Mentira repetida muitas vezes passa por verdade escrita por Aphrodite Laclair


Capítulo 1
e o tempo é como o vento


Notas iniciais do capítulo

raiza, tu é fantástica. sério. fiquei até meio nervosa de ter te pegado nesse amigo secreto porque eu te acho muito massa mesmo, sensacional. e eu espero do fundo do meu coração que essa fic te agrade, porque eu gostei muito de escrever. ♥



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Mentira repetida muitas vezes passa por verdade

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A lembrança da felicidade já não é felicidade, a lembrança da dor ainda é dor.

Lorde Byron

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Johanna acompanhou o Hunger Games em que Katniss participou. O primeiro. Toda a Panem acompanhou, é verdade, mas o que os outros faziam não costumava interessar a ela (ela que não tinha mais nada a perder, tudo já havia sido morto e destruído), então era costume que ela não assistisse aos jogos. Ela assistiu esse. A Arena era cruel, a floresta e a desidratação, embora não exatamente a pior de todas — é particularmente horrível quando algo grotesco se torna tão banal que você até pense que poderia ter sido pior.

Johanna não entende por que fez isso. Talvez seja a roupa brilhante ou todo o papo de amantes desafortunados, ela não sabe realmente, pode ter sido apenas aqueles olhos cinzentos — Katniss era linda, mas não da forma como a própria Johanna foi linda nos seus próprios jogos, não linda de um jeito suave e que passa despercebido, que faz você olhar algumas vezes antes de reconhecer que há beleza ali, mas linda de um jeito meio destrutivo. Apesar de tudo, Johanna achou que ela ia morrer. Se preparou para assistir a morte dela. Torcia, entretanto, para não ser de uma forma muito horrível; nada de pescoço estraçalhado pelos dentes de algum outro competidor (aquilo foi um pouco desnecessário, Enobaria) ou ser golpeada com uma pedra bem em seu belo rosto até virar uma coisa difícil de definir, apenas vagamente humano. Ela iria morrer e Johanna iria assistir, e então a vida seguiria seu curso: mais crianças para orientar, mais mortes para ver acontecer, o coração apertado mas não surpreso. Nunca surpreso.

Ela não morreu.

Se existe um ponto de ruptura para ser apontado, o momento em que Katniss deixou de ser uma bela garota e se tornou uma igualmente resplandecente mulher, mas muito mais perigosa, esse momento aconteceu aí. Bem aí. As amoras e a não-morte. Johanna encarou fixamente a própria televisão, vagamente chocada, mais do que um pouco admirada: foi aí. Katniss era alguém que ela queria conhecer — mais que isso, Katniss era alguém que ela iria conhecer. Os próximos Hunger Games. A vez que a garota que sorriu na carruagem apadrinharia suas próprias crianças. O momento em que o que sobrou de sua alma finalmente quebraria e o encanto de paz que poderia ter sido incentivado com essa vitória se dissiparia.

Elas iriam se conhecer e, Johanna apostava, iria ser interessante.

O segundo Hunger Games da vida de Johanna foi horrível. Foi horrível até mesmo pelos padrões do que ela imaginava. Porque ela tinha esperanças: um sentimento quente em seu coração que começou a ser construído, hesitantemente, como se testando o terreno, quando ela pisou na Capitol pela primeira vez e sentiu a adoração desprezível. Mas o sentimento foi construído em cima de areia e ruiu, o castelo escorregando e sendo engolido pelo mar.

A mulher do elevador é quem ela é. Sorriso provocador protegendo a garota que nunca saiu da Arena de verdade. Palavras maliciosas e roupa escorregando pelo seu corpo — é quem ela é. O cabelo longo sua única proteção, as unhas roídas de ansiedade ano após ano.

Entrar naquela Arena pela segunda vez foi o inferno. Finnick estava em algum canto, não avistável ainda, mas com muita sorte cumprindo sua parte do plano. Ela mal havia falado com Katniss, que parecia uma pessoa tão singular. Nada naquilo era o que ela esperava, mas enquanto se jogava na água salgada, braçadas e mais braçadas, atrás de uma arma que pudesse usar para defender a si mesma, obrigou-se a pensar em qualquer outra coisa. Sair correndo em direção a floresta, puxando os outros três inúteis aliados atrás de si, nada naquilo era o que ela esperava. Mas correu. Correu porque era uma sobrevivente, correu porque não ia ser uma garota assustada nunca mais. Correu.

E o sangue caiu. No começo parecia muito com água, e então ela levantou o rosto para o céu, desesperada, e abriu a boca — era sangue. Ferroso, grosso e quente. Sangue. Ela tropeçou para longe do inferno mais uma vez, o inferno que era quente e vermelho, e um dos seus bateu no campo de força: fácil assim estava morto. Johanna não parou para lamentar. Não havia mais mortos para enterrar depois que tudo já havia se perdido. Conseguiu ir longe, de volta na margem, enfim na Terra e não mais em um dos círculos infernais mais profundos. Finnick veio correndo na sua direção, braços estendidos em abraço, e era como casa. Cabelo loiro e brilhante. Olhos azuis como a maré.

Houve plano e todos eles foram para longe. Ela ficou sozinha, de novo. Sozinha para todo o sempre. Na sala escura e então os gritos, a água e a dor. Eletricidade. E era como um sonho, seu corpo amortecido, a garganta ferida e gritava e gritava e gritava. Perdida na solidão. Lágrimas corriam e inundavam o mundo que se transformava num rio de tristeza sem fim. Elétrica pelo seu corpo. Sozinha para todo sempre, sozinha com a dor.

Ela foi salva, foi o que disseram. Salva. O momento em que finalmente, finalmente a dor sumiu. Era morfina, as doses tão controladas, tão pequenininhas, e a dor tão imensa, o buraco no seu peito. Tudo depois disso é borrão, um mundo de acordar e adormecer e correr e lutar e fugir. Anestesiada. Nada mais para ser destruido, nada mais para ser morto. Ela mesma, a última que restava — no quarto lambendo suas feridas. Sua toca era uma cama de hospital.

E então tudo ficou bem, disseram. Porque não existia mais Capitol e Hunger Games mas eles não entendiam — você nunca saiu da Arena, nunca desde a primeira vez em que pisou nela. Nada nunca ficaria bem. Mas você ia se curar. Os machucados iam fechar. As cicatrizes ficariam, eternas, para te lembrar do que você é: uma sobrevivente. Correr e lutar e matar para sempre seu primeiro instinto.

Mas o que se faz quando a vida segue seu curso naturalmente e não há ninguém para machucar? O que se faz depois que você enterra seus mortos — depois de fechar os olhos azuis de Finnick em sua memória e colocar uma flor entre seus dedos?

Johanna procurou Katniss, então.

Porque ela se lembrou de antes da dor e da morfina, se lembrou que assistiu como Katniss era bonita e brilhante na sua roupa que pegava fogo. E como ela segurou aquelas amoras venenosas com tanta segurança, como se matar e morrer fosse só mais um passo em direção a um objetivo maior. Johanna a procurou na sua casa queimada no Distrito 12 e ela estava lá, o cabelo preto amarrado num rabo de cavalo alto, cortando umas flores no jardim. Johanna nem sabia que ela gostava de jardinagem. Se aproximou, os lábios erguidos em algo que pretendia ser um sorriso mas que era mais uma careta bagunçada de dor — psicológica, física, tudo dóia o tempo inteiro —, uma curva suave de um velho riso provocador. A garota do elevador é quem você ainda é, presa em algum canto da sua alma, lamentando o que se tornou, uma imagem quebrada num espelho velho. Katniss ergueu os belos, belos olhos cinzentos e não disse nada. Porque ela se lembrava, também, de como era antes da vida pisotear sua alma até virar pó. Se lembrava de antes da Arena.

É por se lembrar que Katniss diz você quer entrar? E é em nome da mulher que tinha coragem de tirar a roupa num elevador para um conhecido e dois estranhos que Johanna responde eu adoraria.


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