Retalhos escrita por Ana S Passos


Capítulo 17
A Poesia Começa




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A poesia começa. Na ambiguidade sinuosa dos homens, por exemplo, nos furúnculos da bipolaridade, depois do gozo no cinema; começa em emoções tuberculosas, diferente dos enlatados americanos onde jamais começou a pulsar; de repente, ao meio dia que palpita a rotina visceral, no jeitinho do bonde cheio de pernas, depois dum crackar democrático, que foi golpeado; e começa a poesia naqueles joelhos caducos de precaução, como sonâmbulos sóbrios, e eles se movimentam rumo ao labirinto da juventude; como se os joelhos aguardassem o bamba do samba; na vanguarda orquestrada pelo caminhar das mulatas; e começa a poesia nas vaias diante dos relinchos políticos, entre miados e ululados monótonos; e cá e lá, léguas da felicidade; às vezes começa a poesia no retrato abstrato da vida dadaísta, fruto dos talhados a golpes de machado; mecanicamente, no inferno, como se fosse tagarelice; no guardanapo do bar a poesia pode começar; na semântica ridícula do escapulário do ateu; no meio, no termo, no datilógrafo e na grilagem engavetada; quando questiona-se a pronúncia e espírito de Portugal, onde putos pode ser outra coisa, a poesia pode começar; na vivacidade moribunda; no luto à beira da estrada, depois da chuva melancólica de novembro; no velho tantas vezes sepultado, às vezes asilado por décadas, mas mesmo em decadência, construindo períodos de concretismo niilista entre o breve e o infeliz dos encontros dominicais; em estações subterrâneas, cinzas, entorpecidas pelo medo, onde há mais aperto cotidiano que alteridade; e a poesia começa nas supimpas expressões que vencem outonos, vagando eroticamente ao som de djavaneios; em calendários maias; nas trilhas da inflação cíclica, a pé, de ônibus, de táxi, meia volta, volver; em manifestos malfeitos a poesia revoluciona e começa; na morte a poesia começa; nas desilusões a poesia raia; em São Paulo a poesia inunda, no sertão, vira mar; em Salvador, Carnaval; em Brasília, Aborto; um julgamento infeliz, a poesia começa; um julgamento preciso, e a poesia começa; na festa estranha dos orgasmos múltiplos; às vezes começa no mesmo compasso em que termina, com o mesmo par, diante dos mesmos céticos; e muitas vezes começa em tabaco e fumaça, dissipada entre pensamentos sórdidos; e começa no trânsito latino-americano; na releitura de Clarice; e começa entre muitos Severinos, iguais em desgraça; e começa depois que a chama da transa serviu de agasalho; nos olhos que se abrem, nos olhos que se fecham; às vezes não começa e é simplesmente esquecido como um abraço do pai; às vezes a poesia começa de uma paixão que nunca deveria ter existido; mas pode começar com beijos ligeiros e doces; um abraço, amigo ou inimigo, e começa a poesia; no preço feijão; o cravo; no meio; no caminho; na pedra; na agressividade de Áries, no transtorno de Virgem, nos amores de Libra; no humor de Sagitário; em todos os planetas a poesia começa; em qualquer ascendência a poesia começa; sem nenhum motivo a poesia começa; para se dissolver no luar sob dois perdidos numa noite suja e a qualquer minutos a poesia começa.


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