O Peregrino escrita por Deusa Nariko


Capítulo 9
Capítulo IX


Notas iniciais do capítulo

Nono capítulo.
Boa leitura!



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O Peregrino

Capítulo IX

Ho no Kuni (País do Fogo), dias atuais.

Horas após o término do procedimento cirúrgico, eu jazia deitado em um leito de hospital ainda um pouco desorientado devido aos efeitos reminiscentes do anestésico; a luz do fim de tarde varava as janelas descortinadas e o vento frio e invernal acariciava-as de tempo em tempo.

Uma enfermeira cansada vinha conferir os meus sinais vitais a cada meia hora, mas exceto por estas pequenas minúcias que meu cérebro captava, eu estava quase aéreo, extasiado com a sensação de poder sentir meu braço esquerdo outra vez.

Não sei se posso me referir a esta parte do corpo como propriamente minha, uma vez que foi desenvolvida em tubos de ensaio com base nas células do homem que em eras passadas foi proclamado “o deus dos Shinobis”.

É estranho não chamá-lo meu, entretanto, porque meu membro fantasma se foi e agora eu tenho outro de carne e osso novamente. Há quase uma hora, eu o tenho olhado fixa e obstinadamente, o braço largado entre os lençóis de linho macios. Mas não ousei movê-lo um centímetro que fosse.

O calor do sangue corre pelas veias que não me pertencem, os pelos se eriçam ante a brisa gelada e incomplacente, os músculos se contraem involuntários e então tornam a relaxar.

Tenho agora somente uma tênue cicatriz no antebraço que comprova a perda do meu membro, uma linha suave quase invisível na brancura da tez, facilmente ignorável e, ainda, não desejo ignorá-la; é a prova de que eu superei o meu passado enfim, conquistei a remissão pelos meus pecados, me tornei um homem digno.

Tudo, desde o formato das mãos de palmas quadradas aos dedos longos e até as unhas estreitas, imita com uma perfeição enervante o meu membro direito. Eles são iguais, eu percebo, com uma expressão que beira o ceticismo. Não porque duvido das habilidades de Tsunade, mas porque concluo que isso me incomoda e eu não compreendo a razão.

É estranha essa sensação... Se sentir inteiro outra vez. Ela custa a ser assimilada por minha mente embevecida e quando o é eu me torno inesperadamente hostil à parte estrangeira afixada ao meu próprio corpo.

Não sei se é exatamente um sentimento de rejeição, mais se assemelha à culpa. Meu braço esquerdo, o braço do Chidori... Por tantas vezes mirei-o em Naruto, em Kakashi e até mesmo, em um incidente lamentável, em Sakura. Ceifei vidas inocentes com esse braço e feri inúmeras outras de uma forma irreparável.

Tê-lo perdido anos atrás foi como perder uma parte abominável de mim mesmo que intentou ferir as pessoas mais próximas a mim. E, contudo, eu percebo como a tolice entremeou-se no meu cérebro: aquele braço não pertence a mim, não ao velho eu, mas a um novo, a um homem que está se desconstruindo para reconstruir-se novamente.

O alívio soçobra no fundo dos meus pensamentos como uma rocha que perturba um lago plácido; isso me acalma. E, num ímpeto de adrenalina, eu me sento sobre a cama, tendo o cuidado de não mover meu braço esquerdo um centímetro sequer.

Com as costas apoiadas nos travesseiros, eu volto a minha atenção para ele: o membro estrangeiro que desejo desesperadamente reconhecer como meu. Respiro fundo e, antes que eu consiga assimilar que meu cérebro ordenou o movimento, minhas terminações nervosas enviam o comando e, mais rápido do que um relâmpago cortando o céu, o meu dedo mindinho se move sobre o lençol minimamente.

Sufoco um riso debochado e minha expressão inerte acaba se tornando uma careta quando meus outros dedos o seguem, um a um, levantando e abaixando, tamborilando silenciosamente no colchão fino. Sinto a textura dos lençóis nas pontas dos dedos, o calor que irradia do meu próprio corpo e eles diligentemente reservam. Os pelos finos tornam a se eriçar quando o vento invernal sopra.

Não me surpreendo quando meu punho inteiro se cerra, os dedos flexionando-se sem parar; quase posso sentir o atrito das articulações nunca antes usadas e isso me excita. Uma mão é calejada, experiente, até mesmo sábia: já provou do sangue, da dor, do toque amigável e do amor. Mas a outra é ingênua e está finalmente pronta para descobrir o mundo.

Eu estou pronto, enfim.

Descobrir isso, essa verdade que eu estivera escondendo de mim mesmo por temer não ser bom o bastante, faz os meus lábios se repuxarem em um sorriso despretensioso.

Ainda não me recordo da última vez que sorri assim.

— Pensei que a Baa-chan tivesse te recomendado repouso — Naruto comenta com um divertimento ínfimo enquanto se aproxima de mim com passos sigilosos.

Caiu a noite em Konoha e as temperaturas despencaram significativamente. A noite está limpa e serena, contudo. Eu estou debruçado sobre a balaustrada que cerca a ravina acima do monumento dos Hokages: um pé apoiado na grade de ferro, os braços cruzados contra o peito e o olhar perdido em algum ponto acima dos telhados das residências dos aldeões.

Naruto suspira e usa uma mão para bagunçar sua cabeleira dourada já despenteada por conta do vento forte aqui em cima.

— Velhos hábitos dificilmente morrem. Certo, Sasuke?

Eu sorrio de canto para ele, mas meu corpo mal se move.

— O que está dizendo? Você também vivia burlando ordens médicas e estava sempre escapando do hospital para treinar e comer ramen.

— Isso é — ele concorda ao abafar um risinho, memorando os velhos tempos. — Sinto até um pouco de falta dessa época... Nossas picuinhas, Sakura-chan nos apartando quando ultrapassávamos algum limite e o Kakashi-sensei sempre se atrasando.

— É — eu concordo, fechando os olhos só por um momento para também me entregar à nostalgia agridoce daquelas recordações.

Tanto aconteceu e tanto mudou e, ao mesmo tempo, é como se estivéssemos ainda na estaca zero. Como se mesmo depois de tudo ainda fôssemos aqueles Genins desajeitados que nada sabiam a respeito de trabalho em equipe e de quão cruel o mundo Shinobi pode chegar a ser. Ou ao menos, eu e Naruto já tínhamos uma boa noção disso.

— Sei que você vai achá-la, Sasuke. Onde quer que ela esteja, ela está te esperando... Eu sei.

Desperto com as palavras de Naruto, com a intensidade esmagadora e dolorosa daquelas sentenças.

— Como pode confiar tanto assim em mim? — eu despejo sem pensar e a raiva efêmera que sinto não está direcionada ao Naruto, mas a mim mesmo.

— Bom, você é meu melhor amigo e é o meu irmão — ele me responde com aquele tom convicto que no passado sempre me deixou sem reação, sem palavras para retrucá-lo. — Irmãos supostamente acreditam um no outro, dattebayo!

— Usuratonkachi — eu sibilo entre os lábios que involuntariamente se afastam num sorriso.

— Ei, você também é um bastardo, sabia? — ele me devolve a provocação e eu resolvo ignorá-lo.

Quando eu penso que não me dirá mais nada e o silêncio adensa entre nós, ele torna a falar com um tom grave dessa vez, sério. Meu âmago se comprime com as suas próximas palavras:

— Eu sempre soube dos seus sentimentos pela Sakura-chan.

Ouvi-lo dizer isso é quase como um baque para mim, tanto que recuo da balaustrada, afetado e assustado como um bicho ferido.

— Do que está falando? — Infelizmente, meu timbre treme, como todo o meu ser; são velhos hábitos que dificilmente morreriam como ele próprio afirmou.

— Nah, nem se dê ao trabalho, Sasuke. Eu sempre soube. Desde a época em que frequentávamos a Academia. Eu só nunca quis admitir para mim mesmo. Sabe, a forma como vocês se olhavam, a forma como você não se incomodava quando ela se sentava ao seu lado. Toda aquela sua fachada de “não me toque” nunca me convenceu, não quando se tratou da Sakura-chan.

Naruto assentiu consigo mesmo... Pareceu-me constrangido de repente.

— Você foi a razão de eu ter me interessado pela Sakura-chan, Sasuke. Porque eu prestava atenção em cada reação sua quando estava perto dela. Eu não queria perder para você em nada, então achei que se conquistasse a garota que você gostava eu te venceria. Eu era bem idiota, não é?

Fico em silêncio porque a verdade é que não sei o que dizer a ele. Nunca conversamos sobre isso antes e esse ainda é um terreno inexplorado para mim.

— E aí quando nós três fomos parar na mesma equipe eu pensei que seria a oportunidade perfeita para roubá-la bem debaixo do seu nariz. Mas aconteceu exatamente o oposto: eu vi a forma como o laço entre vocês dois foi se aprofundando e se fortalecendo ao ponto de, aquele dia no hospital quando você acordou e ela te abraçou, eu me conformar que a Sakura-chan era tão sua quanto você já era dela.

“Quando você foi embora da vila, a Sakura-chan implorou para que eu te trouxesse de volta e eu prometi a ela que faria isso porque, àquela altura, eu já tinha me conformado que o quê vocês dois tinham nada conseguiria destruir ou separar.

“Nos anos que se seguiram, eu vi a Sakura-chan crescer e ficar mais forte com o propósito de te salvar e eu sabia que o que ela sentia por você ainda estava vivo, talvez mais forte do que nunca.

Ele pausou inesperadamente e o único som dentro de mim era o ribombar violento no meu peito; meus pensamentos estavam todos vazios, todos emudecidos. Minha garganta estava seca, mas eu me recusava a mover um centímetro que fosse.

— Aí, no país do Ferro, logo depois de sabermos que você tinha se unido à Akatsuki, a Sakura-chan veio até mim para tentar me convencer que não te amava mais, que tinha te esquecido. Ela me pediu para não ir mais atrás de você.

Eu o fitei assustado, em choque, mas ele rapidamente emendou:

— É claro que a primeira parte era mentira. Eu soube disso no instante em que ela me disse. Mas não a culpe por isso, nós estávamos passando por maus bocados naquela época e até mesmo eu estava perdido, sem saber o que fazer... Como lidar com você.

— Foi quando ela decidiu tentar me matar — eu reflito com um tom sombrio.

Sinto como se estivesse desconectado de mim mesmo, como se fosse um espectador passivo e distante daqueles eventos que aconteceram há tanto tempo. Memórias daqueles dias de escuridão ainda retornam para me assombrar de tempos em tempos.

— É, foi. Mas eu sei que ela também planejava morrer contigo naquele dia. A Sakura-chan não suportaria ter o peso da sua morte sobre os ombros. Ela nunca te deixaria sozinho, Sasuke. Mesmo na morte. Ela queria te tirar da escuridão a qualquer preço porque ela sabia que você estava sofrendo.

Foram essas as palavras que Kakashi usou para descrever as atitudes de Sakura no dia em que eu tentei cortar meus laços pela última vez: ela sempre quis me salvar, ao passo que eu rechaçava cada tentativa dela de se aproximar de mim. Ou ao menos eu pensei tê-lo feito, efetivamente.

— Eu também vi a forma que você reagiu à Sakura-chan quando ela disse que te amava, Sasuke — Naruto prosseguiu alheio à confusão de sentimentos que despertava dentro de mim. — Quando eu percebi que aquilo não me afetava, não mais, eu tive ainda mais certeza que vocês dois... Bom... — ele não deu continuidade à sua linha de pensamento, mas ela era irritantemente previsível. — Eu sei que a Sakura-chan pode te fazer feliz e eu também sei que você pode cuidar dela do jeito que ela merece.

Senti o vento frio no meu rosto e cabelo, através do linho da minha blusa.

— Eu quero que você experimente o que eu estou experimentando, Sasuke.

— Humpf, é mesmo um usuratonkachi — eu murmuro, mal disfarçando um meio sorriso.

— Eu acho que já é hora de você parar de se culpar pelo passado e recomeçar, ‘ttebayo!

Ele resfolega no ar frio e cerra seu punho enfaixado ao batê-lo no peito para enfatizar as próximas palavras:

— Encontre a Sakura-chan, Sasuke!

Eu vou. Quero dizer a ele, prometer se for necessário. Porque a verdade é que eu também quero. Desejo desesperadamente, para ser franco. Um recomeço, uma página em branco, outra chance. Apenas uma.

Somente uma oportunidade e eu farei valer a pena.

Ho no Kuni (País do Fogo), três anos antes.

— E é aqui que você vai ficar por um tempo, Sasuke-kun — Sakura me mostrou a modesta quitinete que Kakashi ofereceu para me instalar, uma das poucas vagas já que uma pequena parte da vila ainda estava passando por reformas ou tendo de ser construída do zero depois do ataque da Akatsuki.

O distrito Uchiha havia sido reduzido a escombros da mesma forma que o restante da vila, eu havia comprovado isso por mim mesmo no dia que voltei ao Templo Nakano para reviver os quatro Hokages, durante uma guinada inesperada da Quarta Guerra Ninja — isso graças a Nii-san.

Mirei os únicos dois cômodos com certo desinteresse: uma cozinha com alguns armários (que Sakura abasteceu mais cedo) contígua a um quarto com uma cama de solteiro estreita e um guarda-roupa solitário. Atrás de uma porta, eu pressupus estar localizado o banheiro.

Era simples e de certo modo aconchegante; ao menos, eu teria privacidade e não teria mais de dormir em um leito de hospital.

Sakura estendeu o braço para alcançar um interruptor que eu não havia notado ainda e no instante seguinte a claridade artificial banhou todo o cômodo.

— É pequeno, mas acho que vai servir — ela comentou com entusiasmo, parando bem sobre a divisão da cozinha com o quarto com as mãos nos quadris.

— Hn — eu murmurei monossilábico e ela sorriu para mim.

— Você deve estar cansado. Vou te deixar descansar, tudo bem?

No entanto, antes que ela pudesse passar por minha figura estática e soturna e seguir na direção da porta, eu a detive: meus dedos se fecharam em torno do seu pulso delicado, retendo-a ao meu lado.

— Sasuke-kun, algum problema? — ela questionou, adejando os longos cílios para mim enquanto piscava confusa.

Respirei fundo, mas meu enlace em torno da sua pele não arrefeceu. Fingi não notar que Sakura estava começando a ruborizar devido à minha atitude suspeita. Então, antes que desse a ela a impressão errada, eu a puxei comigo em direção à cama e a soltei.

— Sente-se — disse-lhe com uma cortesia persuasiva.

Mesmo aturdida, ela fez como eu lhe pedi: sentou-se recatada, as mãos cruzadas sobre o colo e, no entanto, eu não consegui deixar de notar o modo como o tecido de sua saia agarrou-se aos seus quadris e coxas. Balancei a cabeça, irritado comigo mesmo e com a natureza imprópria dos meus pensamentos. Virei-me de costas para sua silhueta porque achei que assim seria mais fácil.

— Tenho que te contar uma coisa, Sakura — eu confidenciei e a ouvi arquejar às minhas costas.

— Sasuke-kun, o que houve?

— Não vai ser fácil — eu a interrompi logo em seguida antes que ela se preocupasse ainda mais comigo e com o meu bem-estar. — E será uma longa história.

Olhei-a por cima do ombro e a vi assentir, a expressão grave, os olhos nitidamente pincelados com nuances de angústia, entre a mescla harmoniosa de suas íris verde-oliva e esmeralda.

— Estou ouvindo, Sasuke-kun — garantiu-me e eu aquiesci para prosseguir.

— Eu vou te contar porque me uni à Akatsuki depois da morte do Nii... Depois da morte do Itachi — eu me corrigi apressadamente e fiquei surpreso em como as palavras brotavam na minha boca tão facilmente.

Sem repressões, sem receios, sem dúvidas.

Espiei a expressão de Sakura novamente e dessa vez a encontrei tensa; suas mãos agarravam a barra de sua saia, seus dedos nervosos o torciam.

— Eu vou te contar porque quis destruir Konoha uma vez — reiterei com uma amargura tangível e desbordante em minha voz.

Era hora de contar à Sakura toda a verdade, todo o meu passado doloroso. E enquanto eu criava forças para começar de algum lugar, talvez da história da fundação da Vila ou da rivalidade entre Uchihas e Senjus, eu só conseguia pensar em como me sentiria mais leve depois que desabafasse tudo com ela, depois que despejasse aqueles sentimentos conflitantes do meu peito diretamente em suas mãos.

Ela sempre me ouviu no passado e eu anelava para que me ouvisse uma vez mais. Para que Sakura, de alguma forma, encontrasse uma forma de acalmar a tempestade no meu ser, como ela sempre acalmou.


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Notas finais do capítulo

Perdão pela demora, mas como estou trabalhando agora, será normal ter alguns atrasos entre as postagens.
...
A explicação do interesse do Naruto na Sakura é verídica e é mencionada no The Last. Ele se interessou pela Sakura não porque ela gostava do Sasuke, mas porque o Sasuke correspondia os sentimentos dela ainda na época da Academia. Até o tapado do Naruto notou isso HUEHUEHUEHUEHUEHUEHUE
...
Próximo cap., o Sasuke parte em direção à Taki para procurar sua amada *-*
...
Enfim, obrigada a todos pelos reviews lindos. Espero que comentem nesse também! Eu tinha que aproveitar o feriado para escrever O Peregrino porque tava me dando angústia ver a Fanfic tão parada ASHAHSAHSHAHSHA
...
Até o próximo!