Malkuth escrita por Lilith, Sr Paganini


Capítulo 6
O taberneiro


Notas iniciais do capítulo

Bem, pedimos desculpas pela demora da postagem; estávamos com alguns problemas para postar logo, mas aqui está. Esperamos que gostem deste capítulo.
Boa leitura.
P.S.: Abaixo, dispomos um mapa para que a compreensão venha a ser melhor.
Lilith e Paganini



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Era um lugar realmente belo.

O sol estava amigável, lançando seus raios dourados; distribuía-os pelo jardim concedendo ao local uma aura sagrada. Os fachos que conseguiam atravessar as frestas das árvores exuberantes e cheias de frutos iluminavam a relva macia que cobria o chão, dando a ela magníficos tons de verde.Musgo, esmeralda, vivo.

Fontes de água límpida e brilhante estavam dispersas por ali. Chafarizes com lindas estátuas de mulheres estonteantes e pequenas quedas d’água, tornavam o ambiente mais fresco ao deixar o vento calmo, carregar consigo pequenas gotículas refrescantes que se mesclavam ao próprio ar.

As flores deitadas no solo e nas cercas vivas que se estendiam do chão como se se espreguiçassem, espalhavam vivas cores e doces fragrâncias espetaculares nunca aspiradas em nenhum outro lugar no universo. Elas existiam ali somente. Tão delicadas - com sua textura aveludada-, que pareciam acariciar os pés da mulher vestida de preto que adentrava o local.

Era extremamente bonita. Seus longos cabelos negros, tão escuros quanto um céu sem lua, beijavam-lhe a cintura fina. Seu corpo, curvilíneo, era alto e hábil; seus lábios, grossos e vermelhos. O que lhe faltava de luz em seus cabelos, lhe sobrava no ouro derretido em seus olhos. Era bela. Não uma beleza sensível e calma.

Possuía uma beleza rude, forte e dura. Seus traços faciais não transmitiam delicadeza, no entanto, seu corpo e seu rosto representavam uma beleza exótica e sensual, que ao mesmo tempo irradiava poder. Era extremamente diferente da mulher à sua frente. Ela estava sentada de costas para si, com os pés mergulhados em um riacho que brotava nas pequenas cascatas e desaguava no infinito.

–Oi Filha. Imaginei que viria aqui.

A mulher virou-se para a jovem, sorrindo-lhe.

Seus cabelos eram tão longos quanto os da jovem de pé, exceto pela cor; cinza. Seus olhos eram atentos e sábios, tão azuis como um vasto oceano. Sua face, tão pura e delicada. Tão jovem. Seu corpo esbelto e facilmente cobiçável, impunha respeito e expressava poder. O ar que saía de seus lábios entreabertos alimentava o mundo.

E a voz.

A sua voz era como uma orquestra com todos os mais finos instrumentos, com os sons mais belos existentes. Ressoaria pelo universo inteiro com apenas um sussurro. A sabedoria, experiência e amor eram notáveis em cada tom.

–Venha, filha... Sente-se ao meu lado. – Disse ela sorrindo. Seus dentes eram como estrelas. As mais brilhantes estrelas. – Até que enfim você decidiu vir visitar a sua mãe. Seu pai por acaso anda lhe prendendo em Daat?

A mulher de cabelos negros apressou-se a sentar ao lado de sua mãe.

–Fiquei sabendo que a senhora anda... Dando atenção demais aos... Humanos.

–Meu irmão anda lhe fazendo a cabeça outra vez, Aradia?

–E se fosse? Mãe, eu não consigo acreditar que você... A senhora, ainda consiga ter estômago para olhar por estes imundos que só fizeram desprezá-la. Desprezar-nos. A senhora mais do que todos sabe o que se passa...

–Sim, eu sei. É exatamente por isso que ando olhando para eles ainda mais. Aradia, você não pode ser tão egoísta assim. Você não vê? – A mulher apontou para baixo, sob as águas cristalinas do riacho, onde estavam os reinos. – Fome, peste, morte... Destruição. Eles precisam de nós...

–Eles precisam aprender. Eles precisam pagar pelos seus erros.

–Minha filha, por favor, entenda... Há pessoas que não merecem. Que não podem mais pagar por erros que não cometeram.

–E o que você... A senhora, pretende fazer? Mandar-me mais uma vez para ajudá-los mais uma vez? Não lhe passa pela cabeça que possuo outros afazeres e...

–Esta responsabilidade não lhe pertence. Imaginei que você tivesse se tornado tão fria e insensível. – Disse a deusa com serenidade, porém seu tom era cortante. – Daat traz conhecimento, mas também traz escuridão. Uma perfeita ironia.

–E posso saber quem pode ser melhor do que eu para fazê-lo? Você não pretende...

–Athame.

–Quem? – Aradia assustou-se e levantou rapidamente, a fúria lhe invadindo o corpo.

–Athame. Está escutando bem? – A deusa disse secamente.

–Escuto tolices... Não pode ser.

–Não... Escuta perfeitamente. Athame. Ela, minha protegida, minha filha...

Eu sou a sua filha. – Aradia falou assumindo um tom amargo.

–Não aparenta ser. Não foram eles quem me abandonaram. Você me abandonou. Você fez questão de ir ficar nas costas do meu irmão, seu pai. Lavei as minhas mãos, Aradia.

–Então será assim. É assim que a senhora deseja?

–É assim que você decidiu. – A deusa olhou para o horizonte.

–Tudo bem. Espero que realmente esteja olhando por ela.

Aradia, cheia de fúria, deu meia volta e partiu para fora dali. Não lhe importava nada mais. Não lhe importava mais ser querida ou amada por ninguém. Seu lugar sempre fora lá; na escuridão, no desconhecido.

Uma última lágrima amarga rolou por seu rosto pálido, caindo sobre um botão de flor que morreu antes mesmo de desabrochar.

A partir de então, tinha um propósito.

Acabar com Athame.

***

O vento ficava cada vez mais frio e cortante à medida que os jovens chegavam mais perto dos portões de Geburah. A cidade parecia morta. Toda a vegetação que existia ali estava seca e quebradiça. Nenhuma ave sequer ousava voar naquele céu; era como se temessem algo. Apenas alguns poucos corvos isolados, grasnavam nos altos galhos dos secos pinheiros, distantes o suficiente para não se assustarem e alçarem vôo com a presença das pessoas ali. Athame e Cycero estavam quase desfalecendo enquanto cambaleavam na direção da entrada pisando em folhas secas que faziam barulhos altos demais.

Grandes portões grossos de cobre se estendiam à frente, fechados por um grosso e pesado cadeado também do mesmo metal.Um grande e imponente muro de pedra se estendia ao redor do reino e sobre ele podiam ser vistos os topos das quatro torres simétricas.

Em frente ao grande portão que servia de entrada para o reino, dois homens – ambos altos e robustos- estavam de pé, imóveis, atentos a qualquer aproximação indesejada. Entreolharam-se quando os jovens chegaram mais perto com a intenção de atravessar o portal. Um deles -de cabelos brancos e pele tão quanto, chamado Aaron- pigarreou, a fim de fazê-los parar. Os dois usavam pesadas armaduras de ferro acobreado e em seus quadris, descansavam espadas um tanto enferrujadas.

–Parem! Quem pensam que são para sequer achar que podem adentrar facilmente em nosso sagrado reino, forasteiros?

–Quem vocês pensam que são para...

–Boas tardes, senhores! – Disse Cycero com um grande sorriso ao passar seu braço pelos ombros de Athame, apertando-a forte na intenção de fazê-la ficar calada. Recebeu em troco, uma forte cotovelada nas costelas. Ainda sorrindo, disfarçando a dor, continuou. –O dia vai bem, não é? O clima está tão... Agradável.

–O que querem aqui? Falem de uma vez.

–Bem, na verdade mesmo... Sabem o que queremos? – Cycero deu um passo à frente.

–Não, não sabemos. Tratem de falar logo, antes que sejamos obrigados a levá-los a um lugar que temos certeza de que não gostariam de ir. – Resmungou Bauron, o soldado de pele negra, olhos verdes e lábios grossos.

–Ah, n-não... Tudo bem... N-nós só queremos ver... N-nosso... – Pigarreou- Hum... Nosso tio...

–Seu tio? Quem é seu tio?

–Meu tio...?

–É, garoto! Seu tio. Quem seria o desgraçado?

–Meu tio... O... Hmm... O Rupert! Isso, o Rupert...

–Rupert? Aaron, você por acaso conhece algum Rupert?

–Humm... Na verdade conheço. Vocês são sobrinhos do Rupert, o Taberneiro?

–Claro! Meu tio Rupert, taberneiro... Sim, ele mesmo. Nós viemos aqui visitá-lo. Não é mesmo querida prima? – Girou a cabeça para trás pressionando Athame com o olhar.

–Ah, sim... Com certeza é ele. Sinto tantas saudades...

–Tudo bem, Bauron; pode ficar tranqüilo. Eu conheço o Rupert, é uma boa pessoa. Eu mesmo faço questão de escoltá-los até a taberna. Tudo bem?

Depois que o homem assentiu com má vontade e o ajudou a destrancar o cadeado com uma chave do tamanho de sua mão que tirou do cinturão da sua armadura – bem junto da espada-, Aaron conduziu os jovens para dentro da cidade.

Em Geburah, as coisas eram semelhantes às existentes em qualquer outro reino; ferreiros à beira da fornalha trabalhando o ferro, pilhas de feno espalhados pelo chão, mulheres segurando cestas com poucos frutos em seu interior e conversando entre si, crianças correndo umas atrás das outras, uma taberna com bardos e prostitutas.

E uma igreja.

Uma grande igreja com um grande sino e uma grande cruz.

O único aspecto que diferenciava Geburah dos demais reinos, é que sem sombra de dúvidas, o próprio reino gostava de impor a sua pouca riqueza em meio a tanta desgraça. Faltava água e comida e sobravam pestes, no entanto os detalhes em puro ouro se faziam extremamente visíveis. A grande cruz que em outros reinos era de madeira trabalhada, Geburah fazia questão de exibi-la em sua versão de ouro puro. Contudo, ostentava também altos muros em torno de si, para que ninguém pudesse ver a desgraça que ali reinava.

Frente à igreja, em uma praça onde as crianças corriam eufóricas, outro soldado um tanto atarracado levava para o centro da praça uma tora de madeira que logo pôs no chão. As mulheres que estavam próximas logo abriram seus olhos, visivelmente assustadas, e puxou cada uma seu filho, arrastando-os para dentro de suas pequenas casas.

–E então? Por que resolveram vir visitar o Rupert justamente hoje? – Aaron puxou conversa; tinha a expressão relaxada.

–Ah... Bem, há muito tempo não nos vemos... Achamos que seria um bom momento para...

–Sim. Entendi.

Com um rompante, outros três soldados apareceram carregando à força um homem que se debatia, tentando fugir das mãos rudes. O senhor vestia nada mais que trapos velhos e sujos, e aparentava ser muito magro.

–Eu sou inocente! Eu sou inocente! – O homem gritava com toda a sua força enquanto era arrastado para perto do tronco. – Eu sou inocente! Eu juro! Não fiz nada!

Athame e Cycero se aproximaram com Aaron em seus calcanhares, quando os soldados obrigaram o velho a ajoelhar-se frente à tora. As pessoas paravam seus afazeres para olhar o que estava acontecendo. As mulheres dentro de suas casas espiavam por detrás das cortinas. De dentro da igreja, um homem - mais parecido com um cavaleiro do que com um soldado- vestido com armadura também acobreada, porém com um manto vermelho jogado sobre seus ombros, veio em direção ao senhor ajoelhado com as mãos atadas por cordas, às costas. Era louro e poderia ser belo, no entanto possuía uma cicatriz horrorosa que lhe marcava desde o canto esquerdo da boca até a maçã do rosto. Quando parou, o soldado atarracado sussurrou algo em seu ouvido que o fez segurar sua espada e puxá-la; o velho gritou ainda mais.

–Por favor, senhor! Tenha piedade de mim! Foi só um pão! Eu estava morrendo de fome! Eu juro!

–Você sabe que cometeu um erro, velho.

O homem levantou a espada e um dos soldados empurrou com um dos pés, as costas do homem fazendo com que ele encostasse o pescoço no pedaço de madeira ali colocado.

–Você irá pagar! Todos irão. A fúria da deusa cairá mais uma vez sobre todos vocês.

O homem louro baixou a espada, decepando a cabeça do velho faminto. O sangue escorreu, voraz, pela madeira derramando então, no chão.

–E que isso sirva de lição a todos vocês! Estamos numa época de escassez. Qualquer roubo não será tolerado. Digo isso em nome do senhor.

–Amém. – As pessoas presentes disseram abaixando suas cabeças com resignação e depois, pouco a pouco, se dispersando e voltando a seus afazeres diários.

Aaron chamou os jovens mais uma vez, para que pudesse levá-los à taberna.

Chegaram a uma construção simples, de madeira e pedras. À medida que se aproximavam do local, Athame olhava com crescente desespero para Cycero. O que fariam depois que descobrissem a farsa? O que aconteceria a eles? Pediu à deusa em silêncio, para que tudo desse certo. O garoto ignorava os olhares urgentes da jovem, limitando-se a apenas olhar firme para frente.

Então, entraram na taberna.

***

Estava escuro.

Apenas um pequeno facho de luz, vindo de uma minúscula abertura no alto de uma das sete paredes, habitava o local.

O lugar era frio, úmido e fedia a urina forte.

O pequeno corpo da garota repousava jogado de forma doentia no canto mais oculto do calabouço. Pesadas correntes prendiam seus pezinhos e suas mãos. Sua cabeça latejava de dor, e o único remédio era permanecer em silêncio. Desde que fora levada para longe de sua mãe, irmã e avó, no dia anterior, não havia comido coisa alguma e em sua língua não havia tocado nem sequer uma mínima gota d‘água.

A menina chorara e gritara demasiadamente até chegar ali. Socara e chutara o ar, a procura da liberdade. Os soldados diziam coisas horríveis sobre sua família e, principalmente, sobre ela. Falaram sobre pecado; o que seria pecado? “O deus deles é tão malvado assim, que é capaz de mandar matar a mim e a minha família?”, se perguntara incontáveis vezes confusa e entre lágrimas.

A porta foi aberta e, por ela, entrou um homem com um grotesco elmo de ferro que cobria suas feições, tornando-o irreconhecível. Ele entrou pela porta olhando para os lados; parecia estar se escondendo. Segurava em sua mão direita uma cuia de madeira e um copo metálico. Andando pé ante pé e em silêncio, mantendo sempre contato visual com a garota que o olhava com ferocidade, o homem abaixou-se frente a ela e colocou no chão o recipiente com alguma comida qualquer e algum líquido no copo. Retirou seu elmo e revelou então uma horrenda face. Cicatrizes longas e fundas lhe cobriam as bochechas sardentas e terríveis dentes podres lhe preenchiam a boca. De seus lábios, brotava um ar pútrido e mortal enquanto ofegava.

Elizabeth chutou com força a cuia para o lado, fazendo com que uma comida nojenta voasse nas paredes. Levou suas mãos presas ao copo e jogou com raiva o líquido no rosto do rapaz. O homem então lançou-se sobre o corpo da pequena garota segurando-lhe com força o pescoço com uma das mãos e com a outra tampando sua boca.

–Socorro! Alguém me ajude! – gritava a menina por entre os dedos do rapaz.

–Cale a boca! Se eu fosse você sua vadiazinha, ficava bem quieta. Você não faz ideia do que lhe aguarda. – disse, empurrando a cabeça da garota contra a parede e ainda cobrindo sua boca. – O padre vai vir aqui usar este pequeno corpinho como sempre faz com as outras... Se bem que eu poderia ir amaciando a carne para ele, não é mesmo? – gargalhou alto jogando sua cabeça para trás.

A garota então, com todas as suas forças, mordeu a mão que lhe apertava os lábios fazendo com que o homem empurrasse a pequena cabeça com urgência contra a parede e gemendo ao segurar a sua mão ferida. A menina arfava e olhava com fúria o rapaz robusto que a encarava com ódio.

–Você não deveria ter feito isto. Não deveria mesmo.

Em um movimento rápido, o homem segurou novamente o pescoço sujo de sangue da garota imprensando a cabeça contra a parede e levou a outra mão aos trapos sujos que ela usava - e que, no dia anterior, fora um belo vestido de seda azul- puxando-o.

–Theodor, acho melhor você parar o que está fazendo agora mesmo. Não gosto que mexam no que é meu.

O rapaz assustou-se com a presença repentina do seu mestre e soltou rapidamente a garota. Olhou-o com medo do que poderia lhe ser feito.

–Eu não sou sua, seu velho imundo. – vociferou a menininha.

–Resposta errada, minha querida. – o senhor disse com um sorriso malicioso ao caminhar em direção à Elizabeth, que abraçava seus joelhos. – Saia, Theodor.

–S-sim, senhor. – O homem disse retirando-se rapidamente do local, fechando a porta atrás de si.

Elizabeth olhava com fúria para o homem que se movia lentamente em sua direção. Era branco e tinha a pele da face um tanto enrugada. Possuía olhos azuis gélidos e uma cabeça sem um único fio de cabelo. Usava vestes brancas e longas, e de seu pescoço pendia um crucifixo de ouro puro. Abaixou-se perto da garota e examinou-a com o olhar.

–Ora, ora, ora... Sem dúvidas você é bem melhor do que todas que eu já experimentei por aqui, garotinha...

–Saia de perto de mim.

–Hmm... Valente você, não? Eu gosto. Se bem que é mais conveniente que você fique bem quietinha. Sabe... Não é bom que as pessoas saibam. – Acariciou com as pontas dos dedos o bracinho arranhado.

–Não me toque.

–Olhe aqui, eu acho bom você ser bem boazinha. Deveria estar me agradecendo por eu lhe dar mais alguns minutos de vida antes de fazê-la arder em uma dessas fogueiras por aí. – O velho segurava o queixo da garota. A raiva e o desejo lhe transbordavam o corpo. – Você se meteu com o que não devia; agora você é minha. Faço com você o que quiser. E não vai demorar muito tempo para eu encontrar a sua família de pecadores e acabar com todos eles.

A garota matinha o olhar firme no rosto do padre, sem deixar transparecer o medo que estava sentindo. O medo do que aconteceria com sua família se fosse encontrada. Medo do que aconteceria consigo mesma dali a alguns segundos.

–Agora levante-se. Venha aqui. Sente-se no meu colo.

A menina permaneceu imóvel.

–Eu ordenei que viesse, sua putinha. – O velho disse entre dentes ao puxar com força o fino braço infantil.

Elizabeth, então, cuspiu no rosto do homem, fazendo-o tremer de ódio.

–Guardas! – Gritou. Homens altos vestidos com armaduras e segurando longas espadas entraram no calabouço e se aproximaram. – Levem-na. Agora, seus inúteis!

Os guardas se apressaram em golpear com suas espadas as correntes, quebrando-as. Um deles agarrou a garotinha pelo quadril e a ergueu do chão enquanto a mesma se debatia.

Antes que saíssem do ambiente, o padre do jeito que estava – ajoelhado- disse para a garota que estava tentando se libertar dos braços do guarda.

–Você realmente não deveria ter feito isso.

***

O local era envolvido pela penumbra.

Estava iluminado apenas por poucas velas que repousavam em mesas equidistantes e no balcão empoeirado.

À luz das velas era possível perceber a imensa quantidade de fumaça que pairava no ar. Homens visivelmente bêbados fumavam algo de odor extremamente peculiar.

Athame franziu a testa quando foi forçada a escutar aquela cacofonia terrível dos diabos. Alguns bardos tocavam velhas canções obscenas às gargalhadas, embriagados; outros homens também muito bêbados acompanhavam, erguendo seus copos. Outros rapazes conversavam sobre um assunto qualquer, enquanto acariciavam as pernas das prostitutas sentadas às mesas, metendo suas mãos por debaixo dos vestidos, fazendo-as soltarem risinhos e gemidos.

Um senhor um tanto baixo de costas curvas, estava de pé atrás do balcão virado de costas para a porta. Secava com um pano puído um copo de latão e, em seguida, enchia-o até a boca com uma bebida alcoólica qualquer.

–Rupert, meu caro! Como está você? Há tempos não venho aqui!

O homem virou-se ao escutar seu nome. Tinha cabelos acinzentados, olhos duros e barba por fazer. Sorriu ao ver Aaron vindo em direção ao balcão. Pôs a bebida em cima da madeira lisa e ofereceu-lhe a mão para um cumprimento.

–Aaron, há quanto tempo mesmo... Senti sua falta. Minhas prostitutas não são mais tão galanteadas e nem o meu vinho anda saindo tão rápido dos barris. – Gargalhou com o próprio comentário. – O que o traz aqui hoje a essa hora?

–Vim aqui por acaso, trazer os seus sobrinhos que o vieram visitar. – Disse olhando para trás, vislumbrando os rostos sem expressão dos jovens.

–Meus... O que?

–Seus sobrinhos, ora... Venham aqui, meninos. Cumprimentem o seu tio.

Rupert observou, confuso, os dois jovens que saíam detrás do soldado, cabisbaixos. Cycero olhou significativamente para o homem, seus olhos pedindo ajuda.

–Oi... Tio.

–Mas o que...?

–Oi titio. Há quanto tempo nós não nos vemos, não é? – Athame disse.

Rupert parou por um instante e analisou toda a situação. Ao entender a mensagem que o garoto de cabelos encaracolados lhe queria dizer, ele falou com um sorriso largo.

–Oh sim! Meus sobrinhos queridos... Mas que saudades de vocês! Como vai sua mãe, han...?

–Athame. Vai bem, senhor.

–Sim, Athame. Que bom que vocês estão aqui agora. E você...

–Cycero, senhor.

–Você parece muito com seu pai.

–Sempre me dizem isso...

–Bem, vocês devem ter feito uma longa caminhada. Judith, minha filha, venha cá. Venha ver os seus primos.

Uma garota de cabelos cacheados e louros saiu de uma porta, que deveria levar à cozinha. Usava um vestido decotado velho e um avental sujo de comida. Franziu a testa ao vê-los, mas não disse nada. Apenas olhou para seu pai, que lhe deu uma piscadela de cumplicidade, e sorriu para os jovens inclinando-se em uma graciosa reverência.

–Parecem cansados... Minha filha, leve-os para dentro e dê a eles algo para comer e para beber. Em seguida, prepare um banho para ambos, vestes limpas e uma cama para descansarem. Vieram de muito longe, e precisam da nossa hospedagem, sim?

–Sim senhor, papai.

A garota então pediu que os jovens a seguissem para além da porta.

Entraram em uma cozinha pequena, onde um caldeirão fumegava na lenha que queimava. Tinha um cheiro muito bom. Pratos e mais pratos estavam empilhados e sujos em uma espécie de pia rudimentar, esperando para serem limpos.

Saíram pela porta oposta à da entrada, e seguiram por um corredor tomado por uma grande penumbra. Apenas alguns poucos castiçais com velas acesas iluminavam o caminho. Os passos dos três jovens ressoavam altos e ecoantes pelo espaço, fazendo um barulho fantasmagórico.

No fim do corredor uma porta os aguardava, entreaberta. Judith empurrou-a com cautela e lentidão. Em seguida, acenou para que os outros dois a acompanhassem até o pequeno cômodo.

Era algo como uma casa em um único quarto. Havia duas camas no canto mais distante do cômodo e, entre elas, um pequeno móvel com gavetas. Sobre ele, um pequeno castiçal prateado repousava. No lugar também havia um armário com roupas, uma mesa, algumas cadeiras, duas estantes com muitos livros e uma janela, que dava para uma rua deserta. Uma branca cortina velha, meio rasgada, tentava ocultar o que havia dentro do quarto, sem muito sucesso.

–Eu... Vou buscar algo para vocês comerem e beberem... E prepararei um banho. Bem... Podem ficar à vontade.

Judith saiu do cômodo, deixando Athame e Cycero sozinhos mais uma vez.

A garota sentou-se na cama, apreensiva. O rapaz lentamente veio e sentou-se ao seu lado, tomando em suas mãos as da garota. Acariciou seus dedos e deu-lhe um sorriso. Athame olhou-o e sentiu algo estranho em seu estômago. Seu sorriso era realmente muito lindo...

–Fique calma, Athame... Vai dar tudo certo. Eu estou aqui. Eu cuidarei de você...

Sentia uma grande vontade. Vontade de abraçá-lo... Vontade de lhe beijar a face... Os lábios...

O corpo alto e forte do rapaz se aproximava cada vez mais do seu, tão pequeno e esguio, e suas mãos tocavam sua cintura. Os lábios de Cycero roçavam seu pescoço com suavidade e sua respiração acariciava sua nuca com delicadeza. A ponta de seu nariz tocou o fino lóbulo de sua orelha. Cada parte de Athame era como um fio desencapado; cada centímetro de seu corpo estava arrepiado. Seu coração cavalgava em alta velocidade e o ar lhe faltava.

De forma repentina, imagens horríveis vieram em sua cabeça. O modo como John lhe tocara. A forma como lhe puxara os cabelos. Os tapas fortes em seu rosto e o jeito rude e doloroso com que lhe penetrara.

–Não... Por favor...

–Você quer, Athame... Eu sinto que me deseja também... Eu a quero. – Cycero levara uma de suas mãos ao seu pescoço e com a ponta dos dedos, tocava levemente o couro cabeludo, massageando-o. Seus lábios teciam uma trilha de beijos lentos em sua mandíbula, a caminho da boca entreaberta.

–Não... Eu não posso... Eu... Por favor... – A garota sussurrava.

As lembranças continuavam a atingir-lhe violentamente. Os gritos da sua mãe. O modo como a torturava. O modo como o homem torturava a si própria, amarrando forte suas mãos atrás do corpo e obrigando-a a fazer coisas que ela não queria. O rosto de John pairava em sua mente.

As lágrimas lhe vieram ao rosto de forma feroz. Queimavam-lhe a face. Seus olhos ardiam e sua cabeça doía. Sentia medo. Medo do que pudesse lhe acontecer. Medo do toque gentil do garoto.

–Não! Pare! Solte-me! – Athame empurrou Cycero na cama e afastou-se rapidamente. Ficou de costas contra a parede, ofegando, com o rosto molhado.

–Athame... O que ouve? Eu fiz algo ruim? Eu lhe machuquei? Por favor, perdoe-me... Eu não queria... – O rapaz, com a testa franzida, disse preocupado e sem entender coisa alguma. Levantou-se e se aproximou da garota que chorava convulsivamente, de cabeça baixa.

–Eu... Eu... Não sei... N-não sei...

–Conte-me... Por favor... Deixe-me lhe ajudar...

–N-não... Não posso...

–Athame... Confie em mim... Estou aqui para lhe ajudar e proteger. Eu sei que faz pouco tempo... Mas eu sinto... Eu sinto como se a conhecesse a muitas eras... Meu coração... Bate somente por você, menina. Deixe-me fazer algo por você, por favor... – Cycero abraçou-a, afagando sua cabeça. Athame voltou a chorar violentamente, com o rosto enterrado no peito do rapaz. Depois de um tempo chorando, Cycero tomou-a nos braços e levou-a para a cama mais uma vez. Enquanto a garota se recuperava, ele pegou um jarro de barro e despejou água dentro de um copo próximo. O rapaz observava-a beber rapidamente a água. – O que aconteceu? Você pode me contar?

–É ruim, entende... Falar sobre isso...

–Bem... Se não quiser, não precisa. Não quero te perturbar.

–Não... Mas eu preciso... Eu confio em você.

–Confia? – Cycero observou cuidadosamente Athame manear a cabeça.

–O John... Aquele imundo... Você sabe...

–Sei... Você me disse que ele estuprava a sua mãe... Filho da puta.

–Sim... Mas... Bem... Ele me estuprou também, Cycero... Eu também sou uma vítima fraca daquele imundo...

–Como? – O rapaz murmurou entre dentes, a raiva tomando-lhe o corpo. Cerrou as mãos e pôs-se de pé. Seu corpo tremia de ódio dos pés à cabeça. – Ele não fez isso...

–Fez... Ele fez... E eu lembro-me disso quase todos os dias... Foi horrível, Cycero; você nem sabe o quanto foi horrível. Sinto-me tão envergonhada... Dói lembrar disso... E me sinto mal também, por que... Bem... Quando você me tocou... Eu lembrei... Cycero, eu sinto medo... Eu sou uma fraca...

– Ei... Por favor, não chore... Não tenha medo, eu estou aqui e sempre estarei. Eu irei lhe proteger, Athame. Irei lhe proteger com a minha vida. Cuidarei de você. – O garoto, já mais calmo, voltou a abraçá-la. Secou-lhe as lágrimas com cuidado. – Eu sou seu. Farei tudo o que quiser, minha pequena. Mesmo que você não me queira... Mesmo que você me odeie... – Riu -... Meu coração será sempre seu.

–Eu... Eu não o odeio...

–Já é um começo. – O rapaz deu o sorriso que Athame mais amava. Pegou uma mecha de seu cabelo e prendeu-a atrás da orelha. – E, bem... Não se preocupe. Não irei tocá-la, se não quiser.

–Mas... Eu quero... Só não consigo...

–Eu entendo. Como eu sou uma pessoa deveras paciente e compreensiva... – Sorriu mais uma vez, fazendo Athame morder o lábio inferior. Seus olhos estavam vermelhos e inchados. -... Eu irei esperá-la. Não lhe pressionarei e não farei nada que não queira, tudo bem?

–Tudo... Obrigada, Cycero.

Judith adentrou novamente no recinto, desta vez trazendo consigo uma cesta quadrada. Tirou de dentro dela duas tigelas com uma sopa pastosa, dois pães, duas maçãs e um odre de vinho e pôs tudo em cima da mesa de madeira que estava no centro do cômodo. Convidou os jovens para sentarem-se à mesa e começarem a comer.

Ambos retiraram suas espadas junto com os demais objetos que carregavam – o mapa, o poema e os trapos da boneca- e ocuparam seus lugares nas cadeiras pesadas; rapidamente, em questão de poucos minutos, devoraram toda a comida que havia sido trazida. Recostaram se, satisfeitos, enquanto saboreavam uma pequena quantidade de vinho.

Judith havia saído. Estava preparando o banho e voltou pouco tempo depois que os jovens tinham terminado de comer. Dirigiu-se ao armário e pegou duas mudas de roupa limpa; uma sua para Athame, e uma de seu pai para Cycero. Entregou a eles as peças e conduziu-os até o banheiro.

–Vocês podem deixar as peças sujas aqui neste barril que eu mesma as lavo depois. Fiquem tranquilos, ninguém entrará aqui enquanto vocês estiverem usando. Só penso que seria melhor se você – Apontou para Cycero – ficasse aqui com a garota. Nunca se sabe quando um bêbado pode errar o caminho da saída. Vou ajeitar as camas para descansarem. – E saiu, deixando-os ali.

Cycero e Athame entraram no pequeno recinto. Nada de muito luxuoso, apenas alguns baldes com água limpa e algo semelhante a uma banheira.

–Vire de costas.

–Sim senhora...

Quando Cycero virou-se, Athame começou a se despir. Entrou na banheira pondo inicialmente os pés e puxou o fino tecido estendido que dava mais privacidade ao banho. A água estava morna e reconfortante.

–Já pode se virar se quiser...

O rapaz voltou à sua posição inicial e viu a sombra do corpo de Athame. Observou o contorno delicado das discretas curvas da garota e imaginou-se beijando-as... Tocando-as com as pontas dos dedos... Acariciando sua pele suave... Suas mãos em seu corpo delicado... Os gemidos fracos dela em seu ouvido... Seu corpo queimava. Nunca sentira-se assim.

–... Cycero? Quer fazer o favor de me responder, garoto?

–Ahn, oi?

–Traga a toalha, por favor...

Depois que a garota secou-se, vestiu-se e saiu do recinto, Cycero despiu-se e foi também tomar um banho. Frio. Bem frio.

Athame voltou para o quarto e encontrou Judith fechando o armário.

–Tomei a liberdade de limpar e guardar suas armas aqui dentro. Não se importa, sim?

–Tudo bem... Obrigada.

–Imagino que queira descansar agora... Fique à vontade.

Athame deitou-se na cama macia, e caiu no sono.

Teve um descanso sem sonhos.

***

Athame acordou.

Pensava ter dormido por dias, quando na verdade havia repousado apenas por algumas horas. Levou seus olhos na direção da janela; já havia escurecido. O quarto estava iluminado por velas e por dois archotes acesos nas paredes. Fazia frio dentro do quarto, independente do fogo que crepitava e da janela fechada. O frio estava presente em qualquer situação naquele reino.

Cycero estava sentado nos pés da cama lendo atentamente um grosso livro com capa de couro. Percebeu que a garota havia acordado e dirigiu-lhe um grande sorriso. Judith estava sentada no peitoral da janela fechada alinhavando algo. Com um rompante, Rupert, o taberneiro – o mais recente tio-, entrou no cômodo. Murmurou um “boa noite” e foi a passos largos diretamente ao odre de vinho esquecido sobre a mesa. Encheu um copo metálico e sentou-se em uma das cadeiras. Enquanto dava grandes e longos goles da bebida, olhava atentamente os jovens sentados na cama.

–Papai? O senhor não deveria estar na taberna?

–Sim, deveria. Mas hoje tive que fechar mais cedo. Preciso descobrir o que se passa aqui.

Olhou ameaçadoramente para Cycero e Athame, aguardando explicações.

–Vamos! Quem vai me explicar primeiro? – Bateu com força o copo na mesa, fazendo algumas gotas de vinho derramar na tabula. Levantou-se da cadeira, arrastando-a no chão. – Ou será que eu tenho que descobrir sozinho? – Deu um forte soco na mesa.

Os três jovens olharam assustados o homem encurvado com o olhar sombrio.


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Notas finais do capítulo

Realmente esperamos que tenham gostado.
Obrigado por lerem, e continuem lendo