – Disse o mais alto dos dois.

–Sim, sou eu mesmo. E ordeno que soltem neste exato momento a minha esposa e a minha filha.

–Realmente passou pela sua cabeça a mórbida ilusão de que você ainda manda em algo, ex–capitão Hilder? O senhor sabe muito bem que perdeu a sua patente e que as suas ordens aqui, são inaudíveis. – O homem com o crucifixo olhava com desdém para John. – E ainda que a possuísse, nunca, nem mesmo em nenhum de seus mais tolos devaneios, as suas ordens se sobreporiam às minhas.

–Entendo, meu caro Bastino. E, perdão; não quis em momento algum sequer dizer que as minhas ordens tem a mínima importância para a guarda, mas... veja, se posso fazê-lo entender... digamos que, o senhor me deve alguns... pagamentos. Já trabalhei demais para o senhor, e o que ganhei? A perda da minha amada patente.

–Você não trabalhou para mim. Trabalhou para o senhor supremo. – A raiva subindo-lhe pelo corpo.

–Nada disso. Trabalhei para você. As coisas que fiz pelas suas ordens, tenha certeza Bastino, que o altíssimo não ordenaria nem ao próprio satã que as fizesse. – John aproximou-se do velho dirigindo-lhe um olhar penetrante.

–Soltem-nas. – Disse o sacerdote entre dentes, o ódio fugaz poluindo-lhe rapidamente a face branca. Os olhos azuis gélidos, petrificando-se.

Os guardas soltaram a mulher que correu para junto de sua filha. Em seguida, desamarram a garota que caiu molemente nos braços da mãe.

Após um breve sorriso, deixou-se desfalecer no colo maternal.

Quando as pessoas se dispersavam vagarosamente, desapontadas com o fato de não ter ocorrido morte alguma que servisse de espetáculo, o padre virou as costas e seguiu para dentro da igreja juntamente com os guardas, deixando para trás apenas uma frase solta no ar.

–O nome do senhor deus, vencerá.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado ;3



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