Concurso Apocalipse 2012 – Preparar. Apontar. Fogo escrita por Layla Glêz


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Que os físicos, astrólogos e todos os estudiosos deste ramo me perdoem pelas atrocidades que tive que cometer. Porém, para a ficção, não há limites entre o possível e o razoável.Boa leitura!
(Atualizada e alterada em 09/04/2017)



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PREPARAR

Respiro fundo. Minhas costas roçam a parede fria, o sol deita lentamente no horizonte, a claridade ofusca meus olhos.

Eu sei que, em breve, a escuridão cairá e ela não virá sozinha.

Depois dela, tudo estará perdido.

— Uma última chance para mudar de ideia.

Não era uma pergunta, porém o silêncio e um olhar de desdém foram a minha melhor resposta. O homem calvo que a fez coçou a própria barba, rala e branca, e esboçou um meio sorriso, declarando para o outro:

— Afaste-se, faremos segundo o protocolo.

Ele obedeceu, dando uma dúzia de passos cronometrados, não chego exatamente a contar, e seu rosto me evita quando nós dois escutamos:

— Preparar.

Levanto o queixo, determinada a cair de pé, fixando os olhos dele como se fosse capaz de refletir a bala que virá em minha direção. Ouço o engatilhar da arma e o outro homem diz:

— Apontar.

O braço dele se ergue, dou um meio sorriso teimoso.

Minha mãe estará esperando com biscoitos feitos por ela. Posso até sentir o cheiro invadir o apartamento onde morávamos. Fecho os olhos. Meu pai estará dedilhando uma música no velho violão, sentado na poltrona enquanto a TV muda passa imagens do jornal.

— Fogo! — A voz do outro homem grita.

Abro um sorriso largo, satisfeito.

Então ele atira.

APONTAR

 Horas antes.

A chave gira na fechadura. A porta metálica abre com um ranger igual a o berro de um animal em agonia. Desconfortável, ergo a cabeça. Logo vejo que as roupas rasgadas daquele rosto estranhamente familiar tinham sido substituídas por trajes militares.

Traidor.

— Ao entardecer — fala, sucinto como sempre. — Algum último desejo?

Rio e devo parecer louca por fazê-lo tão alto, arrasto-me em sua direção, ignorando o quanto as correntes me puxam, notando a grossa sobrancelha erguida em minha direção. Até que finalmente digo, com a garganta seca:

— Só um.

Ele aguarda, pelo complemento que não dou, não até que pergunte:

— Qual?

— Puxe o gatilho.

Ele hesita, pisca algumas vezes, parece atingido por minhas palavras e o pensamento me faz sorrir. Pouco importa, mesmo que parte de mim esteja satisfeita com isto. Após um período de silêncio, engole em seco e fala:

— Não precisava ser assim, Nara.

Há tanto carinho em sua voz que me irrita. A risada que escapa pela minha garganta é amarga e sem humor.

— A partir do momento que decidiu nos trair, Dave, ficou claro que seria assim.

­— Não... — Ele hesita. — Você poderia me dar as informações que eles querem, então seria solta.

Eu rio outra vez, histérica. Devo parecer louca, mas a ideia é apenas absurda demais para uma resposta melhor. Falta saliva para prosseguir aquela conversa. Nós dois sabemos que ela não terminará em lugar algum.

— Não seja idiota — digo. — Todos nós preferimos morrer a isto.

— Então não há nada que eu possa fazer — lamenta-se.

— Não, não há. — Ele está prestes a sair quando eu complemento: — Exceto por enfiar uma bala na minha cabeça. — Não sei se ele se surpreende com minhas palavras, pois apenas gira os calcanhares e para na porta, segurando a maçaneta. — Eu estarei esperando ansiosamente por isto, querido — sussurro.

O barulho alto da porta ao ser batida com força exagerada indica que ele ouviu cada sílaba.

Quando estou só, minha barriga ronca, minha cabeça lateja, a luz branca ofusca meus olhos e uma sirene toca. Levo as mãos à têmpora. O alarme me faz lembrar daquele som que tinha ecoado — anos atrás — pelas cidades, imergindo tudo em caos e confusão.

As coisas não foram sempre assim. Não costumávamos ser bichos lutando pela própria sobrevivência. Alguns já tiveram vidas pacatas, cercadas de paz e monotonia. Com problemas mais fáceis que a falta de água mundial.

Só de pensar que reclamávamos daquela época tenho vontade de rir outra vez.

O irônico é que nós fomos avisados. Era 21 de dezembro de 2012 quando as coisas começaram a mudar. Aquela profecia maia não acertou a data do fim, mas acertou seu princípio.

O início da extinção.

Lembro das as sirenes, tocando à meia-noite. Todos os canais televisivos reportavam uma anomalia física, especialistas falavam com seus termos complicados e ninguém entendia nada. Mas ficava claro uma coisa: o nosso sol seria responsável por enviar uma onda eletromagnética, tão potente e tão atroz e específica que transformaria a água do mundo em vapor, em questão de dias. Seria como viver dentro de um micro-ondas.

Começaria ao alvorecer na Ásia e, a medida que o mundo girasse, atingiria todo o globo.

Alguns repórteres trataram como piada, outros, com descrença. Parecia uma brincadeira de muito mau gosto, um dessas pegadinhas onde alguém espera pela sua reação.

Não demorou, entretanto, até as primeiras imagens serem televisionadas. Os níveis do mar caíam drasticamente, os rios rasos secaram em horas. As imagens de uma Ásia em destruída e em polvorosa eram repetidas todas as horas.

Era tudo verdade.

Desde então, dizer que a sociedade correu contra o tempo parece eufemismo. Na verdade, entramos em colapso.

Lojas eram saqueadas, a água acabou em cidades em minutos. Os produtos não perecíveis esgotaram logo em seguida. Os preços variavam tanto que a população desistia da compra e roubava. Os comerciantes se armavam e em pouco tempo não havia diferença entre os bandidos e os homens ditos de bem.

O caos se instalou por completo. Mães se perderam de seus filhos, irmãos se separaram. Houve quem só quisesse salvar a própria pele, mas também quem desejou salvar o maior número possível de pessoas. Entre estes últimos, estava meu pai.

Carros foram abandonados nas ruas no segundo dia, em meio a congestionamentos sem fim. As lojas terminaram vazias, saqueadas ou com seus estoques escondidos e protegidos por grupos paramilitares. As pessoas buscavam abrigos do sol, o calor era insuportável e não havia boa notícia. A tendência era ficar pior.

Sondamos os arredores da cidade. Havia uma caverna inexplorada não muito longe, talvez um bom lugar para se esconder. Meu pai ajudou a coordenar a evacuação. Como militar, ele conseguia controlar grandes grupos de indivíduos e possuía meios de se proteger. Eu não lembro o número de pessoas salvas, ainda menos de quantos ficaram para trás. Mas a memória das pessoas fugindo é clara assim como a do primeiro confronto.

Era tolice esperar que outros não quisessem roubar a nossa água.

Desde aquela primeira emboscada, ficou claro que enquanto estivéssemos vivos, éramos um risco. Se antes o mundo era um lugar hostil, agora ele era um verdadeiro inferno. Onde todos eram demônios.

Meu pai morreu para nos defender. Ele caiu atirando.

Minha mãe morreu pouco depois, de tristeza suponho. Ela nunca foi o tipo que se adaptaria a condições tão adversas.

Isto foi há mais de dois anos e, apesar de muita coisa ter mudado, o som daquela sirene ainda me assombra.

O grupo fechou a entrada da caverna e, por dias, recebemos notícias apenas por rádios — quando havia sinal. As coisas demoraram a se estabilizar, a caverna nos protegia do calor de fora, mas a humidade era pouca e os suprimentos deviam ser administrados.

Poucos feridos sobreviveram. Eu não fui a única a perder parentes, raro era encontrar quem não tivesse perdido ninguém. Os dias eram incertos e a noite parecia não acabar. Ninguém soube dizer quanto tempo tinha passado até podermos sair.

Quando caminhamos para fora da segurança das cavernas, tomamos conhecimento da proporção do desastre. A destruição. Os corpos. Humanos ou animais que pareciam ameixas secas, irreconhecíveis no meio da paisagem queimada. Aqui e acolá você podia encontrar figuras juntas. Seriam pais e mães? Crianças? Ninguém sabia. Se eram pessoas que antes tinham uma história, agora eram apenas uma pilha de carne seca.

O cheiro da decomposição também era forte. Um verdadeiro inferno. Até a temperatura conspirava a favor da sensação de caminharmos pelo purgatório. Havia um silêncio entre nós que falava das vidas perdidas. As árvores, secas, queimadas, ajudavam a compor ainda mais o cenário pútrido.

Buscando seguir em frente, a maioria foi a procura de suprimentos, tentando ignorar tudo a nossa volta.

Entretanto, a surpresa veio com uma dura verdade quando, no lugar de um belo e profundo rio, estava uma vala, seca, retorquida, repleta de esqueletos ao fundo. O chão partido, as rochas quentes. O céu límpido era devastador. Os lábios rachados e o suor que escorria pela pele evidenciavam a verdade que ninguém era capaz de admitir em voz alta.

Não tínhamos água. Em canto algum.

Por ironia, ou zombaria de alguma divindade, as cidades de concreto permaneceram intocadas, imutáveis, imponentes, alheias a tudo. Exceto por sua população que, ou estava nas pinturas grotescas de uma fuga malsucedida, ou tentava encontrar uma maneira de sobreviver.

Enquanto procurávamos por algo que nos mostrasse alguma esperança, percebemos que os raios continuavam atrozes, ainda que mais fracos. Evacuamos outra vez, agora sem o conflito que nos marcara antes.

A decisão de voltar à caverna não foi consciente. Nós não tínhamos a opção de ficar.

Depois disto, sobrou a rotina da escavação. Os suprimentos e recursos eram poucos e os riscos de sair eram altos. Durante aquela época, não encontramos outro grupo de sobreviventes, não com o tamanho do nosso. Chegamos a criar uma pequena cidade subterrânea, voltada para a estrita necessidade de moradia.

A água estocada acabou pouco depois e a caça se tornou sinônimo de sobrevivência. O sangue dos animais abatidos servia de substituto para matar a sede. Mas eles eram raros, assim como as idas à superfície. A comida era retirada de rações que nunca quis saber de onde vinham, tampouco tinha um gosto bom. Tudo era reaproveitado, nada podia ser desperdiçado.

Higiene pessoal era um luxo que não existia, os cabelos — alguns longos e sedosos feito o que eram os meus — foram raspados ou cortados de maneira curta e arcaica. A vaidade passava longe, as crianças viviam doentes e os recém-nascidos morriam de inanição ou desidratação. Nós sabíamos que era só questão de tempo até sermos extintos e, às vezes, dizíamos que felizes eram os mortos.

Ainda assim, lutávamos para continuar vivos. O porquê? Não sei. Talvez por alguma crença de que desistir da vida é covardia, ou por sermos todos teimosos.

Certo dia — algumas semanas após o término da água potável restante — um grito trouxe aquilo que todos tinham medo de sentir:

Esperança.

— Água! Encontramos água nas escavações!

O rebuliço foi imenso. Inicialmente, parecia que a loucura estava finalmente chegando aos trabalhadores. Ninguém teria acreditado no homem que corria com uma picareta na mão, não fosse as mangas de sua camisa, completamente encharcadas e não pelo suor.

Depois disso, todos correram para ver, sentir e provar.

Houve festa, alegria. Estávamos felizes e acreditávamos que ali estava a solução para nossos problemas. Uma salvação.

Até que a notícia se espalhou. Não sei como, só lembro que foi por causa da água que sofremos o segundo ataque. Do outro lado, pessoas iguais a nós, armadas até os dentes, buscando a mesma sobrevivência.

Teríamos sucumbido naquele ataque, não fosse a genialidade ou loucura de explodir e selar a entrada da caverna. Fomos jogados na escuridão. Soterrados, mas provocamos baixas a eles.

Porém, era preciso sair. Mesmo com a água, precisávamos de comida e o solo rochoso não permitia o plantio. Os grupos de expedição foram montados e, desde então, se abria uma nova e estreita entrada durante a madrugada e, em dois dias, ela era fechada. A cada semana havia patrulhamentos de superfície, feito por voluntários, normalmente pessoas que já não tinham o que perder, ou por quem voltar.

Obviamente, fui uma das primeiras a me alistar.

Apesar da pouca idade, fui aceita, mostrando-me capaz devido ao treinamento feito nos acampamentos que meu pai me mandava — a maioria militar. Nunca pensei que o treinamento de sobrevivência seria tão útil, além das lutas corporais e uma mira razoável. Obedecíamos todos a Joff, um homem, mais velho, cuja história era um mistério e não interessava a ninguém, contanto que ele fosse competente nas empreitadas.

Foi em um dos patrulhamentos que cometi o pior erro da minha vida.

Confiar.

Era parte da rotina, ir as cidades para procurar qualquer coisa, nunca havia sobreviventes, mas sempre havia lanternas consertáveis, suprimentos médicos, roupas e outros objetos que poderiam valer a pena.

— Nara, fique na entrada, se alguém estiver vindo, não hesite em puxar o gatilho — disse-me Breno, o líder do nosso pequeno grupo, moreno, alto, largo, parecia sempre estar pronto para qualquer coisa, enquanto entravam nos restos de uma farmácia.

Concordei com um aceno de cabeça. Mal sabendo que, ao ver um trôpego homem, completamente coberto por panos rasgados eu não conseguiria puxar o gatilho.

“Prepare, aponte e atire!” A voz do meu pai ecoou na minha mente numa dolorosa lembrança. “Prepare, aponte e atire!”

Assim como não fui capaz de obedecer a Breno, não obedeci a voz dele. O homem tropeçou, cambaleou e caiu no chão poucos metros de distância.

E eu corri para socorrê-lo.

— Ajudem! — gritei. — Há um sobrevivente aqui! Ajudem!

Pensei que tinha demorado tempo demais até que alguém correu ao meu encontro, era Breno, e estava possesso:

— Nara! Eu falei para não abandonar sua posição! Enlouqueceu?

Reuni toda a coragem, ou falta de senso que tinha, e falei:

— Não poderia deixá-lo aqui para desidratar como todos os outros, será que já não morreram o suficiente?

— E se ele for dos grupos inimigos?

— Foi deixado para trás, olhe para suas roupas, deve estar perdido há dias!

— Mas de onde ele veio antes disso? Pense, Nara! Não temos o suficiente para mais um!

— Mas necessitamos de outro par de mãos, Breno, sempre precisamos de mais alguém nas escavações, ou nas patrulhas.

Ele me olhou, desafiador, deveria pensar se aquiescia ou não ao meu pedido, senti-me uma criança com um novo animal de estimação. Por fim, disse:

— Ele estará sob sua responsabilidade. — Respirou fundo, como se esperasse que eu desistisse e acrescentou: — E veja se ele acorda, não desperdiçaremos suprimentos médicos com alguém que já pode estar morto.

Acenei afirmativamente com a cabeça e voltei minha atenção para o homem coberto de retalhos. Não sei quanto tempo levei para reanimá-lo, mas sei hoje que eu deveria tê-lo deixado lá.

Ou melhor, deveria ter sido eu, e não ele, a puxar o gatilho.

Semanas passaram. Seria idiota negar hoje que alto surgiu entre nós. Um sentimento sem nome, sem linhas definidas e sem conceitos românticos. Mas, se havia algo que a extinção iminente nos tinha mostrado, é que não adianta se preocupar com o amanhã sem olhar para o agora.

Eu só fui uma idiota ainda pior por simplesmente me deixar levar. Porém, nós nunca pensamos que podemos perder tudo. Ou que a traição viria de quem se estendeu a mão.

Como ele nos traiu? Uma jogada de mestre.

Admitiu fazer parte de grupos rivais. Conquistou nossa confiança com algumas informações internas, dizendo os dias e horários de ataques para os quais, supostamente, não estávamos preparados. Acertava alguns, errava poucos, e quando finalmente alguns líderes estavam quase convencidos, nos deu uma informação precisa de localização e contingente de um pequeno exército que estava prestes a nos atacar, aquilo pareceu uma oportunidade de virar o jogo, sair da defensiva para o ataque.

Tentador demais.

Ainda assim, visando a segurança da maioria, apenas um grupo reduzido foi enviado. Iriam aqueles dispostos a se arriscar, os demais reforçariam as defesas, trocariam as saídas para posições fornecidas apenas aos líderes e membros mais antigos. Nem todos saberiam todas as entradas, para em caso de captura não entregarmos todas as localizações.

Marchamos por dia e meio, com paradas pontuais para descanso. Assim que os avistamos eles, montamos um acampamento próximo, em um local onde a visão era privilegiada, mas eles não podiam nos ver com tanta facilidade.

No amanhecer do segundo dia, notamos a emboscada. Era tarde demais para voltar.

— Armem-se! Estamos sendo atacados! — gritou alguém sobre as vozes dos demais.

O caos tomou conta. Ouvia-se apenas o som dos tiros, a marcha do pelotão. Desnorteados, assisti muitos sendo mortos ainda ao se erguer em confusão. Vi o abate de líderes e amigos. Atirei em alguns tantos também, mas para cada baixa deles, parecia haver dez nossas.

Porém, meu choque rapidamente foi substituído pela cólera ao vê-lo, imponente, comandando forças inimigas.

“Prepare. Aponte. Atire!” a voz do meu pai disse outra vez.

Dessa vez, mirei rapidamente e enquanto estava com o dedo no gatilho quando o clique metálico ecoou na minha nuca.

— Você vem conosco.

Dave se aproximou, como se fosse um rei em meio ao inferno.

— Traidor! — Cuspi a palavra, repleta de novo por ter me envolvido com ele.

— Um homem em missão. — Ele ergueu as mãos em um gesto defensivo. — Convenhamos, nunca fui bem-vindo por aqui...

Seu deboche me atingiu, ferino.

Puxaram-me com força, arrastando-me do cenário devastado como uma boneca velha.

Os próximos dias foram de torturas e perguntas, as quais me orgulho de não ter respondido senão com gritos ininteligíveis e xingamentos.

Até aquele instante que ele entra na minha cela, vestido com uma armadura negra, sua pele albina contrastando em assustadora perfeição. Os olhos frios e azuis longíquos o suficiente para que não me preocupasse em desvendá-los. Sei que não sou mais útil, sei também que eles não conseguiram a informação que queriam, que ninguém diria como entrar.

Eles querem me quebrar, me fazer contar a verdade. Mas minha fúria não permite nada além de respostas ousadas. Devo estar louca, há muito perdi o senso, mas quem se importa?

— Tenha ao menos a decência de enfiar uma bala no meu crânio — falo, para o vazio, querendo que Dave me escute, que minhas palavras cravem nele uma ferida similar a que ele me causou.

Quero ter uma arma em mãos e sua cabeça na mira.

Quero puxar o gatilho.

Quero matá-lo, por mais que isto me mate também.

Sofro com a imagem de seu corpo flácido, mas seu rosto vivo me causa asco. Já não sei qual das duas visões é a pior.

Mas é ele quem tem a arma e é minha cabeça que está na mira. Ele puxará o gatilho.

Fecho os olhos. Espero a escuridão tardia.

FOGO!

Mas ela não vem. Em seu lugar, escuto o baque surdo de um corpo. Estou sonhando?

Devagar, abro os olhos, topando com os azuis de Dave. Procuro a marca de bala na parede, mas ela não existe. Eu ouvi o tiro! Como posso não estar morta?

Então meus olhos baixam, para o corpo do velho decrépito, o sangue escorrendo por sua testa, os olhos vidrados no infinito. A voz de Dave me desperta do choque:

— Não agradeça, apenas devolvi o favor.

— Não pretendia agradecer — digo, ainda desnorteada. — Você me deve muito mais que só isto.

Ele me devolveu um meio sorriso seco, entregando a arma em minha mão. Dando dois passos para longe, abrindo os braços e falando:

— Se acha que isto sana nossa dívida, atire. Vamos!

Aponto a arma para ele, disposta a puxar o gatilho. É a voz de Breno que me impede, o choque em saber que ele está vivo.

— Nara! Nara!

— Breno...? — voltei a atenção para o homem que corre em minha direção, correndo com uma perna machucada — Você está vivo! Como...?

Meus olhos encaram Dave, vendo o irritante sorriso presunçoso em seus lábios.

— Esse daí nos tirou das celas horas atrás, agrupou todos, matou alguns guardas deles... Não estou interessado em motivos, vamos voltar, precisamos nos reagrupar antes que um novo ataque venha. Irá conosco? — A pergunta não foi para mim, mas para o albino que mal nos encarava, parecendo fascinado com o sangue de seu superior.

— Hum? Não. Tenho desculpas a dar. Creio que agora minha dívida está paga. Nara...

— Sim? — pergunto, querendo saber onde ele queria chegar.

— Da próxima vez que nos encontrarmos, não somos amigos, não somos amantes. Somos atiradores em lados opostos.

— Claro — falo seca, já me voltando para ir embora. Quando ele me puxa e seus olhos encaram os meus com um sorriso que apenas nós dois entenderíamos.

— Da próxima vez, prepare a arma, mire — respira fundo, colocando meus dedos em sua testa — e atire. Não ouse falhar.

— Preparar, apontar, fogo. Tudo o que somos não é?

Ele me sorri e esta é nossa despedida. Sei que o encontrarei novamente, sei que ele estará do lado inimigo e, assim como eu, atirará em mim.

Mas isto não importa.

Estou viva.


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Notas finais do capítulo

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