ApocalipZe escrita por Sr Devaneio


Capítulo 26
MaZ é claro que o sol vai voltar amanhã [FINAL]


Notas iniciais do capítulo

Só aproveitem. Foi feito com sentimento, acima de tudo.
*Créditos a Legião Urbana pelos trechos da canção aqui transcritos.*



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 *Anteriormente:*

Mãos no capô antes dos joelhos. Ficar de pé e manter o equilíbrio.

Um, dois passos... impulso.

Mãos e pés no capô.

Não caia, por favor.

Isso, levantando... já!

Só mais dois carros.

Aproveite o momento!

— Por que essas caras? – pergunto para o pessoal, já em terra firme.

— Isso foi bem prático. – disse Verônica, sentada no tubo da bicicleta com Thiago nos pedais, antes de se virar para frente.

— Obrigado. Foi um desejo de infância realizado... Podemos continuar?

Finalmente sentei no banquinho de couro, Emi à minha frente.

— Gostei dessa ideia – ela disse quando retomamos o caminho – curtir os detalhes que não existiam antes de tudo isso... Realmente gostei, garoto!

— Obrigado...

E aquilo me fez refletir.

Detalhes que não existiam antes...

Quer dizer então que o tal fim do mundo teria nos aberto novas possibilidades?

*

 

 

DIA Z + QUATRO MESES.

“Mas é claro que o sol vai voltar amanhã. Mais uma vez... Eu sei...”

“Três dias. No píer.” Emi dissera.

“Escuridão já vi pior de endoidecer gente sã. Espera que... o sol... já vem...”

Já haviam se passado sete. Não haveria mais ninguém em lugar algum esperando por mim.

Eles tinham desistido.

Sentado na beirada d’água, eu deixava que minhas pernas balançassem centímetros acima das águas do Lago Paranoá enquanto refletia pela última vez em como minha vida era e de tudo o que tinha passado para terminar assim. Ao mesmo tempo, era presenteado com um belíssimo pôr-do-sol: os raios alaranjados faziam a água brilhar em uma tonalidade quase mágica. Havia uma brisa refrescante e o clima estava um pouco melhor. Tudo isso só porque eu ia morrer. Certeza!

Vida, você é a maior sacana de todas as coisas!

Continuei cantarolando a música do Legião Urbana porque estava com ela na cabeça, enquanto admirava aquele belíssimo pôr-do-sol.

A pistola em minhas mãos brilhava sob os últimos raios solares do dia, meu último dia. Apreciei a beleza mortal daquele objeto uma última vez antes de erguer e encostar o cano em minha têmpora direita.

Eu queria que meu último pensamento fosse bom. Não necessariamente algo feliz, mas bom, pra fazer todo esse inferno ao menos chegar perto de valer a pena até aqui. Porém estava difícil encontrar algo bom no mar de depressão que minha mente se encontrava atualmente, mesmo com a música.

Sei lá, essa música, na verdade, me parecia meio apocalíptica. Devia ser os contextos geral e pessoal em que eu me encontrava. Só podia ser...

“Mas é claro que o sol vai voltar amanhã... Mais uma vez.”. Mas não para mim.

— Não para este garoto — apontei para mim mesmo –. Desculpe Renato, mas eu desisto.

E tinha desistido mesmo.

Preparei-me para apertar o gatilho quando ouvi o som de outra arma disparar não muito longe dali. Uma voz surgiu, tendo como fundo a trilha sonora do choro de um bebê.

— Aqui, estou aqui! – mais um tiro – Venham até mim e deixem-no em paz, seus filhos da – xingou.

Feminina. Apavorada. Urgente.

— AQUI, seus filhos da mãe. Isso. VENHAM EM MIM!

Uma pobre coitada tentando salvar seu filho. EU já até via a cena que acontecia de algum lugar por entre algum bar próximo. Que lugar para se morrer, heim dona! – Heim, Enzo...

Não era da minha conta, de qualquer forma...

— Se deu mal, heim moça? Que droga. Você também?! – falei comigo mesmo – Se bem que... bom, morrer no Pontão do Lago Sul sem dúvidas não é para qualquer um. Mas você roubou a minha ideia, isso me chateia...

Claro, ainda tinha o bebê choroso.

— SOCORRO. SOCORRO! ALGUÉM ME AJUDE, PELO AMOR de Deus...

Era óbvio que ela chorava. E chorava tanto que sua voz até perdeu intensidade no fim da frase.

Chorava com um desespero de mãe.

Mas eu não tinha nada

— Socorro!

A ver

— Por favor, se tiver alguém me ouvindo,

Comigo...

— Apenas salve meu bebê. Só isso. EU IMPLORO, TEM QUE TER ALGUÉM ME OUVINDO! NÃO É POSSÍVEL, DEUS!!! – ela encheu o peito de ar e gritou com toda a intensidade do seu ser – SOCORRO!

A arma em minha mão abaixou.

Que merda, um bebê. Por quê sempre há bebês nessas horas?! Estamos em um lugar bonito, de gente rica, com um pôr-do-sol maravilhoso... Eu só queria morrer em paz num lugar onde as refeições mais simples custavam o preço da mensalidade do meu transporte escolar vendo meu último sol morrer comigo!

Nem me dei ao luxo de reparar o momento em que me virei e comecei a correr na direção da voz. Apenas refletia no que estava acontecendo comigo.

Deus, se eu conseguir ajuda-la, Você me deixa entrar no céu depois do suicídio? Só desta vez...

Outro tiro. Depois mais um.

Não corri muito pelo Pontão. Lá estava ela, apenas alguns metros depois da área de alimentação onde eu me encontrava anteriormente: de pé, vestindo uma camisola fina de hospital – um traje definitivamente incomum num lugar como esse, mas quem era eu para julgar com minha camisa e bermuda imundas?. Atrás de si era uma das áreas abertas com vistas para o lago de um lado e um parque infantil do outro. Havia sangue seco em seu rosto, mas ela mantinha uma posição imponente – ou tentava – e mesmo com o desespero e o medo estampados e sua face, seu olhar era feroz.

Ela lutava por algo valioso para si. Qualquer um que a visse seria capaz de notar.

Seu braço estava erguido e ela segurava uma arma (parecida com a minha, por sinal) apontando para as várias coisas que avançavam “lentamente” em sua direção como se todas as coisas dependessem daquilo. O choro do bebê vinha de algum lugar bem próximo.

Naquele momento, naquela cena, havia algo muito bonito. Algo tão belo que só poderia ser sentido, e eu consegui captar – seja lá o que fosse.

Então, ela me viu correndo em sua direção. Não sou capaz de descrever o que seus olhos me transmitiram naquele instante.

Eu só sabia correr em direção a ela, passando por todas as coisas ao redor, alcançando-a mais rápido. Por algum motivo, eu corria olhando-a nos olhos, mas me dei conta de que não corria exatamente em sua direção. Era involuntário, eu só corria, mas não pensava nem controlava meu corpo direito.

Atrás dela, encostado a uma das palmeiras, havia uma pequeno ser enrolado num cobertorzinho de aparência macia. Parei a uma curta distância. Ela me observava caminhar em direção à mesma, mas não falou nada.

Passei por ela, que permaneceu me encarando. Então, quando a distância acabou e o choro se tornou mais alto, eu percebi para onde havia corrido. Ali, deitado no gramado sujo e enrolado num pano branco além do cobertorzinho, estava o bebê. Mas não era só um bebê, era um recém-nascido.

Então eu compreendi. Virei o rosto e observei o rosto jovem e preocupado a poucos metros mais atrás. Um olhar feroz, aliviado e ao mesmo tempo desesperado, mas acima de tudo, com medo e preocupado me encaravam de volta. Eram olhos pertencentes a um rosto claro, mas sujo e suado (além da mancha ao redor da boca fina) e tudo emoldurado por uma longa cabeleira castanha e solta.

Devagar, seus lábios formaram um sorriso ensanguentado.

— Obrigada...

Voltei meu olhar para o bebê. Abaixei e o peguei, porque senti que era o certo a se fazer. Ele ainda chorava, alto, e era irritante apesar de o choro ter se aplacado por um pouco.

Ouvi um som estranho e virei o rosto novamente para ela. Arregalei os olhos quando vi que as coisas finalmente tinham pego, agarrado e que mordiam com uma voracidade morta.

Merda!

Ela fez uma careta de dor extrema antes de tentar dizer alguma coisa, mas, obviamente, não conseguiu.

Não precisou. Eu entendi no brilho que ainda havia em seu olhar – mais que tudo, preocupado. E aliviado ao mesmo tempo.

Minha visão embaçou por um momento. Pisquei com força e duas lágrimas escorreram por minhas bochechas.

Eu estava prestes a tirar a minha vida, moça. O que você fez comigo?

— Ele está em boas mãos – me referi ao bebê. Mas numa hora daquelas, parecia que quaisquer mãos vivas eram ótimas.

Ela assentiu devagar com dificuldade antes de fechar os olhos para sempre.

Quando fui me virar para ir embora, senti que meus pés haviam pisado em algo. Dei um jeito de colocar a arma (ela deve ter empurrado em minha direção quando eu não olhava. Estava viscosa, mas ignorei) no cós de minha bermuda e comecei a correr para qualquer lugar longe dali. Não olhei para trás nenhuma vez.

Eu estava prestes a... prestes...

Você arruinou meus últimos planos, moça. Muitíssimo obrigado.

Eu estava chorando.

Quando estava na entrada de aparência chique, já distante do local onde a última mãe do mundo morreu, parei para respirar. Olhei para trás apenas esta vez para apreciar o pôr-do-sol naquele rico lugar, antes frequentado por gente selecionada, que agora estava deserto, mas continuava bonito. Só então abaixei minha cabeça e observei, de fato, o pacotinho que trazia nos braços.

Tinha parado de chorar em algum momento e agora parecia que estava dormindo. Ou morto. Aproximei minha cabeça de seu narizinho minúsculo só para conferir.

Ele era quente, leve, e capaz de transmitir uma sensação parecida com paz de espírito – o que era indiscutivelmente bastante irônico. E cheirava a sangue, também, mas isso não era de se estranhar, já que estava todo sujo.

— Deus! Você acabou de nascer... Como pôde ser tão burro?

Ele se remexeu em meu colo, mas não acordou.

Acabei sorrindo.

— Seu feinho. Deveria ter ficado lá dentro, onde era quente e seguro. Mas agora, você já nasceu não é?! – suspirei, pensando no que poderia falar em seguida – Bem... seja bem-vindo ao mundo depois de tudo. O mundo que a droga da sua espécie conseguiu, literalmente, exterminar... Claro, claro. Você não tem culpa disso. Não tem culpa de ter nascido nesta época do ano.

Olhei para trás, mas desta vez para além do lago. Para o pôr-do-sol final e para o Píer 21 – local marcado com o pessoal. Inspirei fundo.

— No Píer, não é mesmo?! Certo. Estarei lá, Emi. Mesmo que atrasado. Esperem por mim.

Comecei a caminhar para fora, atravessei a portaria deserta e me vi na estrada também deserta. Eu tinha uma ponte para atravessar e uma distância boa para percorrer a pé, mas estava tranquilo. Acima de tudo, eu tinha tempo, de qualquer forma.

— Bem, pelo menos você deu sorte. Nesta época do ano costuma chover por aqui... Não vamos ficar no calor insuportável – falei novamente para o bebê. – O que você acha disso? Bom, não é?! Aonde estamos indo? Ao píer. Se bem que... huuum, quer mesmo conhecer os outros com esse cheirinho? Não, senhor. Vamos procurar uma água quente e tirar essa sujeita toda de você. Isso mesmo, bebê.

E então, me liguei de que não tinha perguntado à mãe o nome dele – se é que ela havia tido tempo para batizá-lo. Tarde demais.

— Não me leve a mal, mas quer saber de uma coisa? Até que você não é tão feinho assim. Tipo, para um recém-nascido no meio do apocalipse... você até que está com uma boa aparência.

Na verdade, ele era lindo. E me passava esperança, agora que eu era o mais próximo de um responsável legal que ele teria. Quer dizer, tecnicamente, foi a mãe dele quem deixou que eu o levasse, não é?!

Que idiotice! Por quê estou pensando em algo assim?

— Certo bebê, agora sou seu responsável. Já vou avisando que, há menos de meia hora, eu mal conseguia cuidar de mim mesmo, heim. Consegui me perder dos outros e tudo o mais, mas... eu vou tentar. Prometo. Serei um bom irmão mais velho adotivo, você vai ver. Devo isso à sua mãe, mesmo sem saber por quê. Acho que é porque ela estava desesperada. Talvez seja...

Lembrei do que estava prestes a fazer antes dessa maluquice toda. Minha voz começou a embargar, meu peito começou a arder e meus olhos embaçaram uma última vez. Mas engoli o choro.

Olhei novamente para ele, que não dava a mínima para todo o meu monólogo.

— E... bebê... obrigado. No fim das contas, você quem me salvou. O sol, agora, vai voltar mesmo amanhã. Eu sei...

Retomei a caminhada olhando para frente, absorvendo as últimas luzes alaranjadas daquele belo pôr-do-sol. O meu primeiro pôr-do-sol.

Píer, beleza. Estaremos lá, Emi.

— Você mal pode esperar para conhecer o bebê!  Sei que vai adorá-lo. Todos vão, eu tenho certeza.

— Já estamos nos dando bem. Ele é um carinha legal...


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Notas finais do capítulo

Eu imaginei este momento tantas vezes, de tantas formas diferentes e acreditem: em nenhum deles eu estava às 00:58 sentado em minha cama de pijama, com um pouco de calor e precisando escovar os dentes. Mas aqui estou eu e gostaria, acima do pedido de desculpas até, agradecer.
Vocês foram presentes quando eu não fui. Foram fieis e leram e esperaram mais do que tudo, mesmo quando eu demorava quatro meses para voltar. Mas eu voltava e vocês estavam aqui. E é isso que conta.
Isso fez valer a pena todo o desânimo, toda a preguiça, todos os problemas e tretas... Mesmo vocês, fantasmas (que são a maioria esmagadora, por sinal), foram maravilhosos pelo simples fato de não desistirem.
Por isso, a vocês o meu sincero muitíssimo obrigado, do fundo do coração. Este capítulo final é dedicado a vocês é para vocês, porque muitos de vocês me ajudaram sem nem saber disso. Era só mais um comentário, afinal de contas... Só. Que. Não.

Agora, sobre a história: eu sei que deixei umas várias potas soltas por aí, mas desde o início eu queria acabar mantendo a chama da curiosidade acesa. Perdoem-me, por favor, se deixei mais que uma chama. De fato, essa história foi "reidealizada" e repensada várias, VÁRIAS vezes e tem tanta coisa que eu queria que vocês tivessem lido, tantos detalhes que eu queria que tivessem ficado cientes, tanta coisa de fora... Mas eu espero que tenha lhes conferido um final alternativo decente. Com sinceridade.
Confesso que acabei um ou dois capítulos mais cedo porque, nesse tempo todo em que estive fora, decidi dar novos rumos a ApocalipZe (pra variar). Por favor torçam por mim, porque não será fácil. Mas se eu conseguir... Nossa!
Bem, vocês ficarão sabendo de tudo de alguma forma.
Sou realmente grato pelo tempo que vocês apostaram nesta história.

Último recado: talvez tenha mais uma novidade por aqui, então mantenham-se aletras, se quiserem. Muito provavelmente vai ter sim (até porque já está pronta)...
E para aqueles que quiserem "continuar acompanhando", principalmente os novos rumos que a história tomar - se eu conseguir chegar lá mas eu vou AMÉM! - vou deixar duas formas de contato para quem quiser adicionar:
Instagram - @ezurinhas
Snapchat - ezurah.ezu
É chato isso, eu sei, e não tenho certeza se já divulguei aqui (espero que não), mas estou fazendo caso o negócio dê certo e tenha alguém que queira acompanhar ou simplesmente ficar sabendo das novidades. Vou postar lá, com certeza.
No mais, foi um prazer enorme tê-los como companhia virtual durante todo esse tempo (eu achei que fôssemos passar de dois anos, puxa! Que reviravolta!). Desejo ótimas histórias no caminho de vocês e muito sucesso e realização pessoais também! Realmente, realmente, realmente espero que tenha valido a pena.
Abraços em todos!
Senhor Devaneio



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