Malkuth escrita por Lilith, Sr Paganini


Capítulo 7
Explicações, sacrifícios e Joana


Notas iniciais do capítulo

Nos desculpamos mais uma vez (risos) pela demora. Aqui está mais um capítulo e esperamos que gostem.
Boa leitura.
Lilith e Paganini



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O céu já havia escurecido lá fora.

Mesmo com a cortina puída e a janela suja, a viela situada através do vidro fazia-se visível. Archotes presos aos muros de tijolos e pedras das casas alinhadas iluminavam o caminho das pessoas que andavam apressadas de volta para seus pequenos lares. As crianças se despediam com gritinhos enquanto suas mães as puxavam pelos finos braços, com urgência. Estava frio como sempre.

Durante o dia, o pequeno reino transmitia algo melancólico; a fome, a pobreza, o frio e a seca assolavam as pessoas que ali moravam e davam um ar de morte e dor ao lugar. No entanto, ao cair da noite, havia sobre a cidade um grande mistério. Algo que assustava mulheres e crianças, e que deixava os homens –noutro momento corajosos, orgulhosos e cheios de si- cansados demais para permanecer fora de casa. Algo a mais que fazia com que as pessoas corressem para suas casas ao deitar da lua, e lá se escondessem. Apenas os bêbados permaneciam na taberna durante a noite, em meio ao vinho e à fumaça; no entanto, a taberna estava momentaneamente fechada. Então, sem rumo, andavam aos tropeços pelo pequeno reino vazio e ao cair no chão de pedras acinzentadas, deixavam-se permanecer ali mesmo sem ao menos se preocupar com coisa alguma.

Algumas línguas diziam que era pura imaginação. Outras diziam que tudo aquilo não passava de uma lenda, uma história pra amedrontar crianças. A verdade é que ninguém desejava ficar ali para descobrir. Nunca.

O homem encurvado de cabelos grisalhos e barba por fazer estreitava cada vez mais os miúdos olhos castanho-escuros ao manter seu olhar endurecido sobre os dois jovens desconhecidos ali parados. Socou com força mais uma vez a mesa à sua frente e disse com voz rouca.

–E então? Alguém aqui vai me explicar o que está havendo? Ou eu devo chamar os guardas? Talvez eles possam me explicar o que...

–E-Eu... Eu... P-Posso lhe explicar s-senhor... – Cycero levantou-se, gaguejando. Normalmente falava muito bem; podia ser considerado um mestre quando se tratava de conversa e lábia. Mas tinha essa pequena inconveniência quando era posto sob pressão.

–Vamos logo, seu merdinha! Trate de me explicar que diabos você vieram fazer na minha casa! – O homem bem que poderia vociferar tais palavras, mais venerava o sigilo, seja lá qual fosse a situação. Ralhava então, entre dentes.

–Eu posso, senhor. Juro que posso lhe explicar tudo o que nos está acontecendo. Só lhe peço que tenha calma e paciência. Por favor, nos escute e se puder, nos ajude. O senhor é a nossa única saída agora. – Athame levantou-se e pôs-se à frente de Cycero que havia empalidecido frente à possibilidade de que o pior lhe pudesse acontecer. Falava de cabeça erguida e reunia todas as suas forças para manter a voz e o olhar igualmente firmes. Temia que ele pudesse ser um dos adoradores do deus cristão e que os condenasse à morte ali mesmo. Mas tentar explicar a ele era a sua única opção. Ela e Cycero estavam sozinhos agora, e ela precisava escolher entre arriscar contar tudo ao taberneiro correndo o risco de ser morta depois -mas tendo boas chances de obter compaixão e ajuda- ou ser morta rapidamente pelos guardas. Era uma via de mão dupla e Rupert era, literalmente, a sua única chance.

O velho sentou novamente em sua pesada cadeira a contragosto e com cara de poucos amigos. Cruzou os braços sobre uma barriga proeminente e, esticando as pernas a sua frente, cruzou também os tornozelos esperando explicações.

–Então comece. Temos a noite toda, garota.

Athame aproximou-se do homem e pôs a mão gentilmente em seu ombro. Os músculos desenvolvidos pelo trabalho pesado, porém cansados, se retesaram ao leve toque. Ele fitou a garota que o olhava com olhar de súplica.

–Sei que não estou no direito de lhe pedir mais nada, senhor... Vocês já fizeram muito por nós sem nem ao menos conhecer-nos, mas... Bem... Posso pedir-lhe um voto de confiança?

O homem pensou em suas palavras. Custa ouvi-los? Não. Não custa nada. Talvez realmente precisem de mim.

–Irei escutá-los com calma e compreensão. – disse assentindo devagar com a cabeça.

Athame virou-se pôs-se a andar de um lado ao outro do cômodo, pensativa e escolhendo as palavras. Por onde começar? Parou de repente e olhou para o senhor.

–Estamos aqui com um propósito. Diana chamou-me para uma tarefa de alta importância e é isto que estou fazendo. Estamos fazendo. – corrigiu ao olhar para Cycero. - Ou que pretendemos fazer. – Fechou os olhos e deixou que um longo suspiro escapasse de seus lábios; em seguida prosseguiu. – Temos que fazer uma viagem. Uma longa e complicada viagem. Acredito que enfrentaremos grandes perigos também, mas... – olhou para o homem que a olhava com uma expressão indecifrável que ia de descrença à surpresa. -... Faremos tudo isso, pela libertação do povo; as coisas não seguem de um modo agradável para ninguém. Nem mesmo para a deusa. Ela quer por fim a isto, e eu sou apenas um instrumento para o seu agir. Eu sei que você pode não acreditar na minha deusa... Mas por favor! Olhe à sua volta! Não vale a pena arriscar uma única vez? Vocês cristãos também sofrem da mesma forma que nós, bruxos, sofremos. – Tocou novamente o ombro do homem imóvel a sua frente, franzindo o cenho. – Por favor... Ajude-nos a ajudá-los.

Com um rompante o homem pôs se subitamente de pé, enquanto seus orbes pareciam saltar para fora de seus olhos. O susto fez Athame cambalear e tropeçar para trás, no entanto Cycero segurou-a pela cintura fazendo-a escapar de uma grande e dolorosa queda. Esperando pelos gritos e acusações, a garota encolheu-se ao olhar o homem que aparentava estar sufocando.

O velho atirou-se de joelhos aos pés de Athame e chorou. Suas lágrimas verteram de seus olhos tão velozmente quanto fosse possível. Segurando na barra de seu vestido murmurou as palavras.

–Quanto tempo esperei por vocês... – Fungou. – Ah, que maravilha! A grande deusa não se esqueceu de nós! – Levantou-se enxugando as lágrimas que molhavam sua face. –Então... Como posso ajudá-los?

***

A noite se arrastava preguiçosamente; parecia não ter pressa para se findar.

Chovera o dia inteiro, e o ar úmido e abafado se esgueirava com dificuldade para dentro dos pulmões de Ernestine.

Havia deixado tudo para trás pela manhã com o objetivo de trazer sua filha de volta para si. A sua única esperança estava escondida em Malkuth e possuía nome e endereço; John Hilder, ex capitão da guarda cristã, o homem mais imundo que já conhecera. O responsável por anos de dor e infelicidade. O pai de sua filha menor. O homem que matou seu esposo, Asmir. Esperava que, mesmo que fosse um canalha maldito, pudesse ajudá-la. Pudesse se compadecer de sua própria filha.

Chegara ao casebre demasiadamente conhecido -e do qual guardava péssimas lembranças- por volta do meio dia ao soar do grande sino da igreja, deixando o homem surpreso com a presença inesperada. Chovia fino e, desde então, a chuva só fez aumentar, como se o céu chorasse por ela.

Ele a havia deixado entrar. Enquanto se sentava numa cadeira próxima ouvia ruídos vindos do quarto, algo como choro; em seguida, fortes tapas. O som seco da palma encontrando a pele, talvez do rosto. A voz masculina murmurava ordens entre dentes e uma prostituta saiu do cômodo. Mantinha a cabeça baixa e chorava em silêncio enquanto atravessava a sala onde Ernestine a olhava preocupada e saia da casa enrolada apenas em um lençol. Os segundos pareciam rastejar lentamente.

–Então você veio me pedir ajuda... – John havia reaparecido, desta vez encostado à soleira da porta com os braços cruzados sobre o peito. Gargalhou de forma arrogante. - quem diria, não?

–Sim, quem diria... Quando saí deste lugar nunca imaginei que teria a infelicidade de voltar a vê-lo. Mas sabemos que existe um motivo maior que me traz aqui.

–Que motivo maior a traz de volta para os meus braços?

–Eu já lhe disse. Nossa filha foi levada.

–Oh, sim... E o que houve de tão horroroso com a nossa querida filhinha?

–Alguns soldados invadiram a casa da minha mãe e a levaram. Alguns foram mortos e outros fugiram. A nossa filha, John... Pelo amor da deusa! Ela pode estar sofrendo... - Ernestine estava à beira do desespero.

–Minha querida esposa... – John aproximou-se de Ernestine e tocou seu rosto fazendo uma carícia que logo foi substituída pela tão conhecida violência. Agarrou o rosto da mulher com uma mão e o trouxe com força para perto de si. - Eu lhe avisei que não devia se misturar com esses demônios... Eu tentei proteger você... Tentei, eu juro... – Confirmava com a cabeça excessivamente, de modo perturbador. Como se a única gota que restou da sua sanidade houvesse se esvaído. - Mas você é uma esposinha tão mal comportada... Sim você é... Virou-me as costas na primeira oportunidade...

–Tentou me proteger? Tentou me proteger? Pare de ser ridículo, John! Desde que estamos casados as únicas coisas que você fez por mim foram me humilhar e me maltratar. Eu não suporto você! Só estou aqui por que sei que você pode me ajudar! Você perdeu sua patente, mas continua tendo uma grande influência na guarda cristã... John, é a nossa filha! – A mulher chorava enquanto o homem segurava com força o seu queixo.

–Ah, e por falar da minha patente... Obrigada por fazer-me o favor de trazer novamente à minha memória que não a tenho mais! E tudo por culpa de quem? Desse seu povinho imundo... Bando de filhos da puta! – John vociferava cada vez mais alto.

–Você matou o meu marido, seu ordinário! – Ernestine gritou em meio às lágrimas. – Seu filho da puta! Eu o amava e ele era inocente! Ele não tinha feito nada e você o matou! Você é imundo!

Com a fúria lhe explodindo o corpo, John atingiu o rosto da mulher com a sua palma com toda a força que tinha, fazendo-a cair com a face recostada no tablado. Enquanto Ernestine chorava de dor e ódio, o homem ajoelhou-se frente a ela.

Eu sou o seu marido. Eu. E você precisa da minha ajuda. Você precisa que eu resgate a vagabundinha, sua filha. E é melhor você se comportar direitinho. Pegou-a com força pelo braço e puxou-a fazendo com que a mulher, já frágil, ficasse de pé. Apontou com a cabeça a direção da porta do quarto e disse próximo à orelha de Ernestine:

–Venha para o quarto comigo. Vamos matar a saudade.

Arrastou-a pelo braço até que chegassem ao quarto. O ambiente fedia a fumo tal qual o homem. Atirou-a sobre a cama, fazendo com que ela caísse pesadamente de bruços sobre o móvel. Virou-se e fechou a porta do quarto. Aproximou-se mais uma vez da mulher, deitando em suas costas e apoiando seu peso nos braços que o sustentavam, firmes, na cama.

–Você vai fazer exatamente o que eu mandar, escutou? Vai me obedecer direitinho. Como a minha cadelinha que você sempre foi... – Sussurrou as palavras no ouvido da mulher, seus lábios roçando o lóbulo feminino. Sua voz estava embebida de excitação. O cheiro da mulher e a textura de sua pele, o enlouqueciam. Sentia vontade de prendê-la e deliciá-la por um dia inteiro sem pausas. Tirou o vestido que a esposa vestia e começou a penetrá-la de forma forte e rápida. Parecia nunca se cansar do ritmo veloz que conservava. A mulher se limitava a apenas aceitar o seu sacrifício e permanecer calada ao ser estuprada mais uma vez, não reagindo aos tapas, puxões de cabelos e, muitas vezes, pequenos cortes que tinha prazer em fazer com uma pequena adaga que sempre carregava consigo. Sentia prazer na dor alheia. Gostava de fazê-la sentir dor.

A noite demorara a chegar, mas enfim começara. John havia saído de casa para sua costumeira visita à taberna. Não sabia que horas ele voltaria; Que seja daqui a bastante tempo...

Ficou deitada na cama imóvel, sozinha com seus pensamentos por bastante tempo. Respirava com dificuldade, devido à dor que sentia e ao ar abafado misturado ao odor de mofo do cômodo. Levantou-se e seguiu para a sala.

Estava uma bagunça. Garrafas quebradas, cadeiras caídas, sangue seco no chão... Exatamente como havia deixado quando saiu dali sem a intenção de voltar. Enquanto arrumava a casa e colocava cada coisa em seu lugar, Ernestine mantinha seu pensamento em suas duas filhas.

Minha deusa, por favor... Cuide de minha pequena Elizabeth... Ela é tão frágil... Não permita que nada de mal aconteça a ela... Espero que tudo isso que eu estou passando possa me trazer o que espero; resgatar minha pequena... Faça-me forte para suportar esse momento ruim. Eu acredito e confio na senhora, e espero que o sofrimento acabe para todos nós. E por favor... Cuide da minha Athame também. Sei que ela é de grande preciosidade para nós duas. O futuro de todos nós depende dela. Por favor... Esteja com ela.

Em uma pequena fazenda de lavandas, a algumas horas de Malkuth, uma pequena senhora de cabelos grisalhos fazia a mesma prece.

***

Athame ficou extremamente surpresa.

Não imaginava que algo dessa forma pudesse ocorrer. Não imaginava que teria tido tanta sorte assim; encontrar, não uma saída. Encontrar a saída. Não... não havia sido mera sorte. Obrigada deusa... sei que a senhora foi a responsável por tudo isto. Não sei o que seríamos sem o seu amor e a sua compaixão... muito obrigada mesmo, Athame pensava incontáveis vezes, enquanto o homem à sua frente secava as lágrimas e Cycero mantinha-se imóvel com as mãos em sua cintura.

–Bem... então podemos confiar no senhor?

–Sim, claro... farei o possível e o impossível para ajudá-los. Mas primeiro... me conte quem são vocês e como vieram parar aqui. E como foi quando você recebeu essa responsabilidade... e como...

–Fique calmo... – Athame riu, desconcertada, ao ser bombardeada com perguntas. - responderemos a todas as suas perguntas... com calma. Uma por uma. – disse, acalmado o homem. Olhou para Judith, sentada ainda no parapeito da janela e um tento preocupada com as reações repentinas de seu pai.

– Judith, você poderia por favor pegar um copo do nosso melhor vinho para o seu velho pai? – disse o homem, sentando-se novamente na pesada cadeira. Enquanto a jovem saia do cômodo, fez um gesto para as outras cadeiras que ali haviam. – Venham meus jovens... sentem-se comigo... vamos tomar um bom gole de um bom vinho. Precisamos conversar. Preciso saber de tudo.

–Tudo bem... – Disse Athame sentando-se na cadeira mais próxima juntamente com Cycero, ao seu lado. - ...Por onde quer que comecemos?

–Quem vocês são me parece um bom começo...

Judith voltou com os copos e um odre de vinho. Despejou o líquido rubro nos recipientes, fazendo a fragrância sensual da bebida propagar-se no recinto. Sentou-se novamente no parapeito da janela e pôs-se novamente a alinhavar o mesmo pequeno objeto de antes. Um olho na agulha, outro na conversa.

–Eu me chamo Athame. Venho de Malkuth e como já lhe disse, venho com um propósito. A grande deusa mandou-me em uma jornada. Ela disse-me que eu deveria seguir as instruções que a minha avó me desse.

–E quem é a sua avó?

–Minha avó chama-se Elysia. É conhecida também como a grande anciã...

–Ah, sim... muito ouvi dizer sobre esta incrível senhora, no entanto nunca tiver sequer o prazer de conhece-la... espero poder vê-la um dia. Mas, prossiga...

–Ela deu-me uma rota... um mapa com uma rota. E eu não sei onde eles se encontram agora... – A jovem levantou-se e girou os olhos ao redor do quarto procurando pelos papéis. Lembrou-se que os havia deixado no bolso das calças de Cycero. As calças que muito provavelmente já haviam sido lavadas.

–Ah... você fala daqueles papéis que estavam no bolso do seu namorado...

–Ele não é meu namorado.

–Que seja... Bem, eu os apanhei e os guardei aqui. Sorte sua que eu os achei antes que lavasse as calças. – virou-se para o pequeno móvel situado entre as duas camas e retirou de dentro da gaveta dois papéis. Voltou-se para Athame e a entregou as duas folhas abarrotadas. Sentou novamente na janela e tomou nas mãos mais uma vez o pequeno objeto que estava cozendo e estendeu, mostrando-o. -Também encontrei isto aqui. E se não se importa, tomei a liberdade de costurá-la para você... não sabia que ainda brincava de boneca...

–Olha aqui...

–Judith! Pare de provocações.

Voltou para sua tarefa anterior murmurando algo sobre pessoas metidas.

–Sim... então você deve seguir uma rota...

–Exato. Devemos. Saímos da fazenda de lavandas da minha avó um tanto próxima à Malkuth e viemos pra cá. Nossa primeira parada.

–E vocês inventaram que eram meus sobrinhos para passar pelos guardas. Adivinhei?

–Bem, esse mérito é meu, senhor...

–Ah, sim... e quem seria você, meu jovem?

–Me chamo Cycero, senhor. Estou acompanhando a garota porque, claro, ela não daria um passo sem mim. – Sorriu, presunçoso. A garota deu-lhe um olhar fulminante que fez Judith revirar os olhos. – Desculpe-me pelo incômodo. O senhor sabe... envolvê-lo em toda essa história de tio. Poderíamos tê-lo prejudicado...

–Não, nada disso... já disse que farei o possível e o impossível para ajudá-los... e me diga, Athame... como foi conversar com a deusa? Como ela é?

–Foi em um sonho... eu estava sendo levada pelos ventos. Fui arrastada por eles até um lugar diferente... lindo... me lembrei de já tê-lo visitado diversas vezes durante a minha infância. Bem, então eu a escutei... e logo em seguida ela apareceu pra mim. Disse-me que o tempo de sofrimento já havia se findado e que isso dependia de mim. Disse que me amava... disse que amava a todos nós.

–Eu sabia... sabia que ela não havia nos esquecido.

–Nunca esqueceu... – Athame lembrou-se da pergunta que pairava em sua mente aguardando por respostas, mas que os últimos minutos a levaram consigo. – E o senhor? Nunca poderia imaginar que também é como nós... bruxo.

–Bem... na verdade, eu não sou. Sou apenas um curioso. Sempre gostei de estudar sobre, então também me sinto agraciado pela deusa por tê-los aqui. Quando criança, morava em Netzasch... – Olhou para o vazio, seus olhos perdendo o foco, enquanto sua mente voltava-se para o passado distante. - ... Minha avó, era uma bruxa. Uma bruxa praticante, como vocês. Ela contava-me histórias... instruía-me de muitas coisas, pois sabia que eu gostava de vê-la fazendo preces e rituais. Minha mãe e meu pai se tornaram cristãos com o tempo, e a partir daí creio que pode compreender... o único vínculo que eu tinha com a magia, foi dilacerado. As coisas pioraram logo depois que a minha avó faleceu. A sorte foi que ela deixou para mim, todos os seus livros e escritos. Com um tempo meus pais faleceram e, sozinho, mudei-me para cá. Percebi que para ter uma vida tranquila por essas terras, é melhor manter sigilo; desde então, eu sou apenas Rupert, o taberneiro. Durante todo esse tempo, venho lendo, estudando e me dedicando às escondidas para obter uma melhor compreensão das coisas. Mas nunca tive o prazer de ser como vocês. Por isso quero ajudá-los. E vou.

Athame e Cycero escutavam tudo em silêncio. Absorviam todas as informações possíveis sobre a única pessoa em que poderiam confiar naquele momento.

–E então... como posso... não...como devo ajuda-los?

–Veja bem... – Athame voltou sua atenção aos papeizinhos abarrotados. Abriu-os. – Aqui temos o mapa com a rota bastante especificada. Quanto a isso não necessitamos de auxílio.

–Não?

–Não. Precisamos de sua ajuda com isso. – A jovem entregou-lhe um dos papéis para que o examinasse. O senhor franziu o cenho enquanto lia o texto impresso em caligrafia elegante. Tendo acabado, releu-o em voz alta.

“Geburah, vinha de teus tambores fortes

Constantes notas ‘Do ‘

Que espantavam com severidade aqueles malditos.

Com o eclipse fez-se cinza a terra,

E a beleza da primavera esgotou-se em lágrimas;

Lágrimas que não encheram os rios e os lagos.

Lágrimas ácidas que destruíram os campos.

Campos que não mais riem com as crianças.

E o ar, frio que mata.

Até a morte chora.

As quatro torres principais comunicam-se,

E a pirâmide do reino reflete o sol.

O monstro perdido no deserto busca a estrela,

Aquela que caiu em mãos douradas.

PROSPERA NOSSO REINO!

O guerreiro prateado virá para defender a todos!

PROSPERA NOSSO REINO!

A escuridão em nossos pés deitará e dormirá.”

–Não pode ser...

–O que não pode ser? – Perguntou Athame, intrigada.

–Este é um antigo escrito... o escrito desaparecido do grande Nicollo Wolfgang... minha avó sempre me contou sobre o grande bruxo que era. Minha deusa, não posso crer! Mas estava desaparecido há muito tempo... línguas disseram que havia sido encontrado nas coisas do velho Wolfgang, quando fora levado para ser morto. Diziam até que parte do poema havia sido alterado... – Parou por um instante, extasiado, sem acreditar no que tinha em mãos. – Como este escrito veio parar em suas mãos?

–Eu não sei, senhor. Mas tudo o que posso dizer, é que me veio de uma forma demasiado inesperada. – Olhou rapidamente para as mãos de Judith, que costurava ainda a pequena boneca. – Mas se o senhor não se importa, gostaria que começássemos de uma vez.

–Esperem um instante. Acho que posso ajudá-los. – Disse o homem levantando-se e caminhando até as estantes. Equilibrou em seus braços cinco livros grossos com capas feitas de couro escuro e os colocou na mesa.

Abriu-os com imensa voracidade. Procurava por palavras, significados. Curvou-se sobre os livros e ali permaneceu pelas próximas duas horas.

–Acho que tenho algo pra vocês... mas... estranho... há algo aqui que não se encaixa. Talvez sejam reais os boatos de que ocorreram alterações...

–Estamos ouvindo. – Cycero manifestou-se após tanto tempo em silêncio.

–Está claro de que se trata do reino de Veh Geburah, um reino demasiadamente conhecido pela severidade; pela força. A nota “dó” mencionada no poema é, perceptivelmente, a mais grave de todas as sete. Logo, pude fazer uma pequena e rápida comparação; sete reinos, sete notas musicais. A nota dó é a mais grave. Geburah é o reino onde a força, a severidade e brutalidade, dominam.

Athame ouvia atenta todas as palavras, buscando compreendê-las e absorvê-las da melhor forma possível. Cycero estava sentado ao seu lado e segurava uma de suas mãos, fazendo uma leve carícia com o polegar.

– Bem... vejam. Aqui diz: – O homem virou o poema para os jovens e acompanhou as primeiras estrofes com a ponta do indicador, repetindo-as. – “...Constantes notas ‘Do’, que espantavam com severidade aqueles malditos…”. Podemos também interpretar as constantes notas, com a guarda do reino, que o protege dos “malditos”; no caso, vocês. – Athame franziu o cenho. – Ou até mesmo, podem ser comparadas à grande muralha estendida em torno do reino. No entanto, esse poema é de origem pagã. Então os malditos seriam os cristãos, na verdade; logo, quem os espanta são os bruxos.

Recorreu a outro livro enquanto se punha a explicar as próximas estrofes.

– Oh, sim... o eclipse... o exato momento em que o sol e a lua se encontram. Tudo se escurece, pois há o ocultamento de um astro por outro. Deixe-me ver... – Folheou o livro procurando por algo. – Achei! Isso... “... vários povos em diferentes partes do mundo tem suas próprias explicações para tal evento. Os gregos, por exemplo, dizem que o eclipse lunar ocorre porque a grande deusa Diana move-se para as montanhas de Icaria a fim de visitar Endimión, seu amante. Sendo tal estrela a imagem da grande deusa, ela magicamente desaparece do céu.”. O poema diz que “Com o eclipse fez-se cinza a terra...”. Se analisarmos de forma minuciosa e mais específica com relação aos fatos, podemos perceber que pode ser interpretado de uma outra forma. Entendem? Não o eclipse em si, mas de certa forma o início da era de escuridão. A chegada dos cristãos, a imposição de sua crença e, por conseguinte, a grande guerra... trouxeram enorme escuridão. E quando a deusa caiu em esquecimento, e sua adoração foi tratada com descaso, a mesma “desapareceu” fazendo com que a escuridão se concretizasse. Um terrível eclipse lunar... – Seus olhos vagavam pelo espaço a sua frente. Olhavam para os jovens sem nada ver. Apenas seus pensamentos movimentavam-se com incrível rapidez. – Depois disso, dessa grande escuridão, ocorreu o que vocês já sabem... é só olhar em volta que poderão facilmente interpretar as próximas estrofes. “E a beleza da primavera esgotou-se em lágrimas; Lágrimas que não encheram os rios e os lagos. Lágrimas ácidas que destruíram os campos. Campos que não mais riem com as crianças. E o ar, frio que mata.”. É... até a morte chora...

Athame sabia bem de tudo o que o homem estava falando. Desde pequena conhecia a história da chegada dos cristãos e do desastre iminente. Conhecia tudo sobre a grande guerra e sobre a decadência do lugar em que vivia. Seu coração acelerou quando percebeu que havia chegado na parte do poema que mais lhe intrigara.

– “As quatro torres principais comunicam-se, e a pirâmide do reino reflete o sol...” – Leu o homem. – Está bastante clara a referência à arquitetura da cidade. Os monumentos são um tanto incomuns, é bem verdade. Porém são realmente incríveis. As quatro torres são indiscutivelmente simétricas, e parecem comunicar-se. A pirâmide que está no centro parece refletir a luz do sol, de tão plana e reluzente. Em seguida temos... “O monstro perdido no deserto busca a estrela”.

–M-monstro? – Athame gaguejou. – Isso não é verdade... é?

–Há teorias... bem, dizem que durante as noites um terrível monstro vindo dos desertos onde situa-se Daat sobrevoa Geburah. Algo como um dragão imenso, negro como a noite. Nunca foi visto, no entanto as pessoas realmente não querem descobrir se ele existe ou não. Ele procura algo, é bem verdade. E aqui diz que busca a estrela.

–Mas como isso pode ser possível? Procurar uma estrela? – Cycero franziu o cenho, sem compreender.

–Não... não esse tipo de estrela, meu jovem... – Tomou nas mãos outro livro e folheou algumas páginas. - Veja. – Tocou com o indicador a ilustração de uma espada peculiarmente bela. Mesmo em desenho, era possível ver todo o seu esplendor. – É uma arma. A estrela. Aqui diz que essa arma foi criada por mãos bruxas, porém foi capturada pelos cristãos e, dizem, ter sido guardada na parte inferior da grande pirâmide reluzente. Na verdade, as pirâmides são losangos, sabiam? No antigo Egito, os faraós quando mortos, tinham seu corpo limpo, bem cuidado e preparado para o julgamento no mundo dos mortos e, em seguida, a reencarnação, na qual acreditava-se que estes voltavam para o mesmo corpo, com as mesmas riquezas. Por isso, abaixo das pirâmides faraônicas eram construídas espécies de pirâmides invertidas que serviam de criptas para o armazenamento de seus bens materiais. Interessante, não? – Riu. – Então, supõe-se que seja lá que a espada se encontre. – Leu as palavras escritas abaixo da imagem. – “A estrela possui grande poder. É capaz de aniquilar qualquer vítima sua. É completamente feita de ouro e possui uma bela e reluzente pedra de ônix em seu cabo.”.

–Sim, tudo isso é bastante interessante, mas... o que nós temos a ver com isso? Entende o que eu digo? Para que precisamos saber de dragões e espadas poderosas?

–Suponho que você tenha que matar o dragão, e só poderá fazer isso com o auxílio da estrela. Athame, as pessoas tem sofrido com todo esse horror, tendo de conviver com essa criatura que mesmo invisivelmente, assola o reino. Além do mais, ele busca algo que não o pertence; pertence aos bruxos. Talvez a sua tarefa seja simplesmente resgatar a arma que está confinada.

–Realmente espero. Não tenho muito costume de matar dragões.

–Imagino... – Rupert revirou os olhos. – Bem, é basicamente isso mesmo. Agora vem a parte que não se encaixa. Provavelmente a parte alterada do poema. Aqui diz: “PROSPERA NOSSO REINO! O guerreiro prateado virá para defender a todos! PROSPERA NOSSO REINO! A escuridão em nossos pés deitará e dormirá.”. Posso fazer uma leitura talvez errônea, se me permitem... acredito que “prospera nosso reino!” seja meramente um apelo à prosperidade do local. Acredito que você pôde perceber que o reino é paupérrimo, no entanto em alguns pontos fazem-se absurdamente visíveis as concentrações de riquezas, como na igreja, nos obeliscos e na pirâmide, por exemplo. Sinos e cruzes em ouro puro... enquanto o povo morre de fome e sede. A parte em que a escuridão é citada também pode ser facilmente interpretada. Porém o que realmente me intriga é esta parte: “O guerreiro prateado virá para defender a todos!”. Se a pessoa que escreveu esta parte do poema de alguma forma soubesse que você estaria aqui agora com exatamente esse propósito, sem hesitação a chamaria de guerreira prateada. Mas quem escreveu esta parte não era pagão como nós, e sim cristão. Portanto deve haver um significado diferenciado para eles. Desculpe, mas não posso lhe ajudar com essa parte... nunca ouvi falar sobre esse guerreiro. – Após uma longa pausa com silêncio completo no cômodo, Rupert voltou a falar enquanto fechava os livros que repousavam sobre a mesa. – Acho melhor vocês descansarem um pouco. O dia será longo amanhã. – Disse, levantando-se da cadeira sendo imitado por Athame e Cycero. – Athame, querida, você pode se deitar na cama da Judith. Judith, você dorme na minha cama hoje.

–E eu, senhor? Se quiser eu posso deitar perto da Athame... a cama é grande, tem bastante espaço pra mim e...

–Você dorme comigo. No chão.

–Sim, senhor...

Quando já estavam acomodados e já iam se deitar, a jovem Judith entregou a Athame a boneca que estava costurando a pouco tempo antes. Athame murmurou um rápido “obrigada” e virou-se de lado, abraçada à bonequinha de Elizabeth. Lembrou-se instantaneamente de sua pequena irmã. Será que ela está bem? Realmente espero que esteja... deusa, proteja a minha irmãzinha, minha mãe e minha avó também. Lhe peço. Obrigada.

Dormiu logo depois que a lágrima que rolava em sua bochecha secou. Sonhou que voava no dorso de um enorme e negro dragão alado.

***

No meio da madrugada, antes mesmo do amanhecer, os jovens e Rupert acordaram sobressaltados com urgentes e altas batidas na janela de vidro.

–Fiquem quietos! Não sabemos quem pode ser a esta hora... – O homem levantou-se com rapidez e agilidade, mesmo sonolento. Caminhou vagarosamente na ponta dos pés em direção à janela coberta pela cortina velha, mantendo o indicador encostado nos lábios pedindo silêncio.

Quando estava próximo da janela, seu nariz rente ao vidro, levou seus dedos ao fino tecido puído da cortina, puxando-o um pouco para o lado, a fim de secretamente ver quem ali estava.

Do outro lado do vidro, uma garota olhava impacientemente para os lados, como quem se esconde de algo e tem medo de ser descoberta. Quando voltou seus olhos para a janela, encontrou os do homem que a observava com curiosidade. Ela disse algo, porém sua voz não foi ouvida. Apenas seus lábios puderam ser lidos. Socorro! Por favor, me ajude! Ela realmente parecia estar precisando de ajuda. Rupert prontamente abriu a janela fazendo com que uma fria corrente de ar invadisse o cômodo, fazendo Athame tremer. Rapidamente a garota escalou o parapeito da janela e lançou-se para dentro do quarto, caindo com um baque alto no chão de madeira. Afoita, levantou-se encurvada apoiando as mãos nos joelhos. Respirava com dificuldade quando Judith, cambaleando, trouxe-lhe um copo de água. Depois de beber tudo em poucos goles, endireitou-se e olhou para as pessoas que a encaravam.

Era alta e esbelta. Sua pele era muito pálida, como se nunca houvesse sentido raios de sol. Grandes olhos de mel olhavam assustados as pessoas que a encaravam, e seus lábios finos e rosados mantinham-se fechados, sem palavras. Cabelos dourados e ondulados foram cortados rudemente na altura de suas orelhas. Usava algo como uma armadura de bronze com grandes fissuras e um tanto enferrujada, e tinha grandes hematomas na face, incluindo um corte debaixo de seu lábio inferior que sangrava. Tinha um grande furo em seu ombro pelo qual vertia muito sangue. Expirou profundamente, tanto quando pôde e disse:

–Me chamo Joana... eu... eu... preciso de ajuda... eu... preciso...

E, tão repentinamente quanto iniciou a falar, tombou no chão, desacordada.


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Notas finais do capítulo

Esperamos que tenham gostado deste capítulo e que continuem acompanhando :3
Obrigado.
Lilith e Paganini
Obs.: Reviews são lindos e os amamos. :3



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